Não há ninguém que não lesse as colunas do pitoresco/picaresco VPV, embora provavelmente fosse o comentador com maior percentagem de ódios de estimação na comunicação social portuguesa. Também, não fazia nada para não o ser: as suas opiniões atiravam sempre facas afiadas e, pessoalmente, era conhecido pelo seu mau humor. No entanto, VPV era um génio – um tipo de génio difícil de definir, mas indiscutível.

João Céu e Silva, que além de jornalista é investigador histórico e romancista, dedicou-se nos últimos anos a uma série de retratos de homens de letras de personalidade difícil, passe o pleonasmo: José Saramago, António Lobo Antunes, Miguel Torga e Manuel Alegre (e também dum político, Álvaro Cunhal). Não lemos esses livros, mas este é um modelo biográfico excecionalmente interessante. Porquê? Porque a biografia propriamente dita, ou seja, as peripécias da sua vida, formam apenas 23 de 294 páginas. O grosso da obra é a opinião de Vasco Pulido Valente sobre a História de Portugal nos últimos dois séculos – uma visão impiedosa, contundente, mas que, vista agora como um todo, tem uma lucidez impressionante.

Depois da revelação de que VPV não foi apenas um snobe impertinente, mas sobretudo um analista muito inteligente da nossa realidade, não resistimos a falar com João Céu e Silva sobre esta aventura de que se se saiu tão bem.

O livro é difícil de classificar porque não é uma biografia, é uma História de Portugal contada pelo VPV. Depois, no final, tem uma parte, aliás muito boa, em que usas os arquivos do DN para fazer uma biografia. Mas não é o essencial do livro.

Eu explico qual é a razão do formato do livro. Nesta coleção, que já vai no sexto volume, o objetivo é falar com pessoas que têm obra literária. O VPV não tem uma grande obra literária, mas tem livros de História, e eu considero que a forma como ele escreve é literária, ou seja, os livros de História dele leem-se como romances, como literatura.

São romances, lá isso é verdade.

E então a minha intenção era falar com ele sobre a História dos últimos dois séculos de Portugal. Desde 1807, quando o rei, então príncipe, D. João VI, foge para o Brasil, até agora. E o objetivo era responder à seguinte pergunta: a atualidade, o que nós vivemos, decorre deste corte, da ida do D. João VI, das Invasões Francesas? E assim falar do século XIX de que ele tanto gostava. O que nós estamos a viver ainda resulta desse período. E acho que foi esse mote que fez com que ele aceitasse conversar comigo.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Portanto, foste tu que propuseste as entrevistas? Essa tua coleção devia chamar-se “Figuras difíceis da literatura portuguesa”.

Mas sabes que, depois de eu os conseguir convencer – o Saramago demorou dez meses, o Lobo Antunes foi mais fácil –, ao final de umas quatro ou cinco sessões, eles sentem-se envolvidos na forma como falo com eles, o que lhes peço, e normalmente eu quero que eles falem do coração do que quiserem. Então, ao fim de algumas sessões entramos num estágio de “namoro”, que depois continua até ao fim.

Do que é que ele morreu?

Tinha problemas neurológicos graves. Falta de sensibilidade nas mãos e nos pés... Esteve internado dois anos antes, num estado muito difícil. Não se falou nisso, mas foram complicações neurológicas. Não tenho a certeza, mas acho que foi como o Zeca Afonso, que morreu daquela doença...

ELA, esclerose lateral amiotrófica.

Ele estava muito desanimado com a vida. Não só desanimado; ele não compreendia o mundo em que estava a viver nos últimos anos. Essa história das redes sociais, da força da televisão, dos comentadores impreparados que falam sobre tudo, isso irritava-o. Ele achava que tinha perdido o seu lugar na imprensa portuguesa porque agora qualquer um falava.

