Ricardo Carvalho (nome fictício) vai estar numa mesa em Alvalade no fim de semana das Eleições Europeias. Não é a sua primeira vez a fazê-lo, mas será a primeira com cadernos desmaterializados. É que este é o primeiro ano em que se pode votar em mobilidade no dia da eleição e sem inscrição. Os cidadãos que o pretendam apenas têm de apresentar um documento oficial com fotografia atualizada em qualquer mesa de Portugal continental, regiões ou estrangeiro.

Ricardo explica ao SAPO24 que vai haver nas mesas dois computadores para registar o voto. No total em todo o país haverá 19 mil computadores fornecidos pelo Ministério da Administração Interna, modelo Tsunami da JP Sá Couto. Computadores esses que, segundo o membro da mesa, "só servem exatamente para operar a aplicação de registo dos eleitores." Por razões de segurança e para diminuir qualquer possibilidade de fraude eleitoral, "quando se liga o portátil automaticamente aparece imediatamente a aplicação com os cadernos eleitorais desmaterializados e depois para se desligar o computador é só, literalmente, carregar no botão de desligar".

Já Rui Martins acumula ser escrutinador e fazer parte da organização Cidadãos pela Cibersegurança. O informático vai estar na escola Filipa de Lencastre e embora também tenha queixas na forma como correu o teste, assegura que "a aplicação da Critical Software parece ser bastante bem feita e robusta. É intuitiva e funciona bem." Quanto à simplicidade, ironiza: "o manual dos técnicos nesse aspeto tem dois pontos, o ponto A remete para o ponto B e o ponto B diz que é para fazer restart."

Ricardo continua a explicação. "Cada membro da mesa vai ter um nome de utilizador e uma password que lhe permite aceder a um perfil diferente. Isto é, o presidente e o vice presidente das mesas têm mais opções que os restantes membros, do que o escrutinador e do que o secretário. Na medida em que o presidente e o vice presidente é que podem abrir, suspender e fechar a mesa."

Tudo parece simples à partida, mas na prática as coisas complicaram-se. E, no caso da mesa de Ricardo, o primeiro sinal de alarme foi "a falta de conhecimento sobre o processo eleitoral do técnico informático". E segundo o próprio isso "condicionou muito o teste", porque havia dúvidas sobre a dinâmica do dia 9 a que o técnico não sabia responder. "Estava impreparado", resume. Ricardo Carvalho dá um exemplo: não sabia como se iam receber as credenciais e depois disse que seriam as mesmas para o dia de teste e o dia da eleição. "Contudo, à tarde, recebemos o envelope e dizia em letras bastantes grandes na parte da frente do envelope 'dia de teste'".

Também Rui tem algo a apontar às passwords. "É uma password simples, não tem multifator, o que traduzindo quer dizer que não tem a segurança mínima que se usa para entrar numa rede social, por exemplo. Mas não é o único problema. "Se as passwords do dia forem como aquelas são demasiado simples e preditivas. Mas de facto não sei, podem vir a ser complexas".

Inês Almeida esteve nos testes em Dois Portos, Torres Vedras, e mostra-se muito mais otimista que Rui e Ricardo, embora "no início estivesse um bocadinho reticente". Mas os seus testes também não decorreram sem sobressaltos e as queixas são mais ou mesmo as mesmas. No bom e no mau os três concordam, e também Inês achou "de uma forma geral o sistema simples, bastante userfriendly."

Para além da "impreparação de alguns técnicos de apoio informático" há mais três questões que preocupam Ricardo. Uma delas é a formação ter sido voluntária e portanto teme que, por isso, a formação vá acabar por ir acontecendo ao longo do dia da votação. Reconhece que "a curva de aprendizagem é relativamente curta e rápida. Não estamos a falar de uma coisa complexíssima, mas é mais um entrave num processo que se queria o mais limpo e ágil possível."

Sabe que não foi fácil encontrar técnicos de informática para as eleições, "pela data e por ser necessário um número muito elevado de pessoas". Mas tem uma sugestão: "era preciso a pessoa ter estado em pelo menos uma eleição antes. Porque havia poucos requisitos mínimos e um deles é terem o 12.º ano, mas era quase de livre inscrição".

Rui combina na referência à dificuldade em encontrar técnicos, dizendo que "há pessoas que não são informáticos e estão a trabalhar como informáticos". Mas não vê um problema nisso. "O técnico informático está bastante limitado naquilo que pode fazer. Mesmo que fossem informáticos não podiam fazer muito porque a máquina está fechada.Vai ser um humano que vai dar esclarecimentos básicos sobre o funcionamento da aplicação".

