Não é a primeira vez que uma cerimónia destas acontece. A última foi em Março de 2014, quando outra ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, devolveu três quadros aos herdeiros dos proprietários originais. Tal como acontece com o “Tríptico da Crucificação”, a história do percurso daquelas obras dá uma ideia das peripécias decorridas entre os roubos e as devoluções.
“Paisagem montanhosa”, do flamengo Joos de Momper (1564-1635), estava depositada no Museu das Belas Artes de Dijon deste 1953. Tinha sido escondida pelos nazis nas minas de sal de Alt Aussee, perto de Salzburgo, depois de a confiscarem ao barão Cassel van Doorn, um banqueiro belga que não era judeu e tinha várias residências em França. Ainda assim não escapou ao saque e os seus bens foram apreendidos em 1943 e levados para a Alemanha. Encontrada em 1945 pela equipa norte americana criada especialmente para recuperar património mobiliário saqueado, a pintura “Paisagem montanhosa” foi enviada para um centro de recolha de Munique em novembro desse ano e voltou para França em junho de 1949. Identificada anos depois, só em 2012 os herdeiros do barão pediram a sua restituição.
O “Retrato de mulher”, de Luís Tocqué (século XVIII), pertencia a Rosa e Jacob Oppenheimer, marchants de arte em Berlim. Foi leiloado em 1935, numa venda pública de bens dos judeus. Chegou ao Louvre em 1950 e foi transferido para o Departamento de Bens e Interesses Privados (OBIP em francês) em 1960, e regressou ao Louvre em 1999. O pedido de restituição foi feito pelos herdeiros em 2013.
A “Virgem com Jesus”, um primitivo italiano da escola de Lippo Memmi (1291-1356), pertencia ao banqueiro Richard Soepkez. Em 1944, já em retirada, os nazis levaram-no da sua vivenda em Cannes. Também passou pelo centro de recolha de Munique, em Maio de 1946, e foi igualmente enviado para o OBIP, que o depositou no Louvre. Daí esteve em exposição no Museu de Belas Artes de Troyes entre 1957 e 1982. O pedido de restituição foi feito em 2010 por Ileana Florescu, bisneta de Soepkez.
Estes são casos em que os quadros e os donos originais foram devidamente identificados e apenas a complicada burocracia levou décadas até serem devolvidos, na grande maioria dos casos já aos herdeiros e não aos proprietários a quem tinham sido roubados. Num total de 145 obras identificadas, estas quatro fazem parte dum grupo de 28 já devolvidas ou a devolver em breve. Mas os roubos de arte dos nazis tiveram uma dimensão muito maior. Só em França, calcula-se que o número de objectos seja superior a cem mil. Um “Repertório dos bens espoliados em França durante a guerra 1939-1945”, publicado entre 1947 e 1949 pelo OBIP, que inicialmente estava sediado em Berlim, tem 14 volumes, dos quais o volume II e mais dois suplementos listam exclusivamente as peças chamadas de MNR, quadros, esculturas e tapeçarias. Até 1949, cerca de 61 mil peças foram identificadas e 45 mil devolvidas. 13 mil, não tendo proprietários ou herdeiros conhecidos foram vendidas em hasta pública. 2.143 peças ficaram registadas no inventários ditos de recuperação (MNR).
O Louvre possuia 1.752 obras MNR, das quais 807 quadros, mas apenas 296 ficaram nas suas instalações. As restantes foram distribuídas por outros museus franceses. Em 1999 formou-se uma comissão para determinar a origem das obras e reencontrar os seus proprietários. Desde 1951 até 1999 tinham sido devolvidas apenas 50 peças.
Não foi só em França que os nazis espoliaram: todos os países ocupados e a área invadida da União Soviética tiveram a mesma sorte. Na Polónia, por exemplo, os nazis já tinham os planos elaborados antes da invasão: 25 museus e instalações de interesse cultural foram destruídos e 516 mil peças saqueadas, das quais 2.800 quadros de pintores europeus, 11 mil de polacos, 1.400 esculturas, 75 mil manuscritos, 25 mil mapas, 90 mil livros impressos antes de 1800 e centenas de milhares de itens com valor histórico.
A missão das Kunstschutz
Em todos os países ou áreas conquistadas os roubos não foram feitos à socapa Segundo a ideologia nazi, os vencedores tinham direito ao espólio dos vencidos. Foram criadas várias entidades especializadas em avaliar e tomar posse de todo o tipo de bens, desde maquinaria até joalharia.
No caso das obras de arte, formaram-se unidades chamadas Kunstschutz (literalmente: Protecção da Arte) cuja missão era identificar e tomar conta das peças com valor: pinturas, esculturas, cerâmicas, livros, objectos e preciosidades religiosas. Milhares foram confiscadas, porque pertenciam a judeus, mas muitas outras simplesmente porque os especialistas alemães reconheciam o seu valor. Finalmente, centenas de peças conhecidas foram requisitadas pela alta hierarquia do partido, Göering e Hitler à cabeça. Göering era um grande apreciador de arte e chegou a ter uma colecção de 600 quadros. Hitler também se considerava um especialista, desde que fosse arte dita “clássica”.
