"A maioria absoluta revelou-se uma receita para a instabilidade e para a má governação", diz Ana Gomes, militante socialista e ex-deputada europeia. "O problema é que o partido é uma máquina organizada de poder, está completamente aniquilado pela obsessão de suportar o poder".
Para Ana Gomes é o partido no seu conjunto que tem de assumir responsabilidades. "E as suas responsabilidades são dar resposta às necessidades do país e dos portugueses. Não é possível continuar com discursos em que só se destaca os fantásticos números macroeconómicos, esquecendo que as famílias estão a viver tempos muito drásticos, só comparáveis aos tempos da troika, com baixíssimos salários, perda de poder de compra em resultado da inflação e sem sequer poder pagar as suas casas em resultado das altas taxas de juro".
"O problema é que o partido é uma máquina organizada de poder, está completamente aniquilado pela obsessão de suportar o poder" - Ana Gomes
Mas não é que "António Costa não seja capaz de governar". A questão, diz, é que "não está interessado". Afinal, perguntamos, o que faz correr o primeiro-ministro? "Eu tenho a minha interpretação, mas não a vou avançar", responde.
Daniel Adrião, membro da Comissão Política Nacional do PS, tem uma teoria: "Kennedy costumava dizer que há dois tipos de políticos: os que governam a pensar nas próximas eleições e os que governam a pensar nas próximas gerações. Claramente, António Costa é o tipo de político que governa a pensar nas próximas eleições".
Para o candidato a secretário-geral do partido nas eleições de 2016, de 2018 e de 2021 uma coisa é certa, "mesmo sem os casos e casinhos" que têm marcado a governação PS "haveria necessidade de mudar as políticas adoptadas para o país". Porque "isto não é uma questão de personalidades", "as alternativas constroem-se com base em propostas e ideias diferentes", afirma. E estas, "claramente, não estão a resultar".
Ana Gomes concorda. "A situação é absolutamente paradoxal e insuportável. Isto acontece porque estamos a discutir casos e casinhos e não estamos a discutir políticas públicas. Que podiam e deviam ser ambiciosas, reformas de fundo". Para a ex-deputada, "deixou de haver o sentido de missão, ambição estratégica".
"A governação é completamente táctica, navegação costeira", afirma. E justifica: "Há outros países que estão a aproveitar os fundos europeus para se tornarem contribuintes líquidos, para não precisarem de continuar a depender do dinheiro de Bruxelas. Portugal tem a ambição de continuar de mão estendida". Isto, numa altura em que, "mais do que nunca, tínhamos condições para ter um governo orientado pelo sentido de missão, porque temos uma maioria absoluta e porque temos o dinheiro dos fundos europeus".
"Está a ser criada riqueza, mas está a ir para os mais ricos"
A reunião plenária de quarta-feira mostra isso mesmo. No debate sobre política geral com o governo, foi a participação do SIS no caso do computador do ex-adjunto de João Galamba que dominou a sessão. Mesmo numa altura em que, como começou por lembrar Catarina Matins, líder do Bloco de Esquerda, "há milhares de pessoas sem saber o que hão-de fazer à vida", "há situações ruptura no SNS" e "temos as escolas em final de ano lectivo ainda em polvorosa".
"Acho absolutamente vital criar vasos de redistribuição de riqueza. Porque o problema é este: está a ser criada riqueza, mas está a ir para os mais ricos", diz Ana Gomes. A antiga eurodeputada acredita que mudar só é possível com "as reformas ambiciosas e de fundo de que o país precisa". E dá exemplos.
"Em vez da política assistencialista de passar um cheque aos mais pobres volta e meia, precisávamos de uma reforma fiscal a sério, progressista, que acentue a progressividade dos impostos e facilite e torne mais legível a questão dos impostos, que é uma floresta de embustes, exactamente para permitir todos os esquemas. Esta sim, é uma reforma socialista e que, de facto, um socialista devia empreender".