Esse é um ponto interessante: ele diz que desperdiçou a vida na atividade jornalística porque queria ser político. Mas há uma certa ambiguidade, porque ele sobretudo falava de política. Quer dizer, acabou por ser um político, mesmo não tendo atividade política expressiva (exceto em dois ou três curtos períodos, quando participou do governo e foi deputado). No final do livro ele diz exatamente o contrário: “Quando penso, nunca me penso como um político.” Mas ele exercício a política através do jornalismo.

Eu acho que ele, quando chega aos 78 anos, a coisa que mais lamenta é não ter escrito uma História do séc. XIX, entre 1807 e 1926. Eu não concordo com isso, porque acho que o que ele escreveu, as crónicas e os ensaios, fazem mais ou menos essa História. Se colarmos tudo, temos o período completo, ou quase.

Aliás, devo dizer-te que vou passar o teu livro ao meu filho, que tem 19 anos, porque tu conseguiste resumir perfeitamente a História de Portugal desse período, através da voz dele. Em vez de ler vários calhamaços, basta este livro para se ter uma ideia do que realmente aconteceu. Quer dizer, ele é parcial, mas é factual. A propósito, ele fala do Oliveira Martins, e de facto isto é a continuação do “Portugal Contemporâneo” – ou seja, uma História não neutra. A História neutra não existe, é sempre uma visão opinativa. Há historiadores que assumem que têm uma opinião, como o Oliveira Martins e ele, e há historiadores que dizem que têm neutralidade política, mas acabam por ser parciais.

Quanto à tua pergunta, ele sente-se muito frustrado por não ter escrito essa História. Depois, quanto a mim, a segunda grande frustração dele é o Sá Carneiro ter morrido – no que ele considera um acidente –, e isso foi uma coisa que me surpreendeu. É uma afirmação definitiva para ele: Sá Carneiro não tinha juízo, não se protegia, e daí ter sido vítima dum acidente. O Vasco, ao não ter conseguido manter aquela parceria com o Sá Carneiro, não conseguiu criar uma ideologia de direita, que era o seu grande sonho. Era criar uma fundamentação ideológica para a direita portuguesa pós-25 de Abril. E isso deixou-o muito frustrado.

As suas atividades políticas, enquanto sub-secretário de Estado, conselheiro do Sá Carneiro, foram muito complicadas, porque ele não tinha feitio de político. É no jornalismo que eu acho que ele se torna o que queria, que é uma espécie de ministro, ou de Governo Sombra. Ele diz o que acha sobre o que se está a passar no momento, portanto é um ministro sombra sem poder, a dar a sua opinião sobre o que os outros estão a fazer.

Ou seja, ele tem uma grande afinidade com a política durante toda a sua vida, e até influência as políticas pelos seus comentários, e isso satisfazia-o muito. Tem uma frase muito curiosa, em que diz que não era uma personagem principal, antes secundária, mas “as zaragatas em que me meti não eram secundárias!”

É curioso que, nessa busca nos arquivos, encontrei uma entrevista que dá uma faceta diferente dele: depois de ser secretário de Estado da Cultura, o que ele gostaria era de ser arqueólogo, de se dedicar à arqueologia. Descobri isto numa entrevista de 1980. E de facto, enquanto ele foi secretário de Estado, apoiou imenso as instituições da arqueologia. Portanto o que disse na entrevista não foi uma boca, uma “boutade”. O seu interesse na História do séc. XIX foi como que uma atividade de arqueólogo sobre um período tão mal estudado, ou tão mal estruturado.

Aliás, devo dizer que melhorou muito a impressão que eu tinha dele, porque, apesar de ser sobretudo uma pessoa mal com a vida, pessoalmente, é extremamente lúcido. A maioria das coisas que ele diz sobre o século XIX são de facto verdade. Também concordo com ele que o que nós vivemos hoje em dia ainda é o resultado da Revolução Liberal.

O que ele diz tem um grande fundo de verdade, porque toda a estrutura administrativa do país remonta ao século XIX. Ainda temos 308 concelhos. Há várias estruturas da administração que vêm todas dessa época. Foi quando foi instituída a formatação presente.

