Faltava meia hora para o início das celebrações de 12 de outubro e ainda eram alguns os peregrinos nas imediações do Santuário. Deslocavam-se num passo apressado e, não raras vezes, questionavam-se se ainda conseguiriam entrar.

Todos os acessos ao recinto seguiam as mesmas regras: voluntários com um doseador de álcool gel e um panfleto com a função de avivar a memória quanto ao que se deve fazer de seguida. Ao entrar, cada peregrino teve de avançar para o espaço vago à sua frente. Ao ver um círculo desocupado poderia ali ficar.

À primeira vista, os comentários eram de espanto. O Santuário estava mais vazio do que seria esperado. Mais tarde veio a confirmação oficial: estiveram 4.518 peregrinos em Fátima, 52 sacerdotes e 9 bispos, na Procissão das Velas, quando existia um limite máximo de 6 mil pessoas no recinto.

Manuel, Lucinda e Catarina ocupavam um dos tantos círculos pintados no chão. Enquanto família, não há distanciamento necessário — e sempre é uma forma de combater o frio que se sente, percetível pelas mantas com que se enrolam.

Vêm todos anos nessa altura, moram em Paredes. “Nada nos travou. Já tínhamos o compromisso, tínhamos uma casa arrendada. Não íamos faltar ao que estava combinado. E, dentro das regras, tudo há de correr bem. Sentimo-nos seguros”, explicou ao SAPO24 Manuel, o mais falador dos três.

Aproveita e diz que está tudo “muito bem organizado, tudo muito bem feito”. Lucinda, para mostrar que os círculos não são impeditivos de se estar em grupo, aponta para a frente e diz que ali está a irmã.

Chama-se Rita, está acompanhada de Celso. É ela que conta a história. “Viemos fazer companhia uns aos outros, mesmo assim. Há três anos que vimos sempre também nesta data. E apesar da pandemia está tudo direitinho, tudo correto”, afirma.

Ainda sem sítio escolhido onde ficar, dois peregrinos circulam pelo Santuário. Vão olhando em redor, decidindo se vão mais para a frente do recinto ou não.

São casados há 23 anos e contam que vêm muito a Fátima. Mas este dia acaba por ter outro significado. Alexandra vem de Torres Vedras e perdeu a mãe há poucos dias.

“Vim aqui hoje, sabendo que ia ser arriscado, principalmente por achar que ia haver dificuldade em entrar. Mas venho mesmo para agradecer a Nossa Senhora o acompanhamento muito forte que senti ao longo da doença da minha mãe, que faleceu no dia 3 de outubro”, começa por contar.

E explica como consegue estar neste local, serena, apesar da proximidade dos dias. “Graças a Nossa Senhora não sinto nada que não seja agradecimento, pela forma como tudo decorreu e como a minha mãe via tudo isto. E sei que ela está aqui comigo, pelo que venho cá agradecer. Venho celebrar Nossa Senhora”.

Pedro, o marido, reforça a ideia. “Normalmente nunca venho pedir, só agradecer. É dos nossos sítios preferidos e mais assíduos, nesta nossa vida conjunta. Vimos cá muitas vezes, sentimo-nos muito bem e, inclusive, já tivemos aqui revelações”, assegura. “Hoje agradeço este acompanhamento da mãe da Xana, que foi mesmo um caminho abençoado. Foi suportado pela ajuda divina, que muito foi pedida — e muito foi dada pelo Céu”.

“Foi dito pelos médicos que um milagre tinha acontecido neste percurso, que se estendeu mais do que aquilo que diziam. E sem nenhum sofrimento por aí além da nossa mãe Tucha, só mesmo na última semana”, diz Pedro com visível carinho. “E mesmo assim… sofrimento é outra coisa que eu já vi. Mas pronto, estava no fim. E o fim é o fim”.

Alexandra não hesita em citar o que ouviu de um médico. “Disse-me ‘não sei que milagre segura a sua mãe’. E eu sabia o que era”, assegura num sorriso que nem a máscara consegue esconder.