A confirmar esta urgência, esta semana a Comissão Europeia criticou o sistema fiscal português, que "é complexo" e "pouco transparente". No relatório específico sobre Portugal, os técnicos recomendam a sua simplificação, com uma diminuição da carga administrativa associada para melhorar o ambiente de negócios. As despesas fiscais atingiram 6,4% do PIB (Produto Interno Bruto) em 2022 - ano em que a arrecadação de impostos foi recorde -, e deverão aumentar ainda mais em 2023.
Daniel Adrião também está de acordo. "Falta muita coisa no programa do PS". Na sua opinião, "António Costa até começou bem, quando, lá atrás, em 2014, lançou um documento na base do qual construiu toda a sua campanha para vir a ser líder do PS, a Agenda para a Década. Um documento com uma visão de médio prazo e onde estavam algumas reformas interessantes, designadamente uma que me é muito cara, a reforma do sistema político e, em particular, a reforma do sistema eleitoral".
A reforma do sistema partidário esteve presente nos programas eleitorais do Partido Socialista em 2015 e em 2019. Depois, caiu. Na verdade, esta é uma história antiga: em 1997, com a revisão constitucional, os então líderes do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, e do PS, António Guterres, assinaram um acordo de revisão em que introduziram os círculos uninominais [é eleito um deputado, aquele que tiver mais votos], que precisaria de um entendimento posterior entre os dois partidos, já que tem de ter uma maioria de dois terços para passar. Na União Europeia, com variações, apenas três dos 27 países não têm voto nominal: Portugal, Espanha e Roménia.
"as eleições primárias no partido, que também defendeu no passado, foram ótimas para ele chegar ao poder, mas um inconveniente para quem não quer sair de lá" - Daniel Adrião
Daniel Adrião recorda que "António Costa foi um grande defensor dessa reforma e, enquanto ministro do Assuntos Parlamentares, chegou a desenvolver estudos para a levar a cabo. Só que a primeira coisa que fez quando chegou ao poder foi pôr isso de lado. Tal como a primeira coisa que fez quando chegou à liderança do PS foi arrumar com as primárias. Porque as eleições primárias no partido, que também defendeu no passado, foram ótimas para ele chegar ao poder, mas um inconveniente para quem não quer sair de lá".
A banalização de Marcelo Rebelo de Sousa
"Hoje estou mais preocupada com o PS do que nunca", afirma Ana Gomes. "Apoiei a geringonça, não apoiei a dissolução do parlamento em 2021, que foi precipitada e, no fundo, feita pelo presidente para servir o primeiro-ministro. O resultado foi mau, uma maioria absoluta com a qual nenhum dos dois contava.
Se em 2021 a ex-candidata à Presidência da República não apoiou a dissolução do parlamento, agora menos ainda: "Não tinha condições para o dissolver, não só porque o dissolveu em 2021, mas também porque estava diante de uma maioria absoluta com apenas um ano de governação. E, sobretudo, porque não tinha alternativa", com "a paupérrima oposição, designadamente a liderada pelo PSD".
E, apesar das críticas ao PS de António Costa, uma certeza: "Se houvesse hoje eleições, o Partido Socialista voltava a ganhar. Sem maioria absoluta, mas voltava a ganhar". Por isso, "o presidente da República, do meu ponto de vista, devia ter intervindo, mas de forma mais discreta e mais eficaz, no sentido de exercer a sua magistratura de influência". Assim, "banalizou a sua intervenção".
Também Francisco Assis, que desmentiu publicamente qualquer grupo ou aliança com o deputado Sérgio Sousa Pinto como alternativa a António Costa, dá importância à palavra e à "utilização excessiva" do tema dissolução, que devem ser exercidos com mais "parcimónia".
O presidente do Conselho Económico e Social afirmou recentemente numa entrevista à RTP que "a dissolução da Assembleia da República seria muito negativa para Portugal" e que "é desejável que a legislatura chegue ao fim". Mas sublinhou que a perenização do PS no poder, "uma mexicanização", pode ser perigosa e alimentar comportamentos negativos, como "a ocupação excessiva e indevida do aparelho do Estado" ou "a falta de cultura política democrática", um risco que se acentua com as maiorias absolutas.