A Revolução Liberal trouxe Portugal para a Idade Moderna. Antes, vivíamos num verdadeiro Ancien Regime. É quando se cria o Estado burocrático do Nouveau Regime, com o funcionalismo público, a distinção entre os bens do rei e o erário público. Criam-se estruturas administrativas, acaba-se com o poder material da Igreja, que anteriormente era o maior proprietário do país. Portanto, o Portugal moderno nasce da revolução e esse país, nisso concordo com ele, não mudou muito. Agora temos a Internet, mas o essencial da nossa maneira de gerir a coisa pública, da nossa maneira de ser política e social, continua na mesma. Continuamos a ser mesquinhos e invejosos...

Ele faz uma listagem de todos os pronunciamentos militares que aconteceram no século XIX, que são centenas, e quando chegamos ao 25 de Abril, ele faz questão de dizer isto: o 25 de Abril é a mesma coisa, ou seja, os capitães não fazem uma revolução, fazem um pronunciamento – e ele usa essa palavra – que é igual aos de 1850, 1877... A estrutura de Portugal que vai desembocar no 25 de Abril é a mesma. A questão das colónias e o peso das colónias, isso já era muito discutido no século XIX e serviu de bandeira. Muita gente até o criticava por falar de mais no século XIX. Mas ele não usava isso como muleta, mas para dizer que nada do que estávamos a viver atualmente era diferente do que tínhamos vivido a partir de 1807. Considerava as Invasões Francesas como sendo o grande momento em que a História de Portugal muda irreversivelmente.

E tu concordas com isso?

Concordo.

Eu também, acho que é a leitura correta.

Eu sou formado em História, mas o meu conhecimento do séc. XIX era muito residual. Porque, realmente, é uma História aos ziguezagues constantes e é preciso dominar muito a matéria para perceber. Acabei por ter um curso acelerado com as suas explicações. Falamos semana após semana sobre o período. E como eu tinha vergonha de não saber, quando acabávamos uma sessão combinávamos, então para a semana falamos do Dom Miguel e então eu ia estudar o assunto que era para ele não me apanhar. Portanto andei a estudar também.

Ele até dizia uma coisa gira: “Quando eu me ia deitar, na altura em que o Mário Soares era Presidente ou Primeiro-ministro, eu, que nem era crente, agradecia a Deus o Mário Soares estar a tomar conta do país, porque era a única garantia de que não acordaria assustado”.

Eu gosto muito de História, apesar da minha formação ser em Economia, mas acho que o século XIX foi um século de viragem completa. Atribuo isso ao comboio, por exemplo, que tornou possível a mobilidade e também as grandes cidades, que não eram viáveis sem o abastecimento industrial proporcionado pelo transporte ferroviário. Realmente o mundo entrou num processo de transformação acelerado que nem sabemos como vai acabar – possivelmente não vai acabar muito bem, mas que é inevitável.

No Ancien Regime as coisas não eram colocadas em questão; havia uma hierarquia e as pessoas nasciam e morriam dentro do mesmo mundo. Passavam séculos e continuavam com a mesma perceção do Universo. No século XIX a Ciência passa a ter mais importância do que a religião e isso é uma mudança abissal. E ele explica isso muito bem. Aliás, é impossível distinguir o VPV pessoa das ideias dele. Não concordo com muitas das suas conclusões, mas as análises são perfeitas.

Surpreendeu-me muito saber que a morte do Sá Carneiro foi tão importante para ele – é praticamente a única pessoa por quem mostra uma certa veneração.

E pelo Mário Soares também.

Sim, mas doutra maneira. É evidente que o Mário Soares era uma personalidade especial – ele queria é que toda a gente gostasse dele, era um charmeur, e, portanto, também deve ter feito charme ao VPV...

