Até serem conhecidas algumas sondagens que davam a vitória a Donald Trump nas eleições norte-americanas, e depois de semanas com previsões renhidas, os democratas continuavam a acreditar que seria possível Kamala Harris chegar à Casa Branca. Contudo, o republicano foi o 47.º presidente eleito no país. Por que razões poderá Kamala Harris ter perdido?

Segundo o Al Jazeera, e com base numa sondagem realizada pelo Carnegie Endowment for International Peace, Harris iria obter menos votos da comunidade indo-americana do que o atual presidente, Joe Biden, obteve em 2020.

As razões para a diminuição de apoiantes encontradas junto da comunidade foram algumas e podem ter-se estendido a alguns outros eleitores.

Direito ao aborto e "ataques a Trump"

Entre os 2,6 milhões de eleitores da comunidade indo-americana inscritos para votar nas eleições, 61% dos inquiridos afirmou que votaria na candidata democrata, menos 4% em relação às últimas eleições presidenciais. Já 47% dos participantes no estudo identificaram-se como democratas, enquanto que, há quatro anos, eram 56%.

Por outro lado, os autores do estudo concluíram que houve "uma mudança nas preferências da comunidade", com um ligeiro aumento na intenção de voto no candidato republicano, Donald Trump.

"Embora a comunidade indo-americana não seja muito grande em números absolutos, pode ajudar a influenciar a decisão numa direção ou noutra”, disse Milan Vaishnav, diretor do Programa do Sul da Ásia, no Carnegie Endowment for International Peace, e coautor do artigo.

"Há muitos estados onde a população da comunidade é maior do que a margem de vitória na eleição presidencial de 2020", acrescentou. Por exemplo, os indo-americanos são a maior comunidade asiático-americana na Pensilvânia, Geórgia, Carolina do Norte e Michigan - estados que foram decisivos na eleição de hoje de Trump.

Quanto às razões que levaram à diminuição da intenção de voto em Kamala Harris, Aishwarya Sethi, eleitora indo-americana, de 39 anos, radicada na Califórnia, aponta - baseando-se na atitude do marido, que mudou a sua intenção de voto para Trump - o discurso da democrata sobre o direito ao aborto no país e a descrição que fazia sobre a posição de Donald Trump em relação à temática.

Na sondagem era visível a diferença na intenção de voto de homens e mulheres: 67% das mulheres da comunidade indo-americana pretendiam votar em Harris, enquanto 53% dos homens planeavam votar no presidente agora eleito.

"A liberdade reprodutiva é uma preocupação primordial para as mulheres em toda a América, incluindo as mulheres do sul da Ásia, e o apoio [feminino] a Harris não é surpreendente, dada a sua posição sobre os direitos ao aborto”, disse Arjun Sethi, um advogado indo-americano baseado em Washington, DC.

Políticas de fronteira e mulheres na presidência

Contrariamente, "um número crescente de homens do sul da Ásia apoia as políticas de fronteira fortes e um regime tributário mais amigável, [portanto] alinhando-se com Trump", explicou Sethi.

"Há também um ceticismo crescente entre alguns homens indo-americanos para votar numa mulher para presidente", acrescentou Milan Vaishnav.

"Este artigo mostra a insatisfação com o Partido Democrata, mas não significa necessariamente uma maior identificação com o Partido Republicano”, disse Sangay Mishra, professor de Relações Internacionais na Universidade Drew, em Nova Jersey, nos EUA. "Porque dentro da comunidade indo-americana, os republicanos ainda são associados à posição cristã, ou branca, nacionalista", continuou.

Origem de Kamala Harris

Por outro lado, o facto de Kamala Harris se identificar muitas vezes como "uma mulher negra" pelo pai ter origens jamaicanas, mas não se identificar com as origens indianas da mãe, afastou alguns eleitores da comunidade sul-asiática.

Na sondagem, entre os inquiridos, 12% disse estar menos entusiasmado com a democrata porque "Harris se identifica mais com as suas raízes negras", contra 7% que disse estar entusiasmada com a sua herança indígena da democrata.

"Na verdade, há mais entusiasmo por alguém como Tulsi Gabbard ou Usha Vance do que por Kamala Harris [na comunidade indo-americana]”, afirmou Rohit Chopra, professor de Comunicação na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, nos EUA.

"No mainstream americano, Harris é conhecida como afro-americana", continuou. "A 'indianidade’ não tem o mesmo valor de troca [como os eleitores negros], estrategicamente não vale a pena", completou Chopra.

Guerra na Faixa de Gaza e apoio do atual Governo a Israel

Outro motivo para a redução do número de indo-americanos a identificarem-se como democratas e a estabilização do número daqueles que já se identificavam como republicanos reside, de acordo com o estudo, na guerra de Israel na Faixa de Gaza, na qual mais de 43.000 pessoas morreram, e o firme apoio do Governo de Joe Biden a Israel.

"Um grande número de jovens, particularmente jovens indo-americanos, estão desiludidos com a posição que os democratas tomaram em Gaza”, disse Mishra.

“Há muita conversa sobre eleitores não comprometidos, ou dar um voto de protesto, para mostrar que as pessoas estão descontentes com o que está a acontecer em Gaza. Isso está a influenciar, pelo menos, uma parte dos indo-americanos”, referiu.

No estudo, Sethi acrescentou que "um número crescente de jovens sul-asiáticos" iria votar num candidato de um terceiro partido por estarem comprometidos com acabar com o genocídio em Gaza e, portanto, recusavam-se a votar em Trump ou em Harris.

Laços de amizade

Já para alguns especialistas em imigração e analistas políticos, o distanciamento da comunidade indo-americana de Kamala e a aproximação a Trump deveram-se à relação de amizade entre o republicano e o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, um líder nacionalista hindu.

Inclusive, na passada quinta-feira, Donald Trump tentou atrair o voto hindu-americano.

"Condeno veementemente a violência bárbara contra hindus, cristãos e outras minorias que estão a ser atacadas por multidões no Bangladesh", escreveu na rede social X. "Isto nunca teria acontecido sob a minha supervisão", continuou, aproveitando para dizer que "Kamala e Joe ignoraram os hindus no mundo todo e na América".

Contudo, Vaishnav lembrou que, apesar da perceção comum de que "os indo-americanos tendem a votar nas eleições presidenciais com base nos laços entre os EUA e a Índia”, "a política externa pode ser importante para os indo-americanos, mas não é uma questão eleitoral definidora".

Para o coautor da sondagem, os eleitores indo-americanos são motivados a votar, sobretudo, por preocupações diárias como os preços, o emprego, a assistência médica, as mudanças climáticas e os direitos reprodutivos.