Depois passa para as "maiores preocupações", a primeira " tem a ver com a falha que houve, aparentemente a nível nacional na linha de contingência". E acrescenta que mesmo funcionando acha que este "plano B" não é o mais eficaz , já que "irá causar lentidão nas mesas se tiver de ser acionado". Contudo, "o que aconteceu no sábado foi que de todo não funcionou. Falhou em toda a linha. Ligava-se para o número, havia uma gravação a dizer que tínhamos ligado para a linha de apoio aos cadernos eleitorais desmaterializados e que tínhamos que nos autenticar e depois silencio absoluto. Não havia opções, não havia nada. A linha falhou totalmente." Foi o que aconteceu também a Inês, o que a levou a acreditar que não lhes tinham entregado dados suficientes.

Também Rui alerta para o facto de que se "falhar o plano A, se um dos dois computadores não conseguir fazer a validação, a pessoa tem de ligar para o contact center dos escrutinadores. Isso é o plano B. Mas não há plano C. Se o contact center não tiver resposta, como não teve no dia de teste, vamos ter problemas porque não temos nem plano A, nem plano B." E deixa o alarme: "se não reforçarem os call center há problemas, porque há pessoas que não vão conseguir votar, e isso pode pôr em causa as eleições, que podem ter de ser repetidas".

Aqui a solução do informático é analógica. "Não há justificação para não terem enviado os cadernos em papel para as mesas." Quando confrontado com o facto de nesta eleição se poder votar em qualquer lugar e portanto ser difícil ter os cadernos em papel de todos os eleitores em todas as mesas, resolve rapidamente: "o que devia ter sido feito era enviar para cada mesa os próprios cadernos, assim a pessoa podia dirigir-se à sua mesa original e votaria lá".

E uma vez que essa solução pode ser difícil, e em alguns casos impossível, deixa uma dica: se não conseguir votar numa mesa, vá tentando nas outras mais próximas.

O otimismo de Inês contrasta neste ponto, concorda que "a plataforma demorava imenso tempo a responder" num teste que "durou duas horas e meia, três no máximo, e acho que durante esse período stressámos a plataforma ao máximo". Mas acha que "ter cadernos é impossível. Se estamos a permitir às pessoas que votem em qualquer mesa do país, nós não vamos conseguir garantir isso com os cadernos materializados. Portanto, vamos ter de esperar pelo sistema". E está confiante que "o sistema também vai permitir isso, não vai estar em baixo e há a promessa de reforçar".

"No máximo vamos perceber que não pode haver muita gente a votar em simultâneo", atira Inês. E lembra que a haver um tempo de espera superior ao normal, é numas eleições europeias que normalmente têm menos participação. Acrescenta ainda que vai haver um "semáforo". Isto é, no dia das eleições, estará disponível online, ao momento, a afluência às diferentes mesas de voto, através de uma ferramenta online, que permitirá ao cidadão poder verificar, na zona onde está, quais são as mesas que têm menos afluência e evitar aglomerações.

Uma pessoa que Ricardo diz ser "mais experiente" disse-lhe que "é para descobrir os erros que se fazem os testes", mas isso não o descansou. "Acredito que ninguém que esteve numa mesa nacional saiba como é que regista um eleitor telefonicamente se informaticamente falhar. É mais uma coisa que vamos ter de aprender em direto no dia 9", assegura.

Por fim, Ricardo acrescenta que houve uma mensagem de erro a aparecer repetidamente no momento de tentar registar um eleitor. "É daquelas coisas que não tira imenso tempo. Mas em mesas de voto mais concorridas, com filas a acumularem-se, quiçá possa ser um constrangimento." E extrapola dizendo que em última análise poderá "provocar o abandono dos eleitores que podiam preferir não votar." Juntando a estas pequenas coisas, "a velocidade da leitura dos dados do cartão de cidadão está longe da ideal. Não é lentíssima, mas eu diria que nisso se poderia trabalhar. Há ali um compasso de espera que talvez corresponda a um dos escrutinadores mais rápidos a ler os números em papel."

Rui Martins diz que "as máquinas estão bem construídas", mas explica que "quando se ligam pede para se fazer um login completo na RNSI — rede pública partilhada pelo estado—- e essa rede não deve ter conseguido aguentar tantos login." Lembra que os login foram apenas as pessoas que estavam a fazer os testes no dia 1, e questiona como será no dia 9. E suspeita qual terá sido o problema. "Posso dizer que aquilo não aguentou a carga. Não é uma questão de cibersegurança pura. Embora haja formas de mandar abaixo os vários sistemas, palpita-me que o sistema não foi dimensionado para a carga que vai receber."

Justifica que acontece muitas vezes subdimensionar-se. "Lembro-me quando há uns anos se lançou o IRS online o sistema não aguentou. Os primeiros anos foram de ajuste do sistema à carga que estava a receber. Isto é normal acontecer em sistemas de grande escala que funcionam pela primeira vez e isto pode ter tido resolução esta semana".