O Vasco conhecia o Mário Soares desde pequenino, porque ia à prisão visitar um tio e via-o lá. Portanto, na memória do VPV, o Mário Soares existiu sempre. Ele até dizia uma coisa gira: “Quando eu me ia deitar, na altura em que o Mário Soares era Presidente ou Primeiro-ministro, eu, que nem era crente, agradecia a Deus o Mário Soares estar a tomar conta do país, porque era a única garantia de que não acordaria assustado”.

Para ele, o Sá Carneiro era outra coisa: representava um projeto de vida, que era criar esses tais fundamentos dum projeto de direita para Portugal. Daí que a morte de Sá Carneiro tenha sido um choque violentíssimo. Então é o Mário Soares que acaba por substituir o Sá Carneiro. No escritório, ele tinha perto de si uma fotografia dele, o Carlos Macedo e o Sá Carneiro a assinar o acordo da Aliança Democrática, e ao lado a fotografia do Mário Soares autografada. Pelo Mário Soares, ele tinha uma veneração, porque achava que sem ele não haveria Democracia em Portugal. Foi o homem que lhe permitiu voltar a viver no país mais ou menos descansado. Acho muito curioso, porque o Mário Soares tinha outras ideias, era de esquerda, e quando queria irritar o Vasco dizia “vocês andaram metidos com o Sá Carneiro!” Isso era a forma de ser do Mário Soares, mas gostava muito dele. A certa altura, o Vasco diz que o Soares lhe cortou certas ambições, mas acrescenta que ele já morreu, não vale a pena falar sobre o assunto. E afirma que, se não tivesse havido o 25 de Novembro, o Cunhal teria mandado matar o Soares – foi uma coisa que me surpreendeu imenso. Quando já tínhamos acabado a sessão, ele de repente sai-se com aquilo. Eu, com o meu sentido jornalístico, não reagi diretamente, mas cerquei-o de perguntas sobre o assunto. Ele fez questão de deixar duas ou três afirmações surpreendentes.

"Acho que o VPV se sentiu traído pelo Eanes. Gosta de ressaltar a amizade, mas acha-se traído pelas políticas que o Eanes acabou por desenvolver"

Bem, isso de que o Cunhal mandaria matar o Soares é uma especulação, não há nenhumas provas, mas não é uma especulação fátua...

Se nos lembrarmos daqueles anos de 1975-76, aquilo foi muito violento. Para mim, foi a parte mais complicada de incluir no livro, porque não queria que fosse interpretado como uma especulação, mas ele fez questão de deixar isso escrito. Mas depois também é engraçado que ele, sendo de direita, tinha uma opinião de muito respeito sobre António Costa. Achava que o António Costa não era comparável com o Mário Soares, mas também era uma figura que o deixava viver descansado. Diz que, enquanto o António Costa lá estiver, que é muito bom político, vai conseguir manter o país controlado. Porque houve aquelas greves dos camionistas e o António Costa teve uma atitude musculada. Ele ficava descansado quando os governos tomavam as atitudes que ele considerava corretas. Eu estranhei imenso... não que ele gostasse do Costa, mas respeitava-o e até achou muito interessante aquela solução da geringonça, que foi um nome inventado por ele, porque considerava que o hoje em dia os partidos estavam um pouco ultrapassados em relação à realidade social. Quando foi hospitalizado conheceu enfermeiros que eram altamente especializados, tinham tirado vários cursos. Ou seja, dizia ele, “aqueles enfermeiros não são pessoas que estão ali para dar uma injeção; não, eles são conhecedores, especializam-se, e, logo, têm de ser tratados de outra forma.” Ele considerava que, tanto o Bloco de Esquerda como o Partido Comunista e uma ala mais à esquerda do PS tinham essa noção de que o mundo mudara e que era preciso que os partidos se adaptassem à realidade.

Também me surpreendeu o que ele diz sobre o Eanes, porque atualmente há um consenso de que o Eanes é o mais respeitador da democracia de todos os nossos políticos e tem-no demonstrado nas afirmações publicas que faz. E há uma consideração geral por ele. Ora, o Vasco Pulido Valente considera-o um autoritário, exatamente o contrário.