“Está tudo de uma forma lógica. Não se sente a pressão do medo, mas sim da organização"

Para o casal, vir ao Santuário nestes tempos de pandemia não é sinónimo de ter medo. As regras impostas ajudam. “Não tive medo de vir, percebi que as pessoas estavam a ser muito responsáveis em relação a isto. E agora vejo que não está assim tanta gente, acho que se tivermos os devidos cuidados não há problema, isto está devidamente organizado”, diz Alexandra.

“Está tudo de uma forma lógica. Não se sente a pressão do medo, mas sim da organização. As pessoas sabem que é para o bem de todos, estamos num sítio público. Até já me pediram para desinfetar duas vezes as mãos desde que aqui cheguei, estamos seguros”, reforça.

Foi esta sensação de segurança que levou Matilde a sair de Lisboa, sozinha. “Vim rezar a Nossa Senhora. Vim sozinha por opção, muita gente tinha medo que não desse para entrar, mas eu quis arriscar, também apesar da pandemia”, afirma.

Já no local, no devido círculo, não há dúvidas. “Sinto-me segura. É 100% seguro, acho que não há hipótese de o vírus circular aqui, com a distância”.

Para Matilde, estar na noite de 12 de outubro no Santuário é um momento “muito especial, ainda mais do que nos outros anos”. Afinal, num ano em que o recinto já se viu deserto, é mesmo tempo de olhar para tudo de outra forma. “Agora dá para agradecer ainda mais o facto de poder estar aqui, é uma graça enorme”, remata.

Um mar de luz mais dividido

Durante as celebrações, os peregrinos no recinto foram obrigados a manter as suas posições no espaço. Não podiam circular livremente ou chegar-se ao gradeamento para ver passar o andor de Nossa Senhora. Mas essas limitações não impediram que aconteça o que sempre ali se viu: durante a Procissão das Velas, quem olhava da escadaria via um mar de luz — mais dividido, é certo, mas estava lá. Como sempre tem estado, à exceção do que aconteceu no passado mês de maio, em que pela primeira vez os peregrinos não puderam estar fisicamente presentes.

Apesar do espaço existente entre os peregrinos, a imagem não era de afastamento, mas de união. Porque é preciso que cada um faça a sua parte para o bem de todos, viria a lembrar D. José Ornelas, que preside à Peregrinação Internacional Aniversária de outubro, na sua homilia.

O bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa desafiou os cristãos a superar esta crise de forma a que todos “possam sair beneficiados, numa humanidade mais solidária e mais fraterna” — que só é possível num esforço conjunto, aliado a uma resposta solidária para a crise social e económica provocada pela pandemia.

“É possível e é necessário que nós colaboremos para que, desta travessia do deserto da pandemia, possa nascer uma humanidade que habite uma terra que seja casa comum, que seja terra para todos”, sublinhou.

“Não permitamos que os mais débeis fiquem esquecidos nas suas dificuldades. Cresçamos na solidariedade, na criatividade, na busca de caminhos novos para um mundo novo, com os muitos problemas e oportunidades que temos diante. Se assim fizermos, guiados pelo Espírito do Senhor e imitando as atitudes da Mãe-Maria, sairemos desta crise com mais vida e possibilidade de enfrentar os desafios que o futuro nos apresenta”, referiu o bispo.

Diante de um Recinto de oração com uma configuração totalmente distinta da habitual, D. José Ornelas afirmou que as alterações necessárias são um “sinal claro das limitações e condicionalismos que atingem o mundo”, com consequências que afetam sobretudo os mais frágeis.

Neste sentido, o bispo de Setúbal apresentou aos peregrinos a figura da Virgem Maria como “a imagem da proximidade com aquele que foi injustamente rejeitado, caluniado, condenado e executado”, a imagem “materna de cuidar dos mais frágeis e dos descartados, da coragem de partilhar a sorte dos condenados, dos excluídos, dos incómodos”.

Numas últimas palavras dirigidas aos peregrinos, D. José Ornelas apelou à intercessão dos santos Jacinta e Francisco Marto.  “Que eles nos ajudem a deixar-nos igualmente guiar pela mão da Mãe do Céu, pela mão da Mãe da Igreja, para podermos superar as dificuldades presentes e colaborar na construção de um mundo mais justo e solidário, aberto à grandeza e ao amor misericordioso do Pai do Céu”. Eles, que também passaram, nas suas curtas vidas, por uma pandemia que deixou marcas no país — e na história de Fátima.

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