Em entrevista à agência Lusa, António Calaim afirmou que “a obrigação e a prática do celibato pode conduzir a isso, pode dar origem a um maior número” de casos de abuso sexual. Porém, não deixa de reconhecer que o celibato pode ser uma mais-valia para o exercício de um ministério, uma vez que dá a possibilidade de uma maior entrega à prática pastoral.
“O celibato pode ter a vantagem de a pessoa ter uma melhor dedicação a algumas áreas e a um ministério do que alguém que tem responsabilidades, como eu, que sou médico, casado e com responsabilidades familiares”, afirma, acrescentando, por outro lado, que, “sendo a sexualidade algo de inato ao ser humano”, as igrejas evangélicas propõem que “ela seja vivida no âmbito do casamento”.
A comemorar o centenário da sua primeira sessão plenária, ocorrida em Lisboa em 14 de novembro de 1921, a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) congrega atualmente mais de 700 comunidades locais de cristãos que se reclamam “herdeiros da Reforma Protestante”.
Presidida por António Calaim, médico de 68 anos, pastor na Igreja Evangélica de Sintra, a AEP está numa fase de transformação, pretendendo passar de “chapéu de chuva” sob o qual são desenvolvidas ações em prol dos evangélicos portugueses, para “palco” onde essas ações se desenrolem.
Face aos casos que têm abalado a Igreja Católica nos últimos meses e questionado sobre como lidam as igrejas evangélicas filiadas na AEP com o eventual aparecimento de casos de abuso sexual de menores no seu seio, António Calaim revelou que a instituição tem “uma comissão de ética que ajuda nesta área”.
“Convidámos pessoas estimadas, pessoas com provas dadas, conhecedoras das escrituras, que nos ajudam nestas áreas e que estão disponíveis para ajudar. Se as comunidades locais não conseguirem resolver dentro de si mesmas este assunto, podem sempre pedir ajuda à Aliança e nós teremos pessoas para ajudar nesta análise”, diz António Calaim, que assegura que, em paralelo, e em caso de alguma suspeita de abuso, as autoridades judiciais são “de imediato contactadas”.
Recorrendo ao exemplo da prática na profissão que exerce, enfatiza: “É como o que se passa com os médicos. Se tiverem conhecimento de algo que não esteja de acordo com as leis devem denunciá-lo às autoridades. Acontece o mesmo com os pastores ou com os membros da Igreja”.
“A sociedade portuguesa mudou muito, evoluiu, abriu-se e aceitar o diferente hoje é muito diferente do que era há 60 anos ou há 100 anos"
A história das comunidades evangélicas em Portugal foi construída também com discriminação, perseguição ou autoexclusão decorrentes do sentido minoritário destes grupos em Portugal, segundo o líder da Aliança em entrevista à Lusa a propósito dos cem anos da instituição.
Olhando para trás no tempo, António Calaim não tem dúvidas: “A sociedade portuguesa mudou muito, evoluiu, abriu-se e aceitar o diferente hoje é muito diferente do que era há 60 anos ou há 100 anos atrás, em que por vezes até existiram líderes que propagavam essa discriminação”.
Mesmo assim, nalguns meios ainda se verifica que as comunidades evangélicas vivem muito centradas sobre si próprias, o que António Calaim diz que “tem a ver com a sociologia, (…) com as tradições, tem a ver com o sentido minoritário, sendo os evangélicos uma minoria, ainda que a principal minoria em Portugal”.
Segundo um estudo do antropólogo Alfredo Teixeira e da socióloga Helena Vilaça, “em Lisboa, 05% da população identifica-se como evangélica”.
“É uma realidade completamente diferente de uma aldeia ou de uma vila do interior. Mas, este sentido de minoria e de exclusão e de autoexclusão acontece”, admite António Calaim, que, nascido em Vila Verde, uma aldeia no concelho de Sintra, era apontado na sua juventude como “o protestante”.
