“Porquê uma Conferência sobre o Futuro da Europa? A resposta, por muito estranho que vos possa parecer, foi-nos dada por um dos grandes poetas europeus do século XVI, Luís de Camões, logo na primeira estrofe de um dos seus poemas”, começou por dizer na sua intervenção na cerimónia oficial de inauguração da conferência, celebrada no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, França.
Intervindo — em português, francês e inglês – na sessão solene enquanto copresidente da conferência, na condição de presidente em exercício do Conselho da UE, António Costa recitou a primeira estrofe do poema de Camões, começando por se concentrar no primeiro verso — “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” -, para sublinhar as diferenças entre o que é hoje a União Europeia e o projeto inicial, lançado há 71 anos, em 09 de maio de 1950, com a declaração de Robert Schuman, razão de o Dia da Europa ser hoje celebrado.
“Há muito que não somos os seis países que se propunham criar um mercado comum do carvão e do aço. Fomos sempre crescendo na nossa vontade de fazer mais em comum, alargando sucessivamente a nossa diversidade com novas adesões. E há uma história de sucesso de que nos podemos orgulhar”, declarou.
António Costa referiu que, “agora, tudo parece óbvio, natural e, até ao Brexit, até parecia irreversível”, mas “a verdade é que a História não tem essa linearidade indolor” e o projeto europeu exigiu sempre “muita, muita persistência e criatividade”.
“Nem sempre avançámos em conjunto ou ao mesmo tempo, como [o espaço de livre circulação] Schengen ou o Euro bem exemplificam. Nem concluímos ainda plenamente todos os passos que já demos, como Schengen e o Euro também bem demonstram […] Se queremos ter sucesso, e devemos ter sucesso, não podemos iludir as dificuldades. Existe hoje um conjunto de debates de fundo sobre o que é e o que deve ser a nossa União, que não se limita a afastar Estados uns dos outros, mas que atravessam, dividem as próprias sociedades em vários Estados-membros”, apontou.
Para o chefe de Governo, há várias questões às quais é necessário dar resposta: por exemplo, se ainda se está aquém do necessário na União, como conjugar valores comuns com o respeito pelas identidades nacionais ou como articular os interesses nacionais com a solidariedade, inclusive na gestão da imigração.
“A Conferência sobre o Futuro da Europa é a oportunidade de assumirmos, com total franqueza e abertura, que hoje já não pensamos todos como pensávamos e que novos tempos exigem novas vontades. As vontades mudam com o tempo e multiplicam-se com a diversidade”, notou.
António Costa argumentou então que “o Tratado de Lisboa teve o cuidado de proporcionar a necessária flexibilidade, através das cláusulas ‘passerelle’ e de mecanismos de cooperação reforçadas”, para que não seja necessário a Europa ficar confrontada com “a opção dramática entre a paralisia de todos por falta de vontade de alguns ou a rutura destes com os que querem ir mais longe e/ou mais rapidamente”.
O governante sublinhou que “esta é uma conferência dos cidadãos, pelos cidadãos e para os cidadãos”, pelo que deve centrar-se no debate das vontades plurais dos europeus e não em negociações entre Estados.
Passando, em francês, ao segundo verso da estrofe de Camões — “Muda-se o ser, muda-se a confiança” -, o primeiro-ministro observou, com base num recente inquérito Eurobarómetro, que a resposta da UE à crise da covid-19 ainda em curso “colocou a União Europeia num nível máximo de confiança dos seus cidadãos” e saudou a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen.
“Desta vez, a preocupação da União de tomar conta dos seus cidadãos foi muito clara. Desta vez, os cidadãos europeus não se sentiram abandonados à sua sorte e viram-se considerados como iguais”, regozijou-se, considerando que esta crise pandémica permite tirar duas conclusões: “primeiro, os cidadãos europeus reconhecem um valor acrescentado à ação da UE e, segundo, eles desejam que a União concentre a sua ação na resposta direta aos seus problemas concretos”.
“Nós devemos pensar nas próximas gerações, e não nas próximas reuniões, ou nos próximos postos [institucionais] de topo, ou nos próximos tratados”, defendeu.
Passando, já em inglês, ao terceiro verso da estrofe — “Todo o mundo é composto de mudança” -, Costa observou que “a União Europeia não está sozinha no mundo e não deve isolar-se”, mas, pelo contrário, “deve mudar para conseguir acompanhar o mundo”, defendendo dessa forma o conceito de autonomia estratégica.
Ao defender que a UE, “se quer ser um ator global, não pode ser confinada à sua dimensão continental” e deve “assumir a liderança nas grandes causas da Humanidade deste século”, o governante adiantou que “a presidência portuguesa vai propor que se trabalhe, no seio da UE, numa Agenda Global para os Oceanos 2050″.
“Outros deram prioridade à lua ou a Marte, mas a Europa deve abraçar os oceanos como uma causa e a sua grande missão para a próxima década”, defendeu, lembrando que os oceanos são o mais importante regulador climático, necessitam de proteção urgente e são uma imensa fonte de recursos.
Por fim, e citando, de novo na língua portuguesa, o último verso da primeira estrofe do poema de Luís de Camões — “tomando sempre novas qualidades” -, o chefe de Governo argumentou que, “mais do que uma moeda única, um mercado interno ou uma união aduaneira, a Europa foi e é, e terá de ser, uma comunidade de valores, e um espaço com um modelo social único no mundo, garante de proteção e igualdade de oportunidades para todos”.
Sem exceções, considerou, o futuro deve fundar-se nos valores fundamentais da liberdade, da democracia, dos direitos humanos, civis, económicos e sociais.
“Mas só conseguiremos preservar esta nossa identidade se lhe acrescentarmos novas qualidades, aproveitando as oportunidades que temos pela frente”, disse, indicando que a Europa começou, há 71 anos, “no carvão e no aço, bases da economia de então”, mas deve recomeçar agora “no verde e no digital”, os motores dos planos de recuperação para o futuro.
António Costa citou o antigo Presidente Mário Soares, “pai da democracia portuguesa e um grande europeu”, que já em 1976 alertava para algo que permanece atual, ao afirmar que “construir a Europa não é tarefa fácil” e ao defender que “repensar a Europa e o seu futuro é um dever permanente que deve ser assumido com humildade face à importância histórica dos objetivos e que deve ser obra de todos os europeus”.
“É por isso que, mais do que meros espetadores da mudança, os cidadãos europeus devem ser os obreiros dessa mudança. Dirijo, pois, as minhas palavras finais diretamente aos cidadãos europeus, aos que aqui estão presentes, e sobretudo aos milhares que nos seguem à distância e estão conectados por via digital. Está aberta esta conferência, para que todos vós nela participem”, concluiu, enquanto nos ecrãs dispostos por todo o hemiciclo eram mostradas imagens de cidadãos a seguir o evento remotamente.
Prevista originalmente para ter início em maio de 2020 e durar dois anos, a conferência foi adiada não só devido à pandemia da covid-19, mas também a diferenças em torno do modelo de governação deste fórum, ultrapassadas apenas este ano, já durante a presidência portuguesa da UE. Hoje formalmente lançada em Estrasburgo, prolongar-se-á até ao verão de 2022.
Comentários