No segundo episódio dos Palavrões da Ciência, conversámos com a Francisca Coutinho, uma investigadora do Instituto Ricardo Jorge (Porto) que trabalha na investigação das doenças do lipossoma, que afligem algumas crianças. Em cada episódio, passo uns pouquíssimos minutos a falar da origem de uma palavra comum. Desta vez, como estas são doenças que atacam as crianças, escolhi a palavra «filho». Foi só o ponto de partida de uma conversa inesquecível... Oiça em: Spotify | Apple Podcasts.
Já contei a história por aqui. Cá está de novo...
A origem de filho
Grande parte das línguas da Europa descende de uma língua antiga com o lindo nome de proto-indo-europeu. O nome que os seus falantes lhe davam seria outro, bem mais simples — espero.
Sem certezas, podemos apontar para o território da actual Ucrânia como o mais provável cenário das conversas nessa língua, que veio a dar origem a línguas tão díspares como o português, o inglês, o irlandês, o russo, o grego, o persa, o sânscrito, entre tantas outras.
Os linguistas reconstruíram a forma da palavra para «filho» nessa língua: «*suHnús» — o asterisco indica que estamos perante uma palavra reconstruída, sem registo escrito.
Seria esta a palavra que os filhos ouviriam da boca dos pais, ali pelas costas do Mar Negro, há uns bons 5000 anos: «Ó suHnús, anda para casa, que já é nókʷts!».
De há 5000 anos para cá, muita coisa aconteceu. O proto-indo-europeu dividiu-se em várias línguas, que por sua vez se dividiram noutras línguas, sempre com mudanças — algumas graduais, outras bem mais radicais.
No caso da palavra para «filho», há línguas que receberam, depois de muitas pequenas mudanças, a palavra proto-indo-europeia. É o caso do «son» inglês e do «сын» («syn») russo, só para dar dois exemplos.
Mas, no caso das línguas latinas, houve um pequeno acidente de percurso. A certa altura, os falantes deixaram de lado a velha palavra e começaram a usar outra...
Façamos a viagem em direcção ao passado. Do nosso «filho», chegamos (com um salto apressado) ao «filius» latino. A palavra latina descende da palavra «*feiljos» do proto-itálico, uma língua anterior ao latim. Por fim, essa palavra veio do tal proto-indo-europeu, onde tinha a forma «*dʰeh₁ylios».
O curioso é que a palavra, nessa língua antiga, tinha outro sentido. Significava «sugador»! Afinal, um filho era o que mamava.
Em que momento da história a palavra para «sugador» passou a ter o significado de «filho»? Não sabemos, mas terá sido há mais de 3000 anos... Lá que é um grande salto, lá isso é. «Tenho lá em casa dois sugadores...» Diga-se que a mesma palavra proto-indo-europeia deu origem a outras palavras, como «feminino» e (tapem os ouvidos aos pequenos) «felação»...
Muitas palavras deram estes saltos. Aliás, sem sair do mesmo tema, o gaélico escocês «mac» significa filho — basta pensar num nome de restaurante muito conhecido fundado por um filho de Donald... O tal «mac» tem origem na palavra do proto-indo-europeu para «criar» ou «tornar maior». Um pouco menos embaraçoso que os nossos «little suckers».
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Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. Apresenta, com Cristina Soares, o programa Palavrões da Ciência.
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