Eu acho que a primeira coisa que o irrita no Eanes é a mulher. A Manuela irrita-o solenemente e ele acha que ela muitas vezes teve peso em certas decisões. Depois irrita-o a história da formação do PRD, que acha desnecessário. E depois considera-o aquele português típico que não deu “o salto”. Vai fazer um doutoramento numa universidade de Navarra, que é uma instituição de segunda ou terceira, vai fazer coisas de que não precisava. E acho que ele, VPV, se sentiu traído pelo Eanes. Gosta de ressaltar a amizade, mas acha-se traído pelas políticas que o Eanes acabou por desenvolver, em vez de se manter como uma figura afastada da política.

Bem, aquela aventura do partido dele, o PRD, foi um disparate que alguém lhe meteu na cabeça...  Mas estranhei que o Vasco não tivesse visto esse lado democrata e republicano do Eanes.

Eu não vou dizer que o VPV tenha aproveitado estas conversas para fazer um testamento. Não. A ideia dele, depois da proposta que lhe fiz, foi voltar a falar do século XIX. Disse-me várias vezes que nunca imaginou que voltasse a ter essa oportunidade, de perorar sobre o que mais gostava. Ao fim da segunda ou terceira conversa, quando a coisa começou a ganhar sentido, virou-se para o que mais gostava, o D. Pedro IV, o Duque de Saldanha... Esse foi o seu principal prazer. Se usou o livro para fazer algum testamento, não acho. Os temas iam surgindo. Eu chegava lá todas as segundas-feiras às cinco e meia, e a primeira meia hora era para aquecer e falávamos da política atual, nacional e internacional. Era uma altura em que o Brexit estava na ordem do dia. Ele gostava de conversar comigo porque não tinha muitas visitas, não saía, dizia que os amigos já tinham morrido ou se afastado, então “usava-me” para discorrer sobre a atualidade, sobre o que via na televisão ou lia nos jornais. Contudo, houve coisas que ele fez questão de deixar. Por exemplo, o Salazar, que é o maior capítulo do livro. Em setembro de 2019, quando regressa das férias em Amarante, diz-me que quer falar nele. A última coisa que eu estava à espera era que ele se dedicasse tanto a Salazar. Faz questão de esmiuçar Salazar de uma ponta à outra. Considerava que era a pessoa mais horrível deste país.

Acho muito interessante a tese dele, bastante pertinente, de que o Salazar era um “servidor” da Igreja. É essa a palavra que ele usa, servidor. Que a única obediência do Salazar era para como a Igreja. Eu nunca tinha visto isso dito assim, mas faz sentido realmente.

Encaixa bem, sim. Ele fez questão de falar sobre o Salazar porque é assim que ele faz um balanço deste século XX português. Mostra os hábitos portugueses e, principalmente, desnuda o Salazar e a Igreja. O peso que o Salazar tinha na vida portuguesa, através da PIDE, através dos seus discursos; e depois, quando o Salazar se sentiu traído pela Igreja. O VPV fala num discurso que ele fez no Pavilhão dos Desportos, com as mãos no coração. E aí ele, Vasco, entendeu que o país tinha parado. Salazar compara-se a Jesus, que também foi traído. É uma visão que eu não tinha, mas, ouvindo o discurso, ele mostra o papel da Igreja, aquela história do aggiornamento, da Igreja se querer modernizar, e o Salazar o não queria acompanhar essa modernização.

E o VPV faz esta ligação porque depois é a Igreja que vai impedir o Sá Carneiro de se candidatar a Presidente da República, porque não aceitava a relação “de luxúria”, digamos assim, com a Snu. O que alterou radicalmente a vida do PSD e do próprio Sá Carneiro. O que eu acho é que o Vasco deu uso às nossas conversas para expressar aquilo que, depois de expresso no regime do Salazar, se liga diretamente ao papel da Igreja no início da nossa democracia. E até dá exemplos do Sá Carneiro andar a passear pelo país (e encontrar uma grande hostilidade).