Assim, entende que “é muito natural que, sociologicamente, haja uma tendência para as pessoas se refugiarem e se ligarem e viverem” no que se poderia chamar de “cápsula (…) redoma de vidro. Mas isso tem mudado muito”.
E 500 anos após a Reforma Protestante, como está o caminho de aproximação à Igreja Católica? A esta pergunta, António Calaim dá uma resposta cautelosa: “Eu diria que o caminho de aproximação entre os cristãos, não só com a Igreja Católica, mas também com a Igreja Ortodoxa Oriental (…) não é fácil, mas tem de assentar na essência e a essência é a pessoa de Cristo e o seu ensino”.
“Se nós nos preocuparmos com poder, com glória, com dinheiros ou com pequenas coisas que são as grandes coisas para o mundo das vaidades em que vivemos, nunca encontraremos a união. Nós acreditamos que há uma igreja de Cristo que é universal, onde há pessoas que se dizem ortodoxas, pessoas que se dizem católicas romanas, pessoas que se dizem protestantes, sejam elas anglicanas, luteranas ou presbiterianas ou outro nome qualquer”, diz o presidente da Aliança Evangélica Portuguesa, sublinhando, no entanto, não acreditar na ideia de “uma igreja com um nome único, formal, organizacional”.
Sobre a ação do Papa Francisco no sentido da unidade entre os cristãos, António Calaim acredita que “os seus anseios e motivos são absolutamente válidos e ele tem dado passos lindos nesta área”, mas mostra-se convicto, também, que “muitas vezes o poder das cúrias, das organizações, é muito forte e tem tendência de não permitir que aquilo que existe possa realmente deixar de existir”, quando se sabe que “tantas vezes são coisas menos boas”.
Mas as diferenças não se encontram apenas entre evangélicos e católicos ou ortodoxos, para se verificarem, também, entre os próprios evangélicos.
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que está em Portugal há cerca de 30 anos, ou a Igreja Maná, com origem portuguesa, não integram a AEP e são olhadas com desconfiança por muitos dos evangélicos mais conservadores.
Para António Calaim, “sempre existem pessoas e grupos que (…) avançam por caminhos um pouco mais estranhos e exóticos e que nos parecem, mesmo teologicamente (…) enveredar por caminhos um pouco extemporâneos, um pouco estranhos”.
“Se a própria comunidade olha para eles, para estas práticas - e eu estou a falar de práticas um pouco estranhas -, nós devemos ter algumas reservas, porque eu creio que o cristianismo e o evangelho devem ser vividos com tempero, com sal, com luz e não com radicalismos e com extremismos”, sublinha o líder da Aliança Evangélica.
“Nós não estamos tão interessados e tão preocupados que as pessoas se convertam do catolicismo ao protestantismo ou ao evangelicalismo. Nós queremos é que as pessoas se convertam a Cristo"
A comemorar o centenário da sua primeira sessão plenária, ocorrida em Lisboa em 14 de novembro de 1921, a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) congrega atualmente mais de 700 comunidades locais de cristãos que se reclamam “herdeiros da Reforma Protestante”.
“[A AEP] é vista muitas vezes como um chapéu de chuva. Eu creio que a aliança deverá ser muito mais como um palco, onde nós exercemos o nosso ministério, interligando e unindo os diferentes evangélicos. O protestantismo, o evangelicalismo tem um grande problema que é o divisionismo, que é o denominacionismo, que é a separação de igrejas e de diferentes comunidades”, admite António Calaim.
“Sabemos também que juntos podemos fazer mais do que isoladamente e separadamente e influenciar e sermos os canais com as nossas autoridades no cumprir da nossa função”, acrescenta o atual líder da Aliança Evangélica, entidade que começou, há cem anos, por congregar pastores e missionários que viviam em Portugal, “um pouco à imagem daquilo que já que estava a acontecer em Inglaterra há cerca de 50 anos”.
