Foi voluntário em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, na Amazónia e em Marrocos. Filho de imigrantes, licenciou-se em História, fez pós-graduações em Ciências da Educação, em Ciências Religiosas e em Direitos Humanos, é mestre em Gestão e Administração Pública e doutorando em Políticas Públicas. Antes de assumir a liderança da Amnistia Internacional Portugal, em 2016, Pedro Neto foi presidente da organização não-governamental para o desenvolvimento Orbis, em Aveiro, tendo realizado vários projetos nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e no Brasil. No nosso estúdio, no centro de Lisboa, desafiámo-lo a falar sem medos do medo que todos temos do desconhecido. Ele respondeu com duas palavras: direitos humanos.
Em 2019, mais de 74.000 requerentes de asilo chegaram à Grécia vindos da Turquia, sendo que a grande maioria (59.457) chegou por mar. Atualmente, 42.000 requerentes de asilo encontram-se amontoados nas ilhas do Mar Egeu em campos cuja capacidade total de alojamento é de 8.500 pessoas. 35% dos refugiados nas ilhas são crianças, na sua maioria com menos de 12 anos - e um em cada seis não está acompanhado por um adulto. Os dados são Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), publicados em janeiro deste ano. Há ainda quem tente chegar à Europa através de Itália (11.439 migrantes em 2019), quem seja resgatado na costa espanhola, quem tente a travessia no Canal da Mancha. Sucedem-se as mortes a lamentar, em alto mar, e as histórias de navios de socorro sobrecarregados sem autorização para aportar.
Migram porque fogem da guerra ou porque procuram uma vida melhor, razão pela qual muitos portugueses hoje e no passado também se colocaram a caminho. Mas agora eles são o outro — com crenças diferentes, hábitos diferentes, uma cultura que não partilhamos. O desconhecido gera medos e esses medos são explorados por partidos políticos de extrema-direita que defendem o encerramento de fronteiras, alertando para o risco da perda de uma matriz identitária e até da segurança que damos por adquirida quando saímos todos os dias para trabalhar.
"É uma falácia", diz Pedro Neto, mas para esvaziar a mentira é preciso falar sobre ela.
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Quando pensamos sobre os próximos dez anos, a questão das migrações está no centro do debate (e um debate aceso). Há vários motivos para as pessoas abandonarem as suas casas, a sua terra, seja por causa de conflitos armados, para fugir à pobreza, e há até novos motivos a considerar, como os efeitos das alterações climáticas. Isto coloca pressão sobre as comunidades que acolhem — e nem sequer estamos a falar de algo que nos é distante, já que há partidos políticos na Europa que têm como bandeira travar as migrações e que colhem votos junto do eleitorado. Começo já com uma provocação: quem dita as regras da casa? É a maioria? É quem acolhe?
As migrações são um desafio de sempre, desde que somos caçadores e recoletores. A mobilidade é uma incessante ao longo da História da humanidade na procura de meios de subsistência. Milénios mais tarde, inventou-se uma coisa a que se chamou fronteiras, que são linhas invisíveis (e outras vezes não tão invisíveis) que criam separações artificiais. Depois, começámos a organizar-nos em estados na Europa e exportámos esse modelo para o resto do mundo, o que também resultou em conflitos. As migrações são um desafio porque trazem mudança e todos os processos de mudança trazem desconforto, alterações, adaptações e o medo tem terra fértil nessa mudança, nesses processos. Aquilo que esses partidos políticos [de extrema-direita] tentam é capitalizar o medo das pessoas, e na incerteza é fácil cultivar o medo, é um sentimento ou uma sensação que facilmente pode crescer por si. E é preciso muito pouco para que o medo cresça e essas forças políticas mais extremadas têm-se aproveitado disso para atacarem os migrantes, os refugiados, que são um grupo mais vulnerável, que não tem uma voz mediática forte e não pode vir a terreiro defender-se. No nosso caso, Portugal, é difícil não conhecermos alguém que esteja fora ou tenha estado fora, ou até que tenha nascido fora — eu sou filho de imigrantes económicos que saíram da sua aldeia e mudaram de país à procura de uma vida melhor. Portanto, nós percebemos a legitimidade de ir à procura de uma melhor vida, mas muitas vezes esquecemo-nos que outros também vêm também para Portugal à procura dessa vida melhor. Até agora a narrativa sem sido centrada no medo, na mudança, e não no que de bom estas pessoas nos vêm dar e enriquecer a nossa sociedade, assim como nós fizemos quando fomos para outros países trabalhar e viver.
"A diversidade enriquece-nos, o encontro de culturas, o encontro de pessoas, só traz coisas boas, ninguém gosta de viver ou estar sozinho"
É o medo da globalização...
