A descentralização de competências do Estado central tem sido um objetivo dos Governos e das autarquias nas últimas décadas.

Anteriormente ao atual processo em curso, já havia transferência de competências dos Governos para os municípios, que era feita pela celebração de contratos interadministrativos de delegação de competências entre o Estado e cada autarquia.

O primeiro Governo socialista de António Costa assumiu a descentralização para os municípios como uma promessa eleitoral e em 2018 foi publicada a lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais, que estabelece os termos da descentralização em cerca de 20 áreas.

Este processo destina-se às 278 Câmaras do continente, já que os municípios dos Açores e da Madeira negoceiam com os respetivos Governos Regionais.

O Governo assumiu que a descentralização seria o primeiro passo para, finalmente, existir um processo de regionalização, prevista na Constituição desde 1976 e que remeteu para depois de 2024.

No entanto, diversos autarcas têm contestado o processo desde o início, sobretudo por considerarem insuficientes as verbas que o executivo nacional quer atribuir para desempenharem estas competências, sobretudo na Educação e na Saúde.

Na realidade, também a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), dirigida por socialistas nos últimos mandatos, tem sucessivamente contestado as verbas em causa e pedido a sua atualização.

O presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, regionalista convicto e favorável a que os municípios tenham mais competências, tem encabeçado desde o início o grupo de autarcas descontentes com o processo em curso, sobretudo por causa dos meios financeiros, o que acabou por resultar na proposta e aprovação da saída do Porto da ANMP, por não se sentir representado.

Os municípios podem aceitar exercer as competências desde 2019 no âmbito deste processo, que mais de três anos depois ainda não está concluído.

Lei-quadro

A lei-quadro da descentralização de competências do Estado central para as autarquias locais e entidades intermunicipais foi promulgada pelo Presidente da República em 02 de agosto de 2018. Estabeleceu a descentralização em 20 áreas, de uma forma genérica, que depois seriam desenvolvidas em diplomas setoriais.

Aquando da promulgação, Marcelo Rebelo de Sousa fez reparos e alertou para um possível "alijar das responsabilidades do Estado", uma visão secundada pelo então presidente da ANMP, Manuel Machado.

A nova lei resultou de um acordo entre PS e PSD, após negociação com a ANMP, em nome de todos os municípios, porque o executivo entendeu que não seria viável negociar regras uniformes para todos com cada município do continente.

O diploma previa que a transferência de competências fosse iniciada em 2019 e fosse progressiva, implicando a transferência de “recursos humanos, patrimoniais e financeiros”, e perspetivando-se que estivesse completo até janeiro de 2021, de forma a acompanhar aquele ciclo autárquico.

Os municípios poderiam aceitar desempenhar cada competência até ao momento em que a transferência fosse considerada definitiva para todos. Foi prevista e depois constituída uma Comissão Independente para a Descentralização, para avaliar a adequação dos recursos financeiros de cada área de competências.

As principais áreas em que as autarquias tiveram competências próprias são na Educação, na Saúde, na Ação Social, na Proteção Civil, na Cultura, na Justiça, no Património e na Habitação.

Prorrogação dos prazos na Educação, Saúde e Ação Social

As negociações entre o Governo e a ANMP atrasaram-se em áreas como a Educação, a Saúde e a Ação Social, que envolviam a transferência de funcionários, equipamentos e, em consequência, montantes financeiros.

As verbas a transferir têm sido o ponto central destas dificuldades, uma vez que são consideradas insuficientes pelos municípios para o desempenho que é pretendido dos municípios na Educação e na Saúde.

O atraso da publicação dos diplomas levou à prorrogação do prazo para que os municípios assumissem definitivamente estas competências, de 01 de janeiro de 2021 para 31 de março de 2022. No caso da Ação Social, como o diploma setorial foi publicado já este ano, o prazo foi prorrogado até ao final deste ano.

Em 1 de abril, quando era esperado que os municípios assumissem definitivamente competências na Saúde e na Educação, menos de metade dos municípios elegíveis (201 na Saúde e 278 na educação) tinham assumido as competências voluntariamente.