“Os vários pastores e missionários passaram a reunir para orar em conjunto, para promoverem a oração no espírito de unidade e, também, para tratar de assuntos comuns que os preocupavam e para acabarem por ter uma voz perante as autoridades civis de então. Essa voz foi conseguida, teve altos e baixos, teve períodos muito complicados (…), mas especialmente a partir dos anos 80 houve uma grande mudança por causa da Lei de Liberdade Religiosa”, recorda António Calaim, destacando o papel desempenhado na preparação desta lei pelo conselheiro José Dias Bravo, antigo presidente da AEP e vice-procurador-geral da República, que morreu em 2003.
Num país onde a Igreja Católica é a confissão maioritária, os evangélicos tiveram um crescimento acentuado no pós-25 de Abril, com a chegada de muitos portugueses oriundos das antigas colónias.
“O 25 de Abril e o retorno, ou o refúgio que tantos encontraram aqui em Portugal, teve uma grande importância para a Aliança Evangélica. Numa coisa muito simples, por exemplo, com a necessidade premente, a fome e a necessidade de higiene e de roupas e tudo mais. Nós tivemos uma boa ajuda, de um modo particular da Aliança Evangélica holandesa, que nos forneceu contentores, carregamentos (…) e também alguma importância financeira. Isso deu origem a que (…) pudéssemos ter comprado as nossas instalações”, diz António Calaim.
Este ‘boom’ tem continuado, nos últimos anos, com a chegada de evangélicos de países da América Latina, nomeadamente do Brasil, e não tanto pela “conversão” de fiéis de outras confissões, como a Igreja Católica.
“Nós não estamos tão interessados e tão preocupados que as pessoas se convertam do catolicismo ao protestantismo ou ao evangelicalismo. Não é isso, Nós queremos é que as pessoas se convertam a Cristo, porque o nosso modelo é a pessoa de Cristo. É isto que nós queremos. Se somos chamados cristãos é porque queremos ser pequenos Cristos”, adianta o presidente da AEP.
Com cerca de 2.000 salas de culto abertas em todo o país, abrangendo cerca de meio milhão de fiéis, também as igrejas evangélicas se deparam com a falta de vocações.
“A falta de vocações é algo que existe desde o princípio. Jesus Cristo diz: ‘Olhai para os campos e vede, poucos são os ceifeiros’. Isto é algo com que nós lidamos em todas as igrejas, em todas as denominações, em todas as comunidades”, reconhece António Calaim, que foi “desde o início ensinado a viver e exercer o ministério” de forma a conciliá-lo com o exercício da sua profissão de médico.
Segundo o líder da Aliança Evangélica, “este continua a ser um grande modelo”.
A terminar o seu segundo mandato como presidente da AEP, António Calaim manifesta orgulho no legado que deixa, e que se consubstancia, desde logo, na constituição da Eunoia, federação das entidades sociais cristãs evangélicas, e na assinatura do protocolo para a promoção das ecoigrejas.
Quanto à Eunoia, conta já com mais de 30 instituições filiadas – das cerca de 100 que existem ligadas ao movimento evangélico – e, segundo António Calaim, “não vem substituir-se à CNIS – Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade”, onde muitas das instituições evangélicas também estão presentes.
“Achámos que deveríamos ter alguma expressão própria, deveríamos estar juntos, por um lado porque temos uma mesma fé - não para arranjamos uma cápsula, nem uma redoma, mas para nos podermos ajudar uns aos outros”, explica.
Entretanto, até 23 de abril de 2022, António Calaim vai continuar a dar expressão ao centenário da Aliança a que preside. As comemorações vão levar uma exposição itinerante a várias cidades do país, mostrando o percurso da AEP, e deverão terminar com um evento festivo, para o qual esperam contar com a presença do secretário executivo da Aliança Evangélica Mundial e representantes das comunidades evangélicas dos Países de Língua Portuguesa.
Um livro sobre os 100 anos da AEP e uma medalha comemorativa serão editados durante o primeiro trimestre de 2022.
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