Mahsa Amini morreu no dia 16 de setembro por, alegadamente, estar a usar o véu incorretamente. A jovem de 22 anos foi detida pela "polícia da moralidade" e acabou morta num hospital de Teerão.
O incidente provocou uma onda de protestos por todo o país, sobretudo de vozes femininas, que se erguem motivadas pela revolta e pelo “cansaço”, depois de mais de 40 anos de opressão e de restrições “sem sentido” que lhes são impostas pela lei islâmica, desde a revolução iraniana de 1979.
Neste momento, as informações oficiais dão conta de 154 mortos, mas serão “muitos mais", acredita Naghmeh Ivaki, académica iraniana que assiste, à distância e com tristeza, ao que se passa na sua terra natal, e que concordou falar ao SAPO24.
Os primeiros anos após a revolução que levou ao exílio forçado do Xá do Irão, e à consequente queda da monarquia, em 1979, foram bastante conturbados. "Foi a altura da transição”, começa por dizer a professora universitária, que não se importa em dar o nome, pois é uma “académica e não ativista”, salienta.
O Irão era um país “socialmente livre e progressista”, mas refém da vontade do monarca, que estava a perder popularidade e a confiança do povo.
“Estamos a falar de um país que antes deste regime tinha a experiência de uma sociedade aberta”, explica Naghmeh. “As mulheres participavam muito na sociedade. Na altura, tínhamos um país que estaria à frente de Portugal [estamos a falar na época do Xá - anos 1960/1970], mas não tão avançado como o resto da Europa. Ainda assim, o nosso governo estava avançado e as mulheres tinham liberdade para participar na sociedade. Tínhamos mulheres no parlamento, na cultura e etc. Ou seja, temos esta experiência vivida pelas pessoas que são agora as mães e as avós desta geração” que está agora a manifestar-se, contextualiza Naghmeh.
Em finais dos anos 1970, deu-se a revolução. Quando Khomeini - que estava exilado em França - chegou ao país, foi visto como um libertador, um sinal de esperança e de transição para uma república.
Durante a monarquia, o Xá Mohammad Reza Pahlavi caiu em desgraça, em parte pela forma exuberante como se exibia nos eventos que organizava, onde queimava dinheiro, enquanto o povo permanecia pobre. Pahlavi não soube reagir à escalada dos protestos e impôs a lei marcial, levando os militares às ruas de Teerão.
Em setembro de 1978, dá-se a "sexta-feira negra", o massacre na Praça Jaleh, onde as tropas fiéis ao Xá matam perto de 100 pessoas e deixam mais de 200 feridas. Este e outros motivos políticos aumentaram a onda de protestos e fizeram com que o povo se fartasse e exigisse mudança.
“Atenção, que apesar de todos os problemas que tinha aquele governo liderado pelo Xá, [a intenção do povo] não era alterar, mas sim melhorar o regime. Só que na altura, a comunidade internacional não tinha muito interesse em manter o Xá, por causa dos interesses económicos, e deu-se a revolução”, afirma Naghmeh Ivaki.
A mudança, comandada por Khomeini à distância, aconteceu um ano mais tarde e é conhecida pela Revolução Islâmica de 1979, que culminou com a chegada deste exilado a Teerão.
Em março desse mesmo ano, um referendo popular para iniciar uma república vence com larga expressão. Foi criada uma nova constituição republicana e Khomeini empossado líder supremo.
No entanto, sendo um líder religioso, Khomeini introduziu a lei islâmica e as mulheres foram as mais visadas, mas não só. O país regrediu em vários aspetos, como na cultura, saúde, educação, tecnologia e no plano económico.
Declarado como uma República Islâmica, o Irão tornou-se progressivamente num dos Estados mais fechados para o mundo. Facto que também se deve às sanções económicas encabeçadas pelos EUA e seus aliados. As relações diplomáticas entre os dois países extremaram-se desde a invasão à embaixada norte-americana em Teerão por um grupo de estudantes que manteve refém 50 membros do corpo diplomático durante 444 dias.
“Depois da revolução, nos primeiros anos, as mulheres ainda podiam andar na rua sem o hijab [véu islâmico]”, descreve a professora de engenharia. Mas eles foram introduzindo essa obrigação lentamente. “Começaram nas escolas, pedindo primeiro às professoras, e depois a outras funcionárias. Tornou-se obrigatório por lei, 4 anos após a revolução”, recorda a engenheira.
