Fiel aos carismas da comunidade, e apesar de todos os desafios que tem enfrentado – da guerra ao atual momento de transição de poder, passando pelo sequestro de Dall’Oglio, de quem não tem notícias há 11 anos – “esperança” é uma das palavras que Houda mais repete quando fala ao 7MARGENS. A sua paixão pelo diálogo inter-religioso, particularmente entre cristãos e muçulmanos, terá estado na origem de ser escolhida – com grande surpresa sua – para participar nos trabalhos do Sínodo como membro das Igrejas Orientais e do Médio Oriente. Esta entrevista tem por base uma conversa que começou ainda em Roma, horas antes do seu regresso à Síria, e que prosseguiu nos últimos dias por e-mail. Uma coisa é certa: seja frente a frente ou mediada pelo ecrã de um computador, a comunicação com a irmã Houda Fadoul é sempre uma lufada de ar fresco, por contagiar de esperança também a quem a escuta.
Estou curiosa… O que a fez querer integrar esta pequena comunidade que vive no meio do deserto?
Houda Fadoul – Cresci numa família católica e sempre estive muito ligada à igreja. Quando conheci Mar Musa, apaixonei-me pela vida simples que a comunidade levava e também pela grande abertura que tinham em relação ao Islão. Na parte antiga de Damasco, onde eu tinha vivido até então, não tínhamos vizinhos muçulmanos e havia desconfiança em relação ao Islão. O testemunho do fundador da comunidade, o padre Paolo Dall’Oglio, com o seu amor pelo povo muçulmano, foi muito impactante e inspirador para mim. Quis muito viver esses carismas e por isso integrei a comunidade, onde ainda hoje permaneço.
Como é que a comunidade tem vivido a recente transição de poder no país? Imagino que sentimentos contraditórios habitem os vossos corações…
Sim, estamos muito felizes, porque esperámos durante muito tempo por esta libertação. Mas reconheço que é uma alegria misturada com um forte medo do que poderá acontecer nos próximos tempos… No entanto, esforçamo-nos para não ficar reféns desse medo. Procuramos ajudar-nos uns aos outros a ter esperança e confiança em Deus, e estamos a rezar para que finalmente haja paz e para que na Síria haja lugar e dignidade para todos. Sonhamos construir uma nova Síria: aberta, livre, justa, pacífica, com lugar para todos e onde todos vivam em harmonia. E sonhamos poder convidar aqueles que saíram a regressar a casa. Peço-lhe que reze por isso também!
Que papel podem os líderes religiosos ter na construção desta nova Síria?
Os líderes religiosos têm um papel muito importante no estabelecer de pontes. O que muitos estão a fazer é encontrar-se com os responsáveis do novo grupo no poder e depois transmitir aos fiéis o que aconteceu nesse encontro e que frutos gerou. Isso ajuda as pessoas a compreenderem quais as intenções deste grupo e a serem pacientes… Porque as coisas precisam de tempo e temos de ser todos nós, sírios, a construir a nova Síria. Cada um de nós é responsável pelo futuro. Também nós, na nossa comunidade, procuramos dar esperança às pessoas, ajudá-las a serem pacientes, a não julgarem este novo grupo no poder e a darem-lhes uma oportunidade de governar.
A vossa comunidade tem também apostado muito em formar as novas gerações para o diálogo inter-religioso…
Sim, nós temos dois projetos principais em curso: um deles é a escola de música, na qual estão inscritas 63 crianças dos seis aos 18 anos, que todas as sextas-feiras têm aulas com professores que vêm de Damasco. Este projeto é muito importante porque, por um lado, aprender e fazer música é uma forma de ajudar as crianças a ultrapassar os traumas da guerra e, por outro lado, porque há professores cristãos e professores muçulmanos, o que proporciona esse encontro muito saudável entre as duas religiões. O outro projeto é o do jardim de infância, frequentado atualmente por 170 crianças, em que apenas sete são cristãs, e cujos educadores e auxiliares são também cristãos e muçulmanos. As crianças experimentam juntas a alegria de aprender, desenvolver os seus talentos artísticos, passear e brincar… E é um importante local de encontro e convivência para toda a população. Assim, penso que estamos a contribuir para criar uma nova geração que não terá uma mentalidade fundamentalista, que compreenderá que faz parte da nossa identidade crescermos juntos, na diversidade, e sem violência.
Essa foi umas das mensagens que procurou transmitir nas assembleias do Sínodo em que participou?
Sim, falei muito sobre isto, especialmente nos pequenos círculos. Porque acho que, no Ocidente, e também no Oriente, existe uma imagem deformada do Islão. E a minha experiência pessoal é a de que realmente podemos, não apenas conviver, como ser unidos. De resto, foi essa união que salvou a minha comunidade durante anos de guerra. Houve períodos em que não podíamos sair do mosteiro, por causa dos ataques, e os pastores da região, muçulmanos – que estavam proibidos de se deslocarem -, iam ao mosteiro todos os dias levar-nos pão, leite e tâmaras. Alguns chegaram até a passar algumas noites no mosteiro, para que nos sentíssemos mais seguros.