A arte moderna era considerada “degenerada” e “judaica”. Ente 1937 e 1938, os nazis purgaram os museus alemães de cerca de 16 mil obras. Algumas foram apresentadas numa enorme exposição de “arte degenerada” em Munique, em 1937, vista por dois milhões de visitantes. Em seguida, uma parte foi destruída e outra parte vendida em leilões, na Alemanha e na Suíça (para o mercado internacional).
Vários marchants encarregaram-se deste negócio em nome do partido, mas também aproveitaram para guardar para si uma parte, pois sabiam que o seu valor era perene e um dia poderia servir-lhes. Das milhares de peças vendidas na Suíça e espalhadas por compradores do mundo inteiro, ainda há 70 muito conhecidas de que não se sabe o paradeiro, como por exemplo uma grande aguarela de Picasso pintada na Provença em 1923, sete obras de Matisse e o “Retrato de Gabrielle Diot" de Degas.
Muitas foram parar a museus norte-americanos. O Met de Nova York tem uma lista de 393 pinturas cuja proveniência é duvidosa, o Art Institute de Chigago cerca de 500; os de San Diego e Los Angeles publicam na Internet extensas listas, a ver se os donos aparecem.
O mais famoso destes comerciantes de arte foi, sem dúvida, Bruno Lohse, que esteve sediado em Paris e várias vezes organizou exposições para exclusiva apreciação de Göering, que foi à Galeria do Jogo da Palma mais de vinte vezes durante a ocupação nazi. Lohse, que era oficial das SS, conseguiu ser absolvido por um tribunal francês em 1950 e continuou a negociar arte discretamente. A descoberta dum cofre secreto na Suíça mostrou que ainda possuía um Pissarro roubado pela Gestapo a um judeu em 1938, assim como obras de Monet e Renoir de origem suspeita. O que não surpreende, segundo estimativas aceites pelo mercado internacional, das 600 mil obras saqueadas pelos nazis cerca de 100 mil foram destruídas ou estão desaparecidas.
Lohse morreu pacatamente em 2007.
Além do saque “institucional” preparado pelas unidades Kunstschutz, as tropas também roubavam indiscriminadamente, sendo impossível saber o que desapareceu. Do mesmo modo que os nazis organizaram previamente os saques mais significativos, também americanos e russos se prepararam para a recuperação, que começou logo a seguir à vitória de 1945.
“Os caçadores de tesouros”
Os americanos criaram uma unidade, a “Monuments, Fine Arts and Archives” precisamente com esse fim. Esses especialistas, conhecidos como os “Monuments Men” foram glorificados no filme de George Clooney, de 2014, “Os caçadores de tesouros”. Encontraram grandes depósitos de arte e valores roubados em minas, onde a humidade e a escuridão protegiam os itens – o saque nazi era cuidadoso e eficiente. Ao todo foram encontrados 1.500 depósitos escondidos, sendo os mais importantes em Merkers, Altaussee e Siegen. Os problemas dos especialistas não se resumiam a encontrar e catalogar as peças; também tinham de impedir os soldados vencedores de mandar para casa “recordações” de valor. A ideia era devolver as peças aos seus legítimos donos, caso ainda estivessem vivos, ou entregá-las aos museus e instituições de onde tinham sido roubadas.
Os russos procederam de outro modo. As suas “Brigadas de Troféus” estavam encarregadas de fazer o mesmo que os alemães, mas em sentido contrário. Ou seja, não só procuravam recuperar o que fora roubado, mas também roubar o que fosse possível. Em outubro de 1991, o Ministério da Cultura soviético finalmente admitiu que por todo o país existiam armazéns secretos cheios de arte retirada da Alemanha e outros países ocupados. Depois dessa admissão, o Museu Pushkin de Moscovo e o Hermitage de São Petesburgo exibiram dezenas de quadros roubados. Mas nada foi repatriado, pois o Parlamento russo aprovou uma lei a declarar que os objectos pertencem ao Estado. Para os russos, tal como para os nazis, as peças de arte tiradas da Alemanha depois da vitória são legítimos despojos de guerra e compensação pela enorme destruição cultural infligida à União Soviética pelos atacantes.
À medida que os anos passam, torna-se cada vez mais difícil restituir as peças aos donos, que entretanto faleceram, ou aos herdeiros, que muitas vezes não sabem das obras dos seus antepassados ou não têm como provar a sua propriedade. Muitas peças continuam sem rastro, ou destruídas em bombardeamentos e operações militares, ou convenientemente escondidas nas casas de ricos apreciadores de arte.
As restituições são devidas, mas, em última análise, quando se trata de saques desta magnitude, é difícil senão impossível fazer a História andar para trás.
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