Lembro-me dele a gatinhar. Eu teria uns 7 anos. 
Vivia no rés-do-chão do meu prédio e a mãe era aquela senhora simpática que um dia presenciou um dos muitos atropelamentos que aconteciam na passadeira em frente ao prédio. O prédio estava mesmo na esquina de um cruzamento tramado com uma passadeira para peões mal sinalizada. Na nossa casa, já encolhíamos os ombros, “olha, mais um” com uma falta de empatia a que a frequência e as defesas obrigam. A minha mãe ajudou essa senhora a acalmar-se. Entrámos na sua casa e enquanto as duas falavam, sentei-me num sofá com a cerimónia que a ocasião exigia e entretive-me a olhar para a criança.

Algum tempo depois, mudaram de casa. O rés-do-chão, dizia a minha mãe, era a casa mais pequena do prédio. Apartamento, como dizem hoje. 
O pai tinha-se transformado numa referência dos números, ao bebé juntara-se uma irmã e a situação obrigou a uma casa maior.

Não lhes perdi totalmente o rasto. Lembro-me de os ver, a mãe, o filho que já não era bebé e a irmã que, entretanto, nascera, na praça, aos sábados de manhã, enquanto escolhíamos, ou escolhia a minha mãe, as couves e o peixe para o almoço, quiçá para a semana.

Fomos crescendo. Estudámos, fizemos amigos, viajámos, encontrámos amores, ou o que a isso mais se assemelhava. Eu vivi no estrangeiro, ele namorou uma forasteira, que vinha de longe. Ainda a viver longe, reconheci-o num vídeo. Um vídeo sobre a cidade onde se encontrava essa esquina. A nossa cidade. Um sítio cheio de idiossincracias, expressões próprias e histórias marcantes, que ele, com um amigo, captava como ninguém. Passei a acompanhar parte dessa sua vida que sentia um pouco como minha. “Olha, o puto do rés-do-chão. Tem piada, o puto.”

O reencontro deu-se anos mais tarde, por um acaso, causando uma memória vaga daqueles tempos do prédio na esquina tramada. Os dois na casa dos 30, os mesmos 7 anos a separar e, nesse momento, percebemos. Percebemos que demos voltas, vivemos mundo, conhecemos pessoas, mudámos de cidade, mas o amor, esse, esteve sempre ali, naquele vão de escadas onde nos cruzávamos, ele a gatinhar, a mãe nervosa e eu com cerimónias.


Texto por Elisa BaltazarHoje, Dia dos Namorados, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítuloassinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão. 

Leia também: 

Três vezes antes do cantar do galo

Vamos falar de Amor

Há sítios

Estou em casa

A luz ao fundo do túnel

Amor — Fragmento de uma memória

Falar de Amor

Treze de maio

Amor