O único texto que o Vasco escreveu sobre o Salazar tem 14 páginas. É um ensaio que saiu na revista Kapa e que depois fez parte de um livro com várias histórias avulsas. E ele faz questão de mostrar o papel da Igreja para Salazar chegar ao Poder, e, pelo meio, mete grande parte da História do nosso séc. XX.

Outro assunto que me chamou a atenção no livro foi a referência ao romance dele, o “Glória”, que se baseia na vida dum político menor do século XIX, José Cardoso Vieira de Castro. Quando li o “Glória”, achei que era mais um exemplo do mau caráter do Vasco. Porque o grande vilão do livro é o Camilo Castelo Branco! Na altura pensei, o Polido Valente escreveu este livro para deitar abaixo o Camilo porque, como te deves lembrar, ele relata que o Camilo escrevia ao Vieira de Castro, que estava na prisão e sem acesso ao mundo, dando-lhe força e apoio, e a dizer que lutava publicamente por ele, quando de facto fazia o contrário, destruía-o na imprensa. Segundo o “Glória”, o Camilo teve um papel muito hipócrita.

Ora, isto é interessante, porque nas tuas entrevistas, o Vasco diz, com o seu habitual exagero, que o Camilo e o Eça são os dois únicos escritores portugueses. (E um bocadinho, “um dedo mindinho” para a Agustina, ahah!).

O Eça, para ele era fundamental. Rara a conversa em que o Eça não aparecia, uma, duas ou três vezes. Ele citava frases d’”Os Maias”, que era a bíblia da nossa literatura. E usava-o a propósito de tudo, como por exemplo “Olhe, o Eça era administrador em Évora, como esse senhor de que estamos a falar”.

O Eça esteve em Évora como jornalista, contratado pelo Eugénio de Almeida, não foi isso?

Sim, mas acho que ele também foi uma espécie de Governador Civil da altura. E o Vasco continuava: “...e depois havia estas senhoras da sociedade – como o Eça dizia.” Ele usava muitas vezes o Eça como uma espécie de guião histórico para o século XIX.

Eu acho que ele não gostava da Agustina por ela ter escrito sobre o Sá Carneiro duma maneira que ele achou pouco fiel. Não li o que ela escreveu, mas imagino...

Não foi abonatório.

Também acho interessante o Vasco dizer que Portugal é um caos ingovernável, o que parece certo, não é?

Pois é. Sabes que ontem, quando ouvi o discurso do Presidente da República (no 25 de Abril) fiquei muito espantado, porque ele mete na ordem os políticos, as estruturas, enfim, toda a gente, e chama a atenção para o passado; que o passado sirva de alguma coisa para o presente e para o futuro. Não é habitual fazer-se pedagogia feita desta forma.

Mas tu concordas com o que o Vasco diz, que o Marcelo é um católico de esquerda? Mesmo do ponto de vista do Vasco, que se afirma de direita, o Marcelo não é de esquerda. 

O Vasco acha que o Marcelo é um comentador político que chegou a Presidente. Acha que o Marcelo faz coisas inimagináveis para um velhinho da idade dele, como andar aos abraços. Para ele, era chocante que o Marcelo tivesse esta “política dos afetos”.

Bem, “política dos afetos” não é o estilo do Vasco Polido Valente, de facto.

Esta imagem do VPV muito sério é verdade, mas surpreendi-me várias vezes com ele a contar-me piadas. Coisas divertidas, e até se ria. Nunca imaginei que ele se risse. Lembro-me, por exemplo, quando falamos do D. Manuel, quando foi para Londres e sentia-se bem como um rei no exílio, pois podia ter uns namoros proibidos. O Vasco contava aquilo e ria-se muito.