Nós vivemos anos de muita força em termos de globalização, não só económica, mas também cultural, e essa globalização tem coisas boas, mas também tem coisas más. Agora também percebemos que há forças antiglobalização que procuram voltar ao local, e há coisas boas nisso – se consumirmos produtos locais estamos a ajudar a nossa economia e estamos também a reduzir a pegada ecológica. As pessoas começam a ganhar consciência, depois de muitos anos em que viajar era uma coisa muito boa, seja para turismo, seja para trabalho, e começamos a ter uma certa tendência para permanecer no mesmo sítio, a não contribuir para a pegada de carbono que essas deslocações contínuas provocam. Portanto, o mundo vai-se equilibrando nestas tensões, ora mobilidade, ora estabilidade. Portanto, será uma época de desafios nesse aspeto e de tensões, mas eu creio que as tensões tenderão a levar-nos para o equilíbrio e eu creio que isso vai acontecer certamente em Portugal.
Tocou em dois pontos que são muito interessantes – um deles é o medo e o outro é o facto de se falar pouco sobre as consequências positivas das migrações. A primeira coisa que lhe pergunto é que consequências positivas é que vale a pena salientar quando estamos a pesar os pratos da balança?
Há muitos benefícios deste enriquecimento cultural. Vamos para a gastronomia, por exemplo, tínhamos a nossa cozinha portuguesa, que é muito boa, mas para experimentar outros sabores era muito mais difícil, teríamos de fazer viagens. Hoje, em Lisboa, ou no Porto, e até noutras cidades mais pequenas, temos restaurantes e podemos experienciar comida de outras regiões do mundo. Em termos culturais, podemos trocar experiências, podemos ter uma cultura muitos mais cosmopolita, aproveitar aquilo que estas pessoas nos trouxeram, o acesso a determinados produtos dos quais também gostamos de usufruir e que vêm agora até nós. Depois há também um enriquecimento em termos científicos — um dos maiores cientistas que conhecemos, o Einstein, foi refugiado. Temos muita massa crítica estrangeira que está neste momento em Portugal e que trabalha nas universidades e que nos enriquece desse ponto de vista científico e cultural também. Do mesmo modo, [é de salientar] a dinâmica que traz para a nossa economia a mão-de-obra em todos os tipos de trabalho, sejam os mais qualificados ou os menos qualificados, o mesmo aconteceu connosco quando emigrámos. Claro que, infelizmente, nem todas as pessoas são bem-intencionadas, há uma minoria das que possam vir e uma minoria das que já cá estão que podem receber mal, ser racistas ou xenófobas à conta desse tal medo de que falávamos, mas há muito de bom que é possível referir-se. A diversidade enriquece-nos, o encontro de culturas, o encontro de pessoas, só traz coisas boas, ninguém gosta de viver ou estar sozinho. Há uma última questão que é a seguinte: para o bem e para o mal vivemos numa economia que depende do crescimento para ser sustentável e, portanto, se vierem pessoas vão ajudar a esse crescimento — claro que depois há questões de pressão sobre o território, pelo menos eu sinto que estamos muito concentrados nas grandes cidades, mas isso é toda uma outra questão de organização e gestão do território que deve ser respondida com políticas de descentralização.
Falemos agora sobre os desafios, dos tais medos de que por vezes as pessoas não falam abertamente. Quando se fala em integração estamos a dizer que culturas diferentes se encontram num espaço comum de vivência e nós podemos ou não rever-nos nos seus hábitos, nas suas práticas, na maneira como olham para o mundo. A questão está exatamente em quando não nos revemos. Talvez a linha seja mais fácil de traçar em casos como os casamentos infantis ou mutilação genital feminina, mas há outros pontos menos claros, a título de exemplo assistimos a um enorme debate em França sobre a utilização da burca. Quem é que define o que é certo e o que é errado?
A integração traz sempre coisas boas para todas as pessoas, seja para as que estão, seja para as que chegam. A não integração é o que traz a separação, a diabolização, neste sentido etnológico de separação. Quando as pessoas não se encontram para perceber o que têm em comum tendem a separar-se e a confrontar-se de uma forma negativa, mais bélica. As culturas, apesar de serem diferentes, têm muitos aspetos em comum. Há aqui uma linha, e sou suspeito, mas que são os direitos humanos. Se forem respeitados é partir desse alicerce que podemos construir todos os edifícios que quisermos. Se respeitarmos os direitos humanos podemos construir uma sociedade que seja tolerante e respeitadora nas suas diferenças e nas suas igualdades. A questão da burca é muito simples: as mulheres têm de ter a liberdade de usarem ou de não usarem, é a escolha delas. Não me cabe a mim ou a legisladores definir isso. Se há alturas em que por motivos de segurança é preciso ver a cara e identificar as mulheres, muito bem, podem estar mulheres a fazer esse serviço de verificação, seja nos aeroportos ou sítios onde seja preciso controlar as entradas. A pessoa tira a burca, é identificada a identidade e volta a colocar. O que é importante é que seja uma escolha da mulher.