Convém lembrar que “antes da revolução de 1979, Khomeini mentiu ao dizer que não iria restringir as pessoas”, lamenta. Nessa altura, o povo iraniano estava convencido de que ia iniciar-se uma república democrática, mas aos poucos Khomeini foi introduzindo a ordem islâmica, tornando o Irão numa república-teocrática.
“[Mahsa Amini] podia ser uma de nós, podia ser a nossa filha, a nossa mulher, podia ser eu. Podia ser eu!”
“Os protestos contra a utilização do hijab começaram mais ou menos aí, nos anos 1979. Mas, entretanto, o Irão entrou numa guerra de oito anos com o Iraque e durante esse período as atenções viraram-se para o conflito”, descreve Naghmeh.
“As prioridades das pessoas mudaram, tínhamos de nos defender do Iraque, [era uma questão de] sobrevivência. Então, cessaram os protestos, pois havia uma guerra. E o regime foi introduzindo muitas das suas restrições. As pessoas estavam focadas na guerra”, continua Naghmeh Ivaki.
Foi na altura do Ayatollah Khatami (1997-2005) que começou o "diálogo sobre democracia e liberdade de expressão”, recorda a professora.
Khatami, foi um clérigo opositor do Xá, e por essa razão, viveu no exílio na Alemanha. Ficou conhecido por ser mais moderado e foi essa postura que lhe valeu a simpatia das mulheres, dos jovens e de alguns intelectuais, levando-o à presidência do Irão, nas eleições 1997.
“Foi com ele que muitos iranianos na diáspora, que eram perseguidos pelo regime de Khomeini, retornaram ao seu país. Khatami trouxe alguma esperança”, diz a professora universitária.
Em termos de política internacional, o Irão tem tido um longo conflito com Israel, afastou-se dos EUA (que eram muito próximos do Xá) e, nos últimos anos, aproximou-se da Rússia (embora a posição oficial do governo iraniano face ao conflito na Ucrânia seja neutral).
A nível interno, o seu regime é conhecido pela forte repressão policial contra o seu povo. Os jovens e as mulheres são os mais oprimidos, o que os encoraja a sair do país.
O Irão tem “exportado” um largo número de pessoas, sobretudo as mais qualificadas. Em 1999, o chamado “Brain Drain” iraniano registava a saída de 150 a 180 mil iranianos por ano. Atualmente, a diáspora iraniana está espalhada por todo o mundo sendo a Austrália, EUA, Canadá, Reino Unido e Alemanha os países com comunidades maiores.
O que está a acontecer, neste momento no Irão, "é grande e muito importante", mas não é inédito.
Nos últimos 40 anos foram muitas as manifestações em protesto contra o regime.
Na altura de Khatami, houve muitas manifestações. “É preciso lembrar que entre as manifestações, os governos mataram muita gente, eles faziam 'limpezas', isto é, matar os opositores”, declara a investigadora.
A outra grande manifestação popular foi na altura das eleições de 2009, quando Mousavi candidatou-se contra Ahmadinejad, tendo este último vencido, ainda que sob a suspeita de fraude eleitoral. E daí, deu-se o “movimento verde”. Uma das maiores manifestações de sempre. “À volta de três milhões de pessoas saíram às ruas de Teerão”, recorda Naghmeh.
Outra grande manifestação foi já em 2019, antes da pandemia, “foi bem grande. E eles mataram 1500 pessoas, isto é o que sabemos, mas mataram muito mais. Mas com a pandemia, não foi possível continuar os protestos na rua. Fechou-se tudo, escolas, universidades. As pessoas foram todas para casa. E chegamos agora, a 2022…”, diz.
"Este regime, de uma maneira ou de outra, consegue tocar na vida pessoal de toda a população iraniana"
A morte da jovem Mahsa Amini, por um lenço mal colocado, espoletou toda a angústia da sociedade. “Renovou as velhas feridas. A maneira como estava vestida, é igual à maioria das meninas, atualmente, no Irão. As pessoas colocam o lenço daquele jeito!”, frisou a professora.
“Então, [Mahsa Amini] podia ser uma de nós, podia ser a nossa filha, a nossa mulher, podia ser eu. Podia ser eu!”, enfatiza a engenheira.
No Irão, as mulheres têm de estar sempre alerta pela forma como se utilizam o lenço: “estás na rua, no carro, sempre a ver se há polícia por perto. Estás numa festa, em casa, tens de estar cuidadosa com isso, porque alguém pode ver e denunciar”, reclama a professora.