Mas é histórico que o D. Manuel fosse gay? Nunca tinha ouvido falar nisso.

Pois, eu também não tinha bem essa opinião. Mas não teve filhos e parece que houve uma paixão por um russo – acho que isso foi mesmo verdade, porque fui confirmar e encontrei vários relatos em que o russo e ele se davam. Mas o Vasco dizia isso taxativamente. Não gozava com essa questão da preferência sexual, mas sim com a situação de os monárquicos irem todos falar com ele, pedirem ajuda, darem sugestões, e o Dom Manuel não queria ouvi-los, queria era viver em Londres, integrar-se alta sociedade inglesa, fazer trabalho solidário na Cruz Vermelha (que era prestigiante, na I Guerra Mundial).

Era com isto que ele se ria.

Também me contou que quando era novo ia para Vilamoura com um amigo e se divertiu muito. Dava a entender que teve uma juventude divertida. Mas não explorei muito essa parte. Eu já percebia quando ele queria ou não queria desenvolver um assunto. Por exemplo, quando se falou no Gambrinus, começou logo a comentar; para ele era uma tragédia não poder voltar ao Gambrinus, não poder ir ao Alentejo almoçar e jantar, comer aqueles pratos de que gostava. Essa era a sua verdadeira tragédia.

Outra coisa que se sabe, mas que ele afirma taxativamente, é a história do Moura Santos, o cunhado do Guterres. Toda a gente dizia que o Moura Santos era o grande beneficiário do Governo do Guterres e fazia as grandes negociatas que o Guterres não fazia. Dizia-se, mas, como se diz em direito, não se faz prova...

Eu andei a confirmar, houve julgamentos, e ele foi condenado por algumas práticas, ou por algumas situações. O Vasco falou mais sobre esse assunto do que eu coloquei no livro. Se ele ainda fosse vivo aquando da publicação, eu podia ter mantido certas afirmações que ele fez; mas como já tinha falecido, não podia confirmar e seria eu responsabilizado pelas afirmações. Eu tinha-as gravadas, mas isso não tem valor se ninguém puder questionar o autor das acusações. E podiam dizer que ele já não sabia o que dizia, alcoólico e gagá, e a responsabilidade era minha.

Por isso tive um certo cuidado nas histórias de corrupção, em que ele acusa várias pessoas, ministros do Governo do Cavaco. Tinha-lhes um pó gigantesco. Tive de suavizar muita coisa.

Ele diz que o Cavaco não é nada, não é ninguém, o que é brutal. É a coisa mais desprezível que se pode dizer de uma pessoa, é que ela não existe. Não é boa nem má, é zero. Um homem que foi o mais longo governante desta República, entre os anos de Primeiro-ministro e Presidente.

Ela considerava que o Cavaco intelectualmente não era nada, mas principalmente não lhe perdoava ter tido oportunidade de fazer mudanças fundamentais para o país e não as ter feito.

Aliás, é o que muita gente acha: que o Cavaco desperdiçou os fundos europeus, que foram apropriados por aqueles que andavam à sua volta, e que se safaram todos.

Gostava de terminar dizendo que gostei muito do livro, fizeste um trabalho jornalístico digno de ficar nos anais, porque estas entrevistas requerem muito tacto e tino. Agora, quem é o próximo?

Não sei. Este livro está a fazer muito sucesso, o que me surpreendeu. Foi elogiado pelo Pedro Mexia e pelo Louçã, ou seja, da direita à esquerda. E então os nossos colegas, que não são muito prolixos a elogiar dentro da profissão, deram-me grande cobertura. Eu sei que não é por minha causa, é pelo Vasco Polido Valente, mas não imaginei que ele fosse um best-seller!

Tem de ser um tipo odiado por toda a gente e bom escritor! Há várias hipóteses...

Quanto a este, não é preciso ler mais nada sobre a História recente de Portugal. Algumas opiniões são discutíveis, mas vê-se bem que ele tinha um pensamento coerente.

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