“São precisas várias campanhas, dentro e fora de Moçambique. Infelizmente a situação atinge uma proporção dramática enorme”, num cenário de “barbárie e crueldade” protagonizado por terroristas que desde 2017 atacam uma das populações mais pobres do mundo.
“Um país na condição em que está Moçambique não pode fazer face ao tamanho daquele drama” sozinho, sublinhou.
A campanha pretende angariar fundos diretamente para a Cáritas, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Oikos, organizações que estão no terreno na resposta humanitária em Cabo Delgado.
O objetivo é atenuar o sofrimento da população que sofre com o terrorismo, um fenómeno global que ainda nenhum país conseguiu vencer, pelo que, “é muito difícil virar esta página”, realçou Mia Couto.
O escritor quer registar as histórias das vítimas por forma a conferir-lhes humanidade e para serem mais que números.
“Para mim é fundamental que [perante] campanhas de solidariedade a nossa postura seja fundada em nomes, em caras, em histórias concretas”, referiu.
Mia Couto traça um paralelo com a Europa: se um ato terrorista vitimasse pessoas em Paris, “no dia seguinte os jornais tinham a história de cada uma delas e da família”.
No caso de Cabo Delgado, lamentou, “parece que esta gente não tem direito a ter a sua história singular, a ter a sua individualidade”.
A recolha de testemunhos é um dos objetivos da Fundação Fernando Leite Couto, criada em 2015, em Maputo, em homenagem ao autor, pai de Mia Couto.
“Esta é uma coisa que queremos fazer. Queremos construir essas histórias, mandar para lá uma equipa que possa registar em vídeo e em papel as histórias concretas de famílias que sofreram”, mas especialmente as “histórias de superação”.
A superação é destacada por Mia Couto, “a capacidade enorme de as pessoas resistirem e reconstruirem a sua vida depois das cinzas, depois da morte”.
O terrorismo no norte de Moçambique é tão dramático que provoca um medo para o qual o escritor diz “não estar preparado”, referiu na entrevista à Lusa.
Um medo só comparável ao que sentiu quando dormiu em Palma, numa altura em que havia pessoas a ser devoradas por leões.
Mia Couto exerceu o seu trabalho como biólogo há 19 anos na vila recentemente atacada por rebeldes, num outro tempo, sem estradas, sem projetos de gás a serem construídos.
“Na altura, Palma não tinha um lugar para se ficar” e a tenda era o seu abrigo.
Certa noite, avisaram-no da morte de um homem ali perto e, de lanterna na mão – não havia energia – foi ver o que passava.
Explicaram-lhe que tinha sido morto por um leão.
“Comecei a enfrentar um medo que me era desconhecido. Tinha medo de ter esse medo” que era o de “ser devorado por uma fera” – e da experiência nasceu a sua obra A Confissão da Leoa.
“Volto a revisitar um medo para o qual não estou preparado”, com os relatos dramáticos do ataque a Palma, admitiu, relatando: “Esse terror que é inspirado pela ação desta gente, destes terroristas que atuam em cabo Delgado, faz-me regressar a esse período”.
Na altura, transformou a história de leões que provocaram a morte de várias mulheres da vila, numa ficção, mas agora diz não ser “capaz de ficcionar”.
“Fazia-me falta estar em Palma”, refere, até porque viver um drama “à distância” chega a ser “mais doloroso, porque tudo nos chega em segunda mão, envolto numa névoa”.
Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes segundo o projeto de registo de conflitos ACLED e 714.000 deslocados de acordo com o Governo moçambicano.
O mais recente ataque foi feito em 24 de março contra a vila de Palma, provocando dezenas de mortos e feridos, num balanço ainda em curso.
As autoridades moçambicanas recuperaram o controlo da vila, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás com início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.
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