No âmbito do ciclo Cinema na Prisão, realizado pela segunda vez na cadeia, os detidos assistiram hoje ao filme “Eu – Daniel Blake”, de Ken Loach, que retrata as agruras de um marceneiro face a uma burocracia estatal que o coloca entre a espada de não poder trabalhar e a parede de não ser elegível para o subsídio de desemprego.
Dois reclusos abordados pela Lusa garantiram não provir de ambientes de injustiça social que lhes tenham “feito a cama” para cometer crimes, mas Ricardo Soares, que chegou a ser operador de câmara para canais de difusão nacional, ressalvou que “há sempre injustiças para com as classes sociais mais baixas.”
Natural de Valpaços e preso há dez anos por “um erro” com contornos de prefere não falar, o antigo operador de câmara e gerente de duas lojas de fotografia disse à Lusa que “chega uma altura em que o 25 de Abril é um dia como outro qualquer”.
“Lá dentro não há alterações nenhumas”, lamentou, pressupondo que “por dentro, claro que a maior parte [dos reclusos] pensa sempre: ‘Dia da Liberdade e nós estamos presos. O que é isso do Dia da Liberdade?’ Claro que poderá haver de certa parte sempre um motivo de revolta, mas acaba por se tornar um dia como outro qualquer. Com saudades da liberdade, claro”, assumiu.
Ricardo Soares tem em comum com parte da assistência de detidos a condição de estar já a trabalhar fora dos muros da prisão, em regime de saídas precárias, um incentivo ao bom comportamento e ao sucesso continuado rumo à reinserção social.
António Pedro, 54 anos, detido há dez por burla qualificada e falsificação de documentos, rejeita também qualquer atenuação de culpa devido a desvantagens sociais.
“Tive uma educação excelente, mas não tive cabeça”, admitiu.
Durante um curto intervalo na projeção, avaliou o filme de Ken Loach como “um exemplo de cidadania, por parte da pessoa em questão”, Daniel Blake.
“É uma pessoa que está em dificuldades e que consegue encontrar ainda forças para ajudar terceiros, pelo menos até esta parte do filme”, comentou.
Ainda lhe falta “um bocadinho até ao fim da pena”, mas conta sair antes, enquanto encara o 25 de Abril como “sempre um dia a celebrar, porque é comemorativo da liberdade de um país.”
“Trabalho na cozinha várias horas por dia. Sou uma pessoa que gosta bastante de cinema, de ler e praticar desporto, o que me tem ajudado bastante a encontrar o caminho certo”, explicou à Lusa, questionado quanto ao método por que foi superando a última década de prisão.
Além do visionamento, o ciclo de cinema abarca uma discussão crítica entre os reclusos sobre a mensagem do filme, o que para Celso Manata, diretor-geral dos Serviços Prisionais, serve o propósito da divulgação da cultura enquanto fator que “abre horizontes” e que, portanto, “contribui para uma atitude diferente na vida, que é essencial para a reinserção”.
À margem da projeção, o diretor-geral revelou que nos estabelecimentos prisionais os dias de feriado e que não sejam de trabalho são normalmente mais difíceis: “Há menos atividades, passa-se mais tempo fechado na cela”, com “um maior sentimento de perda”, compensado tão-só “pela liberdade de pensar, quando a liberdade física está condicionada”.
Ricardo Soares tem perspetivas de “começar do zero”, assim que puder comemorar o 25 de Abril em pleno usufruto dos valores celebrados pela data. Quer sobretudo “trabalhar, lutar por uma vida melhor e não esquecer, que isto nunca se esquece”, sublinhou.
Também António Pedro tenciona perseguir o sonho de continuar a trabalhar e mitigar os danos que causou a quem era próximo.
“Quero compensar toda a minha família por estes momentos que têm tido comigo. E viver este resto de vida que me resta, não é? Em paz comigo e com os outros”, disse à Lusa, prestes a voltar à segunda metade do filme.
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