Numa entrevista conduzida pelo jornalista Hélder Silva, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que está no início do segundo mandato, frisou que há muito que defende a criação de uma task force para a vacinação a nível mundial.

"Desde há muito que digo que os países deveriam criar um task force para as vacinas", disse, completando que será claro para o mundo que "os países que não colaborarem" terão uma "responsabilidade" nesse sentido.

Alertando, ainda, que seria "estúpido" não vacinar todos países uma vez que o vírus "propaga-se a grande velocidade", Guterres lembrou que houve um "açambarcamento das vacinas".

"Aqueles [países] que têm poder deveriam juntar-se para resolver este drama mundial terrível. Isso não aconteceu, continua cada um a agir por si. Tivemos o açambarcamento das vacinas, depois tivemos o nacionalismo das vacinas, agora temos a diplomacia das vacinas, mas a verdade é que o mundo não foi capaz de se juntar", realçou.

Outro dos objetivos traçados por Guterres durante a entrevista teve que ver com a intenção hoje anunciada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial de Saúde (OMS) de criar uma nova Estratégia de Vacinação Global contra a covid-19 para vacinar 40% da população em todos os países até final do ano e garantir que 70% população mundial esteja vacinada até meados de 2022. O plano necessita 8 mil milhões de dólares (6,9 mil milhões de euros) para assegurar uma distribuição equitativa. De acordo com o secretário-geral das Nações Unidas, a estratégia vai implicar que os Estados-membros tomem um conjunto de decisões, na partilha de vacinas e em relação ao financiamento.

António Guterres também frisou que a OMS não tem poder para "impor que os países deem vacinas a outros".

"[A OMS] tem liderança, mas não tem poder. Infelizmente alguns dos que têm poder não têm mostrado liderança e temos assistido a esta situação completamente intolerável, em que há países que já conseguiram vacinar a totalidade da sua população ou quase e em África temos apenas 5% da população vacinada", acusou, lembrando que o continente africano "recebeu apenas 2% das vacinas a nível mundial".

O secretário-geral da ONU avisou que a situação que situação pandémica ainda é grave e que as pessoas devem ser todas vacinadas.

"Se não vacinarmos todos, corremos o risco de nenhuma vacina vir a ser eficaz se a parecer uma variante que aponha em causa", disse António Guterres, firmando que "mesmo aqueles [países] que vacinaram toda a gente – no mundo desenvolvido – ficarão sujeitos a uma situação em que as vacinas deixarão de ser eficientes e, por isso, o vírus pode voltar com uma nova onda dramática".

Questionado sobre a posição dos negacionistas, António Guterres assumiu que são uma ameaça para o combate à pandemia chegar ao fim.

"São uma ameaça ao fim da pandemia todos aqueles que fazem campanha ativa para que as pessoas não se vacinem. É um combate que temos de travar. Nós temos através dos social media uma campanha chamada verify cujo objetivo é dar a informação correta sobre vacinas para que possamos combater toda essa casta de mentiras e de coisas verdadeiramente escabrosas em relação às vacinas. Infelizmente, há alguns responsáveis políticos que tem contribuído para isso", explicou.

"No meu ponto de vista, é lamentável. Na medida em que nós vemos que quando todos os políticos de um país se unem, quando todos os meios de comunicação essenciais de um país se unem a vacinação é um êxito. O caso de Portugal é caso exemplar nesse ponto de vista", observou.

"O mundo ocidental investiu enormemente no Afeganistão"

Abordada a situação da pandemia a nível mundial, a entrevista transbordou para a situação de crise e violência que atualmente se vive no Afeganistão.

"Este é um dado de facto. Este é um facto que não pode ser negado porque milhões de afegãos estão numa fase humanitária desastrosa. Nós estimamos em 18 milhões de pessoas, aqueles que se encontram com problemas de alimentação, com problemas de saúde gravíssimos, e que necessitam absolutamente de ajuda humanitária", frisou, antes de indicar que "decidiu" encetar conversações com os talibãs.

"No plano humanitário é nosso dever falar com todos. Não há nenhuma restrição. O conflito obriga a falar com todos os atores em qualquer situação", reiterou, afirmando  que tem pedido aos talibãs para respeitarem "um conjunto de direitos humanos básicos" no Afeganistão, sem discriminar as mulheres, para que possam obter o apoio da comunidade internacional.

"Temos verificado que houve promessas por parte dos talibãs que são razoáveis, mas a verdade é que estamos a ver muitas situações no terreno que desmentem essas promessas", alertou, sendo que o dirigente das Nações Unidas atentou que tem discutido "seriamente" dois aspetos com os talibãs: a ajuda humanitária e os direitos das mulheres.

"[…] A nossa principal preocupação, e grande insistência que temos tido no diálogo com os talibãs, tem a ver com direto de todas as jovens terem educação e o direito de todas as mulheres trabalharem, essa é uma das questões em que estamos a insistir mais fortemente", indicou.