Mas Rui garante que na sua escola "ninguém conseguiu entrar de manhã" e, como já explicou, quando ligava para o call center de apoio apenas ouvia "número indisponível, tente mais tarde." Mas, à tarde, houve um computador onde foi possível fazer o login e por isso presume que o problema tenha sido carga.

Fernando Anastácio, porta-voz da Comissão Nacional de Eleições (CNE) confirma ao SAPO24 que a linha de contingência falhou. Mas estará tudo solucionado. "Segundo o que nos foi reportado pela secretaria geral do MAI, o problema está resolvido".

Adianta que "houve um problema técnico com o operador de telefones, foi um crash do operador". E, indo ao encontro da experiência de Rui, diz que "acabou por se resolver mais tarde, houve no fim do dia pessoas que conseguiram acabar o procedimento".

Ideia repetida pelo porta-voz da CNE que assegura que "de facto houve alguns problemas que tiveram a ver com a existência de muita gente a procurar ao mesmo tempo e, portanto, isso implicou fazer-se depois algumas correções no software para tornar rápido".

No que à rede de internet diz respeito, Ricardo também tem queixas e conta que demorou uns cinco a dez minutos a conectar à rede. A Rui contaram que "há locais de votação onde a validação pode demorar até cerca de cinco minutos. Isto acontece em zonas rurais onde a ligação a dados moveis é mais fraca."

Mas Inês, que fez o teste na zona oeste, não revela problemas nesse aspeto. "Pelos vistos há poucas mesas como a minha, que não têm inicialmente um sistema de internet associado, e portanto eles tiveram de colocar um router na sala e nós estivemos a testar isso". E explica que foi tudo deixado na mesa de voto: "tínhamos um manual que dizia como instalar o router e a ligação foi feita ao PC através de um cabo de rede". Durante uns segundos chegaram a achar que havia um problema na rede, mas era afinal "uma sobreposição do sistema", a tal "carga" de que Rui falava.

Embora a postura de Inês contraste da de Ricardo e Rui, a experiência também não foi perfeita. E houve uma queixa exclusiva sua. "Pareceu que o sistema ainda não tinha informação totalmente atualizada", já que para testar o sistema votou na mesa onde estava a fazer o teste que é aquela onde vota também. "No fim, eu tirei o relatório e dizia que duas pessoas tinham votado naquela mesa e que havia três que estavam a votar em mobilidade, e eu era uma delas."

A dúvida foi tanta que chegou a confirmar com SMS para o 3838 se a sua mesa tinha mudado. Diz que no dia ninguém lhe soube dizer o motivo daquilo estar a acontecer, mas que desde manhã suspeitou que alguma coisa estava mal. "Quando abrimos a mesa dizia que tínhamos 500 eleitores e eu vi logo que aquilo estava errado. A mesa tem mais de 650, claro que podia haver óbitos e o número ter baixado, mas nunca quase 200 mortes. Acho que tem a ver com o sistema estar a associar pessoas, como eu, a mesas de voto que não são as suas".

Embora o Porta-voz da CNE tenha garantido ao SAPO24 que os problemas reportados foram resolvidos, Rui deixa um conselho. Explica que normalmente as pessoas estão nas urnas às 7h da manhã, mas nesta eleição estarão às 6h para carregar os votos antecipados. Portanto, "o ponto de carga do sistema vai ser entre as 6h e as 9h da manhã, vamos ter 19 mil mesas em todo o país a carregar os votos antecipados, vai ser o pico." Acredita que "depois daquele pico inicial o sistema normaliza, porque vamos carregar 20 mil votos em cada cinco minutos. Mas se alguma coisa for abaixo é de manhã." Ora, segundo ele, isso significa que quando abrirem as mesas, às 8h, vão estar em fila, e as pessoas não vão conseguir votar às 8h porque se está a carregar os antecipados."

Depois do conselho, Rui deixa o aviso. Questionado pelo SAPO24 acerca de possíveis fraudes aos cadernos eleitorais virtuais, diz não crer haver problemas. Mas "há questões", logo porque o código é fechado, "e a história da segurança pela obscuridade é do século XIX, devia ser código aberto para ser auditado". O que o leva para a segunda questão: sabe-se que foi a Critical Software que fez o código fonte, mas desconhece-se quem o auditou.

Mas, de modo geral e sem alarmismos, "a principal dúvida em termos de segurança é a possibilidade de se entupirem os servidores, por um problema de carga efetiva ou simulada" e para isso "basta alguém descobrir os IP". Por fim, lembra uma outra hipótese através dos números dos call center "que não são propriamente secretos". "Se alguém através de uma app fizer milhares de chamadas para aqueles números, é uma DDoS (ataque de negação de serviço) aos call center".

*Até à data de publicação deste artigo o Ministério da Administração Interna não respondeu às questões do SAPO24