Quanto às restantes 17 competências, o Governo considerou-as transferidas em 01 de janeiro de 2021, nas áreas da Cultura, Habitação, Justiça, Atendimento ao cidadão, Gestão do património imobiliário público, Vias de comunicação, Praias, Áreas portuárias, Transporte em vias navegáveis interiores, Cogestão de áreas protegidas, Proteção civil, Policiamento de proximidade, Segurança contra incêndios, Estacionamento público, Jogos de Fortuna e de azar, Arborização e rearborização e Associações de bombeiros.

Principais motivos de contestação

A ANMP e os seus autarcas, que sempre reivindicaram mais competências próprias, aprovaram genericamente as áreas propostas pelo Governo, mas avaliaram desde o início como insuficientes as verbas que as acompanhavam.

As negociações atrasaram a publicação dos diplomas setoriais nas áreas que exigiam transferências financeiras, como a Educação, e os municípios exigiram “estudos que identificassem, em concreto e em termos globais, qual o património, os recursos humanos e financeiros” envolvidos.

Além das vozes individualmente dissonantes, em meados de janeiro de 2020, um grupo de autarcas liderados pelo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, publicou a “Declaração do Rivoli”, assinada por mais de 20 presidentes, instando o Governo a suspender os prazos de obrigatoriedade e a retomar o “processo negocial” com os municípios, por considerar o calendário “impossível” e as verbas insuficientes.

Em 25 de janeiro deste ano, quando se aproximava o prazo para a obrigatoriedade na Educação e na Saúde, Rui Moreira lamentou a falta de resposta do Governo aos autarcas da “Declaração do Rivoli” e anunciou que o Porto iria tentar travar a descentralização nestas duas áreas com uma providência cautelar, acusando a ANMP de ser cúmplice do Estado central.

Em 07 de março, os presidentes das câmaras do Porto e de Lisboa enviaram uma carta ao primeiro-ministro, António Costa, apelando para que o prazo fosse prorrogado.

Na carta, os dois autarcas consideravam que, desde o início, o processo de descentralização tem revelado “inúmeras dificuldades e inconsistências” e afirmaram que o calendário estabelecido, “pela sua estreiteza” e “atraso na publicação de diplomas setoriais”, não permitiu uma “reflexão cuidada” nem a “devida adaptação e preparação” dos serviços para as novas competências.

Por outro lado, consideraram que tanto o envelope financeiro previsto como os recursos humanos são “manifestamente desadequados e aquém das verdadeiras necessidades”, podendo “colocar certos municípios em risco de falência”.

No final do ano passado, após o chumbo do Orçamento para 2022, foram os autarcas social-democratas a exigirem um adiamento.

A saída do Porto da ANMP

Em 19 de abril, a Câmara Municipal do Porto aprovou a saída da ANMP, por querer assumir de forma “independente” e “sem qualquer representação” o processo de descentralização.

A proposta foi apresentada pelo presidente, que disse que não se sentia em “condições” para passar “um cheque em branco” à ANMP para negociar com o Governo a transferência de competências. A saída da associação foi ratificada também pela Assembleia Municipal do Porto no final de maio.

Outros municípios, como Trofa (PSD-CDS/PP), Póvoa de Varzim (PSD), Vale de Cambra (CDS-PP), Pinhel (PSD) e Coimbra (coligação liderada pelo PSD), ameaçam abandonar ou discutir a saída da ANMP, invocando os mesmos motivos.

Após uma audiência com o Presidente da República, no dia 06 de junho, Rui Moreira disse que a decisão de abandonar a ANMP “não foi uma atitude precipitada” e afirmou que o Porto “não tem nada que negociar” nem com a ANMP nem com o Governo.

“Quando [a descentralização] nos é imposta na data e nas verbas, peço desculpa, não há diálogo. Na reunião que eu tive com a ANMP, no âmbito da Área Metropolitana do Porto, foi-me dito que esta era a lei que eu tinha de cumprir. Se isto é diálogo, estamos conversados”, afirmou.

E reiterou: “Eu, de facto, não tenho nada que dialogar nem que negociar com o Governo ou com a ANMP”.

Rui Moreira pediu a Marcelo Rebelo de Sousa o veto do Orçamento de Estado para 2022, para que o documento volte a ser avaliado pelo parlamento e possam ser revistas as verbas atribuídas à descentralização, mas o Presidente considerou que isso teria "um custo enorme" para o país.

