Contactado pela agência Lusa, o historiador de arte e curador recordou que a catedral, com mais de 800 anos, "já não era atualmente o edifício original, mas o resultado de várias intervenções que foram sendo feitas ao longo dos séculos".
O incêndio na catedral de Notre-Dame, um dos edifícios icónicos de Paris e da arte gótica, que começou ao fim da tarde de segunda-feira, foi declarado extinto pelas autoridades francesas, pouco antes das 10:00 de hoje (09:00 em Lisboa).
"Acho que os franceses não vão reinterpretar a Idade Média. Vão limitar-se a copiar o que lá estava. Mas o que lá estava não é o original porque foi tendo alterações ao longo dos séculos", apontou o adido cultural português.
Pinharanda recordou que o monumento, com origem no século XII, tece alterações ao longo do tempo, nos séculos XIV, XVII e XIX, com várias intervenções que alteraram a sua imagem, nomeadamente o pináculo que caiu, concebido há cerca de um século.
"Na verdade, esta catedral é uma memória viva da cultura europeia - e, em particular, francesa -, política e social, por todas as épocas que atravessou", desde os casamentos reais, a sagração de Napoleão como imperador, e a própria Revolução Francesa, que lhe retirou a sua atividade original como local de culto para a transformar num mercado.
João Pinharanda acredita que os franceses não irão fazer grandes alterações ao monumento na sua futura recuperação, e que irão optar por uma "postura conservadora".
"Primeiro têm de fazer uma avaliação técnica ao próprio estado do edifício, o que se faz sempre nestas circunstâncias, e principalmente quando há incêndios e a estrutura é sujeita a temperaturas altíssimas. A pedra pode aparentemente estar boa, mas não estar em condições de aguentar um restauro, com risco de desfazer-se", comentou.
Depois dessa fase, disse, "terão de fazer estudos, pensar nas várias etapas do projeto", que irá demorar muitos anos a ficar concluídos.
"Mas os franceses já estão habituados a estas situações porque estão permanentemente a restaurar edifícios deste género, e sujeitos a situações parecidas".
Recordou o caso da catedral de Reims, no norte da França, que foi bombardeada pelos alemães, na primeira guerra mundial, e que ardeu totalmente.
"Ficou em pior estado do que a Notre Dame de Paris, e não se nota hoje nada", na sequência dos trabalhos de restauro de que foi alvo.
João Pinharanda disse que atualmente "existem capacidades técnicas muito sofisticadas para reproduzir totalmente o que foi perdido" no edifício.
Quanto às obras de arte no interior, o ministro francês da Cultura, Frank Riester, garantiu hoje que ficou a salvo o tesouro do interior da Catedral de Notre-Dame.
Numa entrevista à radio France Inter, o responsável indicou que as relíquias do tesouro, nomeadamente a coroa de espinhos que os cristãos acreditam ter sido usada por Jesus Cristo na crucificação, e a túnica de São Luís, foram resgatadas, e "estão seguras na Câmara Municipal" de Paris.
"Quanto ao órgão, parece ter sido bastante afetado, e os grandes quadros no interior, aparentemente não, mas podem ter sido também danificados pela água. Ainda é cedo para avaliar. Falta entrar lá dentro e retirar as peças que foram atingidas pelo fogo, fazer um diagnóstico para começar a restaurar", disse o ministro da Cultura.
Sobre este diagnóstico, o responsável indicou que deverá ainda levar meses a avaliar toda a extensão do sinistro, que se tornou num "drama" acompanhado em todo o mundo.
O órgão da catedral de Notre-Dame, conhecido pelo Grande Órgão, é um dos mais célebres e antigos do mundo, com os seus cinco teclados e cerca de mil tubos, remontando a origem da sua estrutura ao século XIII e aos compositores iniciais da chamada Escola de Notre-Dame - precursora da polifonia - Léonin e Pérotin.
A relação do património da catedral dá conta ainda de mais dois órgãos: o do coro, do século XIX, de dois teclados e dois mil tubos, e ainda um pequeno órgão positivo, móvel, de inspiração barroca, destinado a assegurar o acompanhamento de pequenos ensembles e vozes solistas.
Quanto aos quadros, têm origem na tradição dos ourives da capital francesa que, nos séculos XVII e XVIII, doavam pinturas sacras a Notre-Dame, encomendadas aos principais artistas da época, em honra da padroeira, sempre no primeiro dia de maio, como destaca o 'site' da catedral.
Conhecidas por isso como as "Mays", as pinturas constituem um núcleo representativo do Barroco e do Classicismo em França, segundo a catedral, que destaca telas como "São Tomás de Aquino e a Fonte da Sabedoria", de Antoine Nicolas, e "A Visitação", de Jean Jouvenet.
Muitos dos quadros desta coleção foram, ao longo dos séculos, partilhados com outras igrejas de França e o Museu do Louvre, não se encontrando em Notre-Dame.
Frank Riester disse que "o Estado francês tudo fará para recuperar o património perdido", e que "há pessoas que todo o mundo que já manifestaram disponibilidade para ajudar".
No entanto, ainda se desconhece a extensão do impacto do sinistro nos bens patrimoniais, não apenas das chamas, mas também do fumo, da água atirada pelos bombeiros e da queda dos materiais pesados.
A catedral possui três grandes janelas circulares com vitrais em forma de pétalas que contam cenas religiosas, incluindo episódios do Novo e Velho Testamento, das vidas dos apóstolos, e da ressurreição de Cristo.
Na sequência de publicações partilhadas milhares de vezes nas redes sociais sobre estragos nas rosáceas, o porta-voz de Notre-Dame, André Finot, desmentiu essas declarações, dizendo: “Daquilo que pude ver, os vitrais não foram tocados, as três belas rosas de Notre-Dame, que datam dos séculos XII e XIII, ainda lá estão, e esta manhã não se mexeram”.
André Finot realçou, citado pela AFP, que os vitrais do século XIX, “bastante menos importantes”, é que podem ter sido atingidos.
O incêndio, que demorou cerca de 15 horas até ser extinto, começou na segunda-feira, cerca das 18:50 locais (17:50 em Portugal).
A Procuradoria de Paris disse que os investigadores estavam a considerar o incêndio como um acidente.
"Majestoso e sublime edifício", como escreveu em 1831 o escritor francês Victor Hugo no seu romance “Notre-Dame de Paris”, a catedral foi construída em 1163 e iniciou a função religiosa em 1182.
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