Com 13 milhões de visitantes anuais, é um dos monumentos mais visitados do mundo e atrai pessoas de todas as religiões. O seu valor, para além do espiritual, está relacionado com a História da civilização. Para a França tem um significado tão grande que é o quilómetro zero de todas as estradas do país. Entre muitos outros eventos, foi lá santificada Joana d’Arc e coroado o Imperador Napoleão. Resistiu a vários acontecimentos devastadores, como a Revolução Francesa de 1789 (altura em que foi saqueada e os sinos refundidos), a Comuna de Paris e a vontade de Hitler em destruí-la, ordem ignorada pelo general Dietrich von Choltitz.
Apesar da data de consagração, o edifício recebeu alterações maiores e menores ao longo dos séculos. A maior deve-se ao arquiteto Eugène Emannuel Viollet-le-Duc, no século XIX, que reconstruiu a simbólica espiral com uma estrutura metálica coberta de pedra. Aliás, Viollet-le-Duc é considerado o pai da moderna filosofia de restauração de edifícios antigos, seguindo princípios que só foram alterados pela “Carta de Veneza” de 1974.
O que nos leva à questão de como devem ser feitos os restauros destas preciosidades. Há uma corrente que considera que há que reconstituir todos os pormenores originais, criando o que se chama um “pastiche” – a imitação moderna duma peça antiga. E há outra corrente que acha que se deve fazer uma versão diferente, embora respeitando partes da traça original. Aí entra outra sub-discussão sobre o que é autêntico, uma vez que estes monumentos receberam acréscimos e alterações ao longo dos séculos – alguns, diz-se, que melhoraram ou engrandeceram a primeira obra.
Temos exemplos destas escolas no nosso país. A Torre de Belém, construída entre 1514 e 1520 por Francisco de Arruda, foi alterada várias vezes, enquanto servia de entreposto aduaneiro e até prisão. Muito degradada, voltou à traça original em 1940, para a Exposição do Mundo Português, e sofreu discretas intervenções de conservação em 1997, 2005 e 2008.
O Mosteiro dos Jerónimos, desenhado por Diogo de Boitaca e consagrado em 1501, demorou um século a acabar. A capela mor original, de 1601, já é maneirista, sendo o conjunto manuelino. Mas a longa ala à esquerda, neo-manuelino – um pastiche, portanto – é do século XIX. A biblioteca é de 1640, a sala do capítulo arrematou-se em 1886. Se tivéssemos de restaurar os Jerónimos (cruzes, credo!) o que conservaríamos?
Uma situação oposta dá-se com o Palácio Nacional da Ajuda, projeto de Manuel Caetano de Sousa, depois modificado por Francisco Xavier Fabri e José da Costa e Silva. Tornou-se paço real em 1861, quando estava construído cerca de um quarto do projeto. A fachada poente, inacabada, está presentemente em obras, com um projeto pós-moderno de João Carlos Santos, com um traçado contemporâneo que “brinca” com o perfil das fachadas novecentistas.
Também a Casa dos Bicos, construída em 1523 com dois pisos, sofreu um acrescento pós moderno em 1983, da autoria de Manuel Vicente, que lhe acrescentou dois andares e janelas com uma leitura “decadente”.
A Igreja de São Domingos, ardida em 1959, recebeu apenas uma cobertura interna de estuque e uma limpeza na fachada. Nem se tentou restaurar as preciosidades que continha, como os altares em talha dourada barroca, nem se fez uma intervenção profunda.
Já o Teatro Nacional de D. Maria II, simbolicamente construído em 1836-46 por Almeida Garret, no local da antiga Inquisição (e mesmo em frente à Igreja de São Domingos) teve outra sorte. Desenhado por Fortunato Lodi, foi completamente destruído por um incêndio em 1964, mas reabriu em 1978 com a traça original e ainda enormes melhoramentos tecnológicos ocultos. É com certeza mais fácil refazer um neo-clássico do que um barroco, mas o teto pintado por Columbano foi reproduzido meticulosamente.
Voltemos a Notre-Dame. Ninguém estará a pensar em mudar a traça do século XII, a rosácea, ou as alterações do século XIX, aliás discretas. Mas certamente que, por muito dinheiro que se gaste, é materialmente impossível ter um interior igual ao do passado.
Uma parte do restauro incidirá sobre o edifício propriamente dito: as paredes suportadas por arcos botantes, os torreões dos sinos, a espiral e outros pormenores arquitetónicos. Quanto ao teto, que era de placas de chumbo, poderia ser substituído por um material mais leve, de igual cariz.
Mas a outra parte tem a ver com as inúmeras preciosidades artísticas que o edifício continha. Por exemplo, o “grande órgão de Notre Dame”, com oito mil tubos e cinco teclados, concebido no século XIII e que, segundo as primeiras notícias, terá ficado seriamente danificado. Mas havia três órgãos no interior da catedral e dos outros dois ainda não se sabe. Os quadros, a óleo ou têmpera sobre madeira ou tela, podem ter ficado num estado impossível de restaurar. E depois há o museu da catedral, com peças como a coroa de espinhos que teria restos da que crucificou Jesus Cristo, trazidos de Jerusalém, como acreditam os fiéis. As madeiras folheadas a ouro, marroquinarias e peças de madeira várias – entre imagens de santos, tocheiros, cadeirais e outros móveis – provavelmente danificadas, poderão quiçá ser reparadas, se houver artesãos suficientes com conhecimento de técnicas perdidas ou em vias de perdição.