António Guterres acrescentou que "isso tem de mudar e que os direitos das mulheres e das jovens são um elemento fundamental" para os talibãs "poderem ter o reconhecimento que pretendem e para poderem ter o apoio por parte da comunidade internacional".

Neutralidade carbónica em 2050: "Não o fazer é um suicídio"

Instado a comentar sobre o último relatório intergovernamental que debruça o futuro do planeta e do clima, Guterres explica que "há muita gente a agir", apesar de serem necessárias mudanças radicais.

"Há governos que tomaram decisões corajosas no sentido de reduzir as suas emissões drasticamente na próxima década e atingir a neutralidade carbónica em 2050. Há empresas que apresentaram os seus planos de descarbonização, criou-se a chamada Aliança de Glasgow para o combate às alterações climáticas, em que conjunto de instituições financeiras representam 90 triliões de dólares, que se comprometeram com este objetivo", afirmou, mas só até salientar que "tudo isto não chega".

"Estamos longe do que é necessário para que limitemos o crescimento da temperatura a 1,5º — o que mesmo assim terá, como já tem, consequências que são dramáticas. Basta ver o que se está a passar no mundo em matéria de desastres naturais, em cenários terríveis. Em matéria de seca, de tempestades, de glaciares que vão desaparecendo, de corais que vão desaparecendo", disse.

O Acordo de Paris de 2015, assinado pela quase totalidade dos países do mundo, visa limitar o aquecimento global abaixo dos 2 graus celsius (2°C) e se possível a 1,5°C. No entanto vários países estão relutantes em reconhecer o objetivo dos 1,5°C, como a Arábia Saudita ou a Rússia.

Segundo a última estimativa da ONU, os atuais compromissos mundiais conduzem o mundo a um aquecimento "catastrófico" de 2,7°C.

Até agora a temperatura já subiu cerca de 1,1°C em relação à época pré-industrial e o mundo está a ser atingido por catástrofes cada vez mais intensas e frequentes, como cheias e ondas de calor e incêndios devastadores.

Questionado sobre se a cimeira do clima marcada para novembro, em Glasgow (Reino Unido), vai permitir respostas mais imediatas e concretas, em que finalmente o mundo vai assumir o compromisso efetivo no sentido de atingir a neutralidade carbónica em 2050, Guterres respondeu que não é uma "questão de fé" porque os "Estados tem de fazer um esforço para chegar a esse objetivo".

"O meu papel é dizer-lhes claramente que não o fazer é um suicídio. Agora, só depois é que veremos até que ponto os estados foram capazes de assumir as suas responsabilidades", explicou.

"A ONU tem forças de manutenção da paz"

Outra situação abordada durante a entrevista foi a de vivida em Cabo Delgado, Moçambique. Sobre o tema, António Guterres frisou que a "ONU tem forças de manutenção da paz" — e deu o exemplo dos Balcãs, em que as forças da NATO estiveram presentes —, mas que são parceiros.  Ou seja, a ONU não tem forças de imposição da paz.

"O que a ONU tem proposto e apoiado é a criação de uma força africana que possa ter o apoio das Nações Unidas", indicou, explicando que do seu "ponto de vista" é o que poderá fazer sentido para executar em Moçambique, antes de sublinhar que acompanha com interesse "o facto de Portugal ter um papel muito importante", ao ter enviado uma "força de formadores".

Noutra nota, Guterres explicou que para combater o terrorismo naquele país não "basta a ação militar".

"É preciso criar condições para que as populações sintam que há progresso e um dividendo da paz. É fundamental que essas dimensões não sejam esquecidas", disse.

Ainda assim, lembra, "hoje estamos a falar de África, mas estes grupos terroristas movimentam-se".

A iniciar o segundo mandato, Guterres considera que as "pessoas se preocupam demasiado com o seu legado e não com aquilo que devem"

"Acho que as pessoas se preocupam em demasia com o seu legado e não com aquilo que devem", frisou o secretário-geral das Nações Unidas, depois de questionado sobre aquilo que ainda pretende fazer, a nível de metas, e de como gostaria que vissem o seu legado depois de sair da ONU.

"A minha preocupação é fazer aquilo que tenho de fazer. Fazê-lo da melhor maneira possível e contribuir com isso para um conjunto de ideais que sempre animaram a minha vida e que pretendo concretizar através das minhas ações nas Nações Unidas. Espero que as Nações Unidas fiquem melhor, mais eficazes, que respondam melhor aos problemas do mundo", começou por dizer.

"E espero que o mundo seja capaz de encontrar a solidariedade perdida para derrotar o vírus, resolver o problema do clima e para por na ordem esta revolução tecnológica a que estamos a assistir que um conjunto de plataformas criaram uma situação em que a nossa privacidade, a nossa própria intimidade, a informação que a nós próprios diz respeito, estão hoje completamente postas em causa", afirmou.

(Notícia atualizada às 23:28)