No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa admitiu que deverá enviar “uma mensagem à Assembleia da República para sugerir ou solicitar um debate alargado sobre a descentralização”.

Governo considera ANMP “o interlocutor” único

O Presidente da República reagiu primeiro do que o Governo à saída do Porto da ANMP, apelando ao diálogo e a uma solução de compromisso para a descentralização de competências para as autarquias, com recursos orçamentados para 2023 e sem "deitar fora o peso de uma instituição" como a associação.

A ministra que tutela as autarquias, Ana Abrunhosa, reafirmou a disponibilidade "total" do Governo para o diálogo no âmbito do processo de transferência de competências.

No entanto, a ministra reiterou que, como consta da lei-quadro, a associação de municípios é "o interlocutor” único do Governo para negociações, "independentemente do número de municípios" que, depois do Porto, possam vir igualmente a desvincular-se da associação.

Ana Abrunhosa reuniu-se com a ANMP em 06 de junho, no dia em que o conselho diretivo da associação decidiu propor a marcação de uma reunião extraordinária do conselho geral da organização, para discutir a "atualização das verbas e revisão de critérios relativamente à descentralização", entre outros assuntos.

No dia seguinte à aprovação da saída da autarquia portuense da ANMP, a presidente da associação, Luísa Salgueiro, disse que registou a decisão do município e assegurou que irá continuar a trabalhar “do mesmo modo” na defesa dos interesses de todos os municípios do país, Porto incluído.

Orçamento do Estado para 2022

A proposta rejeitada em 2021 do Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) previa, através de um Fundo de Financiamento da Descentralização (FFD), 832 milhões de euros para o exercício da Educação, Saúde e Ação Social pelos municípios entre abril e dezembro deste ano.

No âmbito das negociações, e já após a rejeição inicial do OE2022, foram várias as propostas de alteração apresentadas pela ANMP, nomeadamente quanto aos valores atribuídos à descentralização.

Na versão final do documento, o parlamento reforçou em 10,8 milhões de euros as verbas do FFD destinadas à Educação e estabeleceu também alterações às verbas anuais a atribuir aos municípios por cada escola que assumam, segundo critérios de área e de idade do edifício, quando até agora os municípios tinham como referência 20 mil euros anuais para encargos com a manutenção e conservação de equipamentos escolares, independentemente do seu estado.

Segundo a proposta aprovada, 729,5 milhões de euros do montante total de 832,4 milhões de euros do FFD são para a descentralização no âmbito da Educação. A proposta inicial previa para a Educação até 718.750.480 euros.

O OE2022 estabelece ainda a suspensão “excecional” de algumas regras orçamentais e o aumento para 40% da margem de endividamento dos municípios “exclusivamente para assegurar o financiamento nacional de projetos cofinanciados na componente de investimento não elegível".

Educação, Saúde e Ação Social

No caso da Educação, a lei transfere escolas do ensino básico e secundário para o município, que fica responsável pelo planeamento da oferta educativa, do transporte escolar, do investimento nos edifícios escolares, da gestão da ação social escolar, do fornecimento de refeições, da gestão das residências escolares e da vigilância e segurança dos equipamentos educativos (em articulação com as forças de segurança).

Os municípios passam a ser responsáveis pelo “recrutamento, seleção e gestão do pessoal não docente, transferindo-se o vínculo do Ministério da Educação”.

No caso da Saúde, é transferido para o município a responsabilidade pela gestão operacional e financeira dos centros de saúde do Serviço Nacional de Saúde (SNS) disponíveis à população na sua área geográfica, designadamente a manutenção, conservação e gestão dos equipamentos e serviços de apoio logístico.

Na Saúde está prevista a transferência de cerca de 1.800 trabalhadores, 600 equipamentos e 900 edifícios para os municípios.

Já na Ação Social, entre outras competências, transfere-se para o município a responsabilidade pelo desenvolvimento de programas de promoção de conforto habitacional para pessoas idosas, pelo serviço de atendimento e de acompanhamento social, pela atribuição de prestações pecuniárias em situações de carência económica, pela celebração e acompanhamento dos contratos do rendimento social de inserção (RSI) e pelo apoio à família para crianças que frequentam o ensino pré-escolar da rede pública.