Conforme forem os estragos nestas peças, levará anos e milhões para as tornar apresentáveis.
Os milhões aparecem, com certeza: organismos nacionais e internacionais, como a UNESCO, já disseram que contribuem. A Presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, anunciou um donativo da cidade de cem milhões de euros. Estão a iniciar-se iniciativas de crowdfundings entre quem queira ajudar. Cinquenta grandes empresas chegaram-se à frente, entre elas a LVMH de Luis Arnault com cem milhões, e o grupo de François Pinault (Pinault-Printemps-Redoute) com duzentos. Quanto aos artesãos logo se vê; o Vaticano já colocou à disposição o seu numeroso escol de especialistas.
Todos estes bens têm um valor cultural, ideológico e civilizacional incalculáveis. O abalo, no mundo inteiro, faz lembrar as impressões causadas pelo terramoto de 1755. Também entre os especialistas portugueses paira a incredulidade e alguma forma de esperança.
Raquel Henriques da Silva, a nossa historiadora de Arte mais cotada, está tão desanimada que nem quis dizer o que sente.
António Filipe Pimentel, o Diretor do Museu de Arte Antiga, que não será um edifício notável mas que tem uma coleção preciosa, e sabe o que é restauro, tem a opinião concreta de quem lida com estas coisas. Diz que é preciso primeiro colher as informações, friamente:
“Cada caso será um caso. Por exemplo, um cadeiral parcialmente danificado pode ser facilmente recuperado. Mas uma pintura é impossível de substituir. Os vitrais, vamos a ver.” Mas confia nos tempos: “Hoje em dia há diferenças entre os graus de legitimidade e bom senso que havia no século XIX. Não faz sentido reconstruir coisas do sec XII; temos um sentido da história que tem a ver com as capacidades no século XXI. Sabemos o que pode ser salvo e o que deve ser uma lembrança.”
Dalila Rodrigues, historiadora de Arte, pergunta-se se faz sentido reconstruir a Notre-Dame: “Este incêndio, pela sua extensão e violência, representa uma catástrofe irreparável, uma perda irremediável. Estamos todos de luto profundo.
Agora é necessário fazer um levantamento e uma intervenção urgentes para consolidar e proteger o que resistiu, o que sobreviveu à fúria e à extensão das chamas. E haverá que definir muito rapidamente uma metodologia de intervenção que tenha em conta duas perspetivas fundamentais: pensar esta catedral no plano da História da Arquitetura, enquanto testemunho histórico-artístico — reconhecendo-o como um dos mais importantes exemplares do primeiro Gótico —, e pensá-lo a partir da sua história patrimonial, ou seja, enquanto monumento patrimonializado, institucionalizado e apropriado pelo público.
Na perspetiva da história patrimonial, é importante considerar que o edifício sofreu ao longo dos séculos diversos atentados e que foi objeto de intervenções e reconstruções profundas: especialmente nos séculos XVIII e XIX - no período da Revolução Francesa e no século XIX, quando o arquiteto Violet-le-Duc repensou e recriou partes fundamentais do edifício, acrescentando-lhe elementos visualmente marcantes. Estas intervenções nada acrescentaram ao valor documental e artístico do edifício, porém, ressignificaram-no e valorizam-no em termos patrimoniais.
E é necessário olhar para o contributo patrimonial do século XIX de um outro modo. Há muito, desde a segunda metade do século XX, que os pressupostos do restauro não admitem a reconstrução-pastiche. Ou seja, considera-se ser fundamental, no processo de restauro, não recriar ou refazer partes perdidas de um objeto ou de uma construção. Deve consolidar-se o testemunho na sua autenticidade, o que resta da sua matéria original, e não promover a ação de desvirtuar essa autenticidade com a ação de "refazer". Ou seja, consolida-se a ruína e não se refaz o edifício. Mas também é importante pensar que, se no século XIX e na primeira metade do século XX, sobretudo no pós-guerra, não se tivesse refeito profundamente o património (civil, religioso, militar...), o património da humanidade incluiria um significativo número de ruínas.
Em síntese, é necessário repensar o património contemporaneamente, na sua dinâmica patrimonial. Caberá à Notre-Dame de Paris, uma vez mais na história, embora na história do património, um papel matricial?”
É também o que afirma Delfim Sardo, Programador da Culturgest:
“A Notre-Dame que víamos era o resultado da intervenção do século XIX. A que vamos ver é do século XXI. É assim a vida dos edifícios, como das pessoas. Têm de apresentar as cicatrizes do seu percurso.”
A mesma opinião tem Paulo Almeida Fernandes, Coordenador do Museu de Lisboa: “Deve-se reconstruir, com certeza, mas deixando marcas. Um edifício é a sua história, com os acidentes por que foi passando. Claro que é preciso refazer a flecha icónica, mas talvez não se deva recuperar talha dourada. É importante que fique patente o que aconteceu nesta data.”
A desgraça aconteceu, segue-se a pós-desgraça. Aventura-se que levará dez anos a fazer o que for decidido. Todos estamos ansiosos para ver.
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