O que acha que levava os pastores do deserto a arriscarem as suas vidas para ajudar uma comunidade cristã a sobreviver?
O facto de nos conhecerem e de saberem que os amávamos… Antes da guerra, organizávamos workshops para promover o diálogo entre muçulmanos e cristãos. Mas não colocávamos a religião no título, para não afastar ninguém. Colocávamos, por exemplo, “respeitar os outros”. E depois conversávamos profundamente sobre esse tema, o que muitas vezes nos levava à religião, claro. Ao fim do dia, nós tínhamos a missa e os muçulmanos faziam as suas orações. Juntávamo-nos novamente ao jantar e a seguir entoávamos cânticos religiosos… A união era algo que conseguíamos tocar.
Considera que foi por essa experiência de diálogo inter-religioso num contexto tão adverso que recebeu o convite para participar neste Sínodo?
Confesso que não sei… Fiquei muito surpreendida quando o nosso patriarca me convidou! Mas fiquei muito feliz por ter esta oportunidade. Era a única mulher da Síria e foi uma enorme alegria poder partilhar as minhas experiências com os restantes membros e poder trabalhar em grupo, juntamente com o Espírito Santo, para fazer algo bom para a Igreja, para todas as Igrejas, e para o mundo.
O que é que a marcou mais durante as assembleias do Sínodo, e o que é que de mais importante levou consigo para a Síria?
Penso que as palavras-chave foram “escutar” e “amar”. E senti realmente que, através do método da conversação no Espírito, conseguimos escutar e amar o que escutávamos. Trouxe esse método comigo, para a comunidade, para as Igrejas, para as famílias, para todos. Tenho dito que deve ser um estilo de vida. Outra coisa que me marcou muito foi a celebração penitencial [a 1 de outubro deste ano]. Foi muito importante que o Papa nos tenha ajudado a ver os nossos pecados e a pedir perdão por eles. Mas também a perdoar aqueles que nos magoaram a nós.
Tem procurado implementar a sinodalidade na Igreja Católica Siríaca? De que modo?
Sim, tenho ido a muitas comunidades, em várias dioceses, falar sobre a sinodalidade. E também falo dela aos grupos que recebemos no mosteiro, sejam peregrinos, grupos de jovens, escuteiros, e mesmo muçulmanos. Tento sempre falar da sinodalidade, mesmo que de uma forma indireta.
E quais têm sido as reações?
A maior parte das pessoas revela entusiasmo. Mas por vezes, da parte da hierarquia da Igreja, o entusiasmo não é assim tão grande… Acho que alguns têm medo de perder poder. E outros não compreendem ainda o que significa a sinodalidade.
Têm medo também de que a mulher assuma um papel mais relevante?
Penso que esse problema não se coloca na Síria, e falo da minha experiência pessoal. Em geral, as mulheres na Síria têm os mesmos direitos que os homens. E na Igreja, eu fui durante dez anos a superiora do mosteiro, onde havia mulheres e homens. E foi uma experiência sinodal. Todos me respeitavam, e eu também pedia opiniões e ajuda aos meus irmãos padres, sobretudo aos mais velhos, porque tinham mais experiência que eu… E atravessámos momentos muito difíceis, com o rapto do nosso fundador, e depois também do padre Jacques Mourad, em maio de 2015 [libertado após 5 meses de prisão), e a destruição do Mosteiro de Mar Elian pelo ISIS em agosto do mesmo ano. Não foi fácil para mim assumir a liderança e a responsabilidade, mas senti que todos procuraram ajudar-me e que os meus dons eram reconhecidos.
O padre Paolo Dall’Oglio continua desaparecido, já lá vão 11 anos… Têm esperança de que esteja vivo e possa agora ser libertado?
Não sabemos nada sobre ele, mas não perdemos a esperança. Continuamos a rezar por ele e pelo seu regresso!
E como vai ser o Natal no mosteiro?
Comemoramos o Natal no dia 24 de dezembro e em geral há muitas pessoas que se juntam a nós no mosteiro. À meia noite, saímos da igreja para iniciar a missa ao redor do fogo como símbolo para receber Cristo, nossa luz, e voltamos para dentro para continuarmos a missa. No final, tornamos a sair e ficamos reunidos à volta da fogueira, a beber chocolate quente e a conversar alegremente. Este ano, em particular, o nosso Natal será de feliz esperança para o nosso país e de solidariedade com todas as pessoas que sofrem, em especialmente os mais pobres e os que vivem no meio da guerra. Rezando e desejando um mundo onde toda a humanidade viva pacificamente e em união. Rezem também por nós!
Comentários