"Se alguém utiliza uma religião para justificar um ato que não é respeitador de direitos humanos está a instrumentalizar e a desrespeitar essa religião"
A mutilação genital feminina é uma afronta à dignidade da pessoa, à dignidade da mulher e neste caso da criança. A cultura não se sobrepõe aos direitos humanos, e eu creio que não há uma cultura que seja válida e aceitável se colocar em causa aquilo que são as razões mais basilares dos direitos humanos. A mutilação genital feminina tem o seu quê de ritual e de simbólico, mas esse ritual e esse simbolismo de passagem para a vida adulta pode ser feito sem mutilar alguém fisicamente, porque uma pessoa tem direito à sua integridade física, tem direito à sua identidade humana, à sua identidade sexual e, portanto, a ofensa física não tem de ter lugar, nem nenhuma religião pede isso. Se alguém utiliza uma religião para justificar um ato que não é respeitador de direitos humanos está a instrumentalizar e a desrespeitar essa religião. Do mesmo modo que se um partido político exigir o racismo, defender a xenofobia, defender a expulsão ou a prisão de alguém só pela etnia ou por aquilo que pensa, então não está a respeitar os direitos humanos e, portanto, está a instrumentalizar a política e os partidos políticos, que são organizações de matriz nobre, de serviço público. Eu creio que os direitos humanos são o alicerce que define tudo, a partir daí podemos construir uma sociedade multicultural, plural, que seja integradora e respeitadora de todas as pessoas e de todas as crenças, e podemos viver num mundo em paz. Sei que é utópico, mas é este o horizonte e a visão que temos de ter.
Portugal tem sido um bom exemplo de integração?
Portugal tem sido um bom exemplo em muitos aspetos e tem sido um mau exemplo noutros. Tem muito a ver com políticas públicas, com a forma como se administra essa integração. Nós vivemos numa realidade com bastantes constrangimentos orçamentais e há muitos serviços públicos que não aguentaram o crescimento das exigências e que, por isso, estão neste momento a prestar um mau serviço. A integração de refugiados, por exemplo, os que vieram recolocados da Grécia e da Itália sofreram dificuldades bastante grandes por causa disto mesmo. Por outro lado, o Estado delegou e descentralizou, bem ou mal, o acolhimento destes refugiados, mas não capacitou como devia. Não estão em causa as intenções das pessoas, do governo ou das organizações de acolhimento, mas há aqui um problema de capacitação e de trabalho de apoio às organizações para que esse acolhimento e essa integração seja efetiva. Houve também muita desinformação que contribuiu para uma ideia errada e para as soluções erradas sobre o acolhimento e integração de refugiados e migrantes. Importa agora é avaliar, monitorizar o que corre bem e o que corre mal para podermos corrigir o que corre mal e continuar o trabalho que estamos a fazer como país integrador.
"Dizer que a vinda de migrantes ou refugiados para cá, que são a minoria da população, pode pôr em causa ou em risco a nossa matriz cultural, as nossas religiões, as crenças de cada um, é uma falácia, é o tentar cultivar aqui medo onde ele não existe"
A cultura dá identidade a uma sociedade, os nossos padrões identificam-nos e fazem-nos sentir parte de algo, e há o receio de ao integrar outros esses padrões e essa cultura se percam, e com ela a nossa identidade. É um receio desfasado?
Eu creio que é um receio desfasado, porque a cultura e a nossa identidade histórica foi construída ao longo dos anos. As tradições são organismos vivos. Muitas tradições que temos foram trazidas pelos judeus que vieram para o território que hoje é Portugal, muitas tradições foram feitas pelos cristãos que também vieram para cá. Portanto, dizer que a vinda de migrantes ou refugiados para cá, que são a minoria da população, pode pôr em causa ou em risco a nossa matriz cultural, as nossas religiões, as crenças de cada um, é uma falácia, é o tentar cultivar aqui medo onde ele não existe. Antes de trabalhar na Amnistia Internacional trabalhei numa fundação que estava ligada à Universidade de Aveiro e à Diocese de Aveiro e nós organizávamos a ceia de Natal no dia 24 de dezembro para todos os alunos da universidade que estavam deslocados, longe das suas famílias, quer fossem portugueses ou viessem de outros países. A diversidade gastronómica, a partilha de culturas, das formas como se celebrava o Natal, o que todos traziam para a mesa e para o convívio nessa noite de Natal nunca pôs em causa a matriz cultural e a celebração do Natal como ela é feita cá nas suas várias formas, porque as pessoas que vinham também queriam conhecer e, portanto, o que havia era enriquecimento. Isto não é um bolo em que quantas mais fatias eu tiver menos ficam para o outro, é um espaço onde cabe toda a gente e onde cabem todos os contributos. Continuaremos com a nossa matriz e com a nossa cultura e com as nossas tradições, aquilo que mudará é que passaremos a ter outras novas e isso é muito bom.
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