“Este incidente relembra muitas das dores que viveram dentro das pessoas ao longo dos últimos 43 anos. Este regime, de uma maneira ou de outra, consegue tocar na vida pessoal de toda a população iraniana. É alguém numa família que vai preso, outro noutra família que desaparece, são meninas que são castigadas, ou alguém que é morto. Este regime afetou a vida das famílias iranianas ao longo de todos estes anos”, lamenta Naghmeh Ivak.
“Agora temos uma geração nova e este movimento bate certo com esta geração. É a geração mais próxima dos jovens de todo o mundo. Ouvem música na Internet, veem os mesmos vídeos que outras meninas veem na China, nos EUA. Dançam as mesmas coreografias… só que tem de ser tudo às escondidas. As meninas não se podem exprimir da mesma forma que as meninas lá fora. E por isso, estes jovens não se identificam com este regime, em nada”, afirma.
“Nós, na nossa geração, estávamos muito mais isolados que estes meninos de agora. Não tínhamos a mesma ligação com o mundo. Então, não sabíamos como era lá fora. Mas hoje em dia, mesmo com as restrições que o regime impõe na Internet, os jovens estão mais ligados ao mundo. Conhecem mais os valores da liberdade e estão a lutar por isso. São uma geração que quer viver diferente”, declara.
Os protestos no Irão já vão na terceira semana. Os relatos que chegam a esta parte do mundo dão conta de várias mortes e desaparecimentos, mas tudo sem grandes certezas.
"Nós vemos todos os sinais de revolução, por todo o país. As pessoas estão, claramente, contra o regime"
Na segunda-feira, a imprensa iraniana na diáspora avançava com a morte de Nika Shakrami, uma jovem de 16 anos que foi raptada depois de ter pegado fogo ao hijab num dos protestos de rua. O corpo de Nika foi entregue à família com sinais de tortura, depois do seu desaparecimento.
Os números oficiais confirmam 154 mortes, mas a investigadora sabe que são "muito mais", e chama atenção para o que se passa nas cidades mais remotas do Irão, dando o exemplo de Zahedan, uma localidade perto da fronteira com o Paquistão, “uma zona mais pobre”, onde o regime terá morto pelo menos 150 pessoas. “Eles cortaram a Internet, isolaram a cidade e aquilo parecia uma guerra. Num só dia, mataram essas pessoas todas. Portanto, números oficiais?!”, ironiza.
Apesar do corte da Internet, do aumento das ameaças e da repressão policial o regime iraniano dificilmente conseguirá parar a onda de solidariedade que está a crescer pelo mundo.
No entanto, o atual líder supremo, Ayatollah Ali Khamenei, promete reforçar a polícia e as milícias Basij (grupo de voluntários armados pelo governo) para parar as manifestações. “Aqueles que incitarem à agitação para sabotar a República Islâmica merecem uma dura acusação e punição”, ameaçou.
"Nós vemos todos os sinais de revolução, por todo o país. As pessoas estão, claramente, contra o regime. Só que nós sabemos que este governo é bruto, mata. Nós sabemos isso, por isso é difícil continuar assim, a morrer. Então, é preciso atrair a atenção da comunidade internacional, precisamos do seu apoio”, apela a professora.
A União Europeia anunciou que está a preparar um novo pacote de sanções contra o Irão e vai proibir a entrada no espaço Schengen de funcionários do governo iraniano.
Em França, um grupo de atrizes filmou-se a cortar pedaços do seu cabelo num gesto simbólico que está a crescer nas redes sociais. É, sobretudo nas redes sociais, que o movimento está a ganhar expressão internacional:
“Sabemos que, infelizmente, a comunidade internacional está focada na guerra na Ucrânia, que também é muito grave. Sabe, os EUA ganharam muito dinheiro com venda de armas dizendo que o Irão é perigoso. Isso quer dizer que eles provavelmente têm interesse em manter este regime. Enquanto a comunidade internacional estiver só focada nos seus interesses económicos não vamos conseguir o apoio”, lamenta a Naghmeh.
“E repare, o Irão pode ajudar a resolver muitos problemas que o mundo enfrenta. Na energia, por exemplo. O Irão pode ajudar”, elucida a investigadora em engenharia informática.
Dos protestos, espera-se que a desobediência civil tenha custos elevados para a República Islâmica, tanto a nível nacional como internacional.
“Esta é uma manifestação do povo, liderada pelas mulheres. As mulheres de todas as cidades estão a trazer os seus familiares, os seus homens para a rua. Estou a falar de cidades até conservadoras. Mesmo a cidade de Qom, a mais religiosa do Irão, está a manifestar-se. Esta é a primeira revolução feminina da história”, conclui Naghmeh Ivaki.
(atualizada às 21h55)
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