O advogado Manuel Magalhães e Silva, ex-consultor político de Jorge Sampaio, é da mesma opinião. "Exercer a magistratura de influência na praça pública provoca dificuldades". As relações entre presidente da República e primeiro-ministro sempre se contiveram no Palácio de Belém, a quatro olhos, longe dos holofotes e de maneira a permitir que, sem perda da face de ninguém, se fossem encontrando soluções".
"O que se passa e tem passado desde o princípio do mandato, mas nos últimos meses de uma maneira perfeitamente escandalosa, é o delírio institucional do presidente da República" - Manuel Magalhães e Silva
"Até chegarmos a Marcelo Rebelo de Sousa, que transformou o silêncio votado ao degredo e a palavra à diarreia". E explica: "O que se passa e tem passado desde o princípio do mandato, mas nos últimos meses de uma maneira perfeitamente escandalosa, é o delírio institucional do presidente da República. E eu com isso não pactuo", diz Magalhães e Silva.
"Existe uma relação entre o governo e o presidente da República que deveria ser mantida e, mantendo-se nesse quadro, permitiria que o presidente da República pudesse ser muito mais eficaz na influência sobre os negócios públicos". Da mesma forma que "tudo o que o presidente da República fez no mandato anterior de manifesta protecção do Partido Socialista é errado. Não é assim que se exerce a função de presidente da República".
Foram vários os casos na história mais recente em que presidentes da República condicionaram as escolhas de primeiro-ministros. No governo de António Guterres, Armando Vara cessou funções por influência do presidente e todo o governo de Pedro Santana Lopes teve o acordo prévio de Jorge Sampaio (oito indigitados não foram aceites por indicação do presidente, Paulo Portas foi um deles).
Manuel Magalhães e Silva não é formalmente militante, mas não nega "essa filiação partidária e ideológica". "Tive sempre como regra que disciplina partidária têm os membros do governo e, naquilo que não sejam questões de consciência, os deputadas à Assembleia da República. Não sou militante por mero acaso: quando houve o processo de refiliação promovido por Jorge Coelho, deixei passar os prazos e, depois, nunca mais pensei nisso".
O advogado diz que tem "n" observações críticas a fazer ao estado actual e passado do partido, mas "a abordagem crítica não passa necessariamente por uma qualquer alternativa, nem à liderança do PS, nem à governação do país".
Lutas internas e guerras de sucessão
"Olho para a vida política e para os actores na vida política em função daquilo que vão fazendo bem ou mal e não estou nada interessado nem nada preocupado com as questões internas", assegura. Mas vai adiantando que "o que se está a passar não tem nada que ver com o bem-estar do Partido Socialista nem com a correcção dos variadíssimos erros existentes, muito menos com o país. São só lutas de poder, mais nada", considera Magalhães e Silva.
"todo o episódio do computador é um episódio de luta pelo poder. Ponto parágrafo"
E, neste aspecto, "funciona não a disciplina partidária, mas alguma decência partidária. Só faz sentido que se possa tomar uma posição pública relativamente ao que está bem e ao que está mal, e às modificações nesse contexto, quando estão esgotadas as possibilidades de se conversar internamente. O trazer isso para a praça pública é uma luta pelo poder", "todo o episódio do computador é um episódio de luta pelo poder. Ponto parágrafo".
Acredita, então, que António Costa ainda ouve internamente? "Não tenho nenhuma indicação de que não vá ouvindo pessoas sobre a situação existente. E fico por aí". Mas, vai adiantando, "não tenho interlocutores privilegiados no governo e a circunstância de num determinado processo ser advogado do primeiro-ministro não me dá um lugar especial. Nem quero".
O ex-militante Pedro Caetano, que chegou a elaborar com Álvaro Beleza o programa do PS para a área da saúde, já não tem "ilusões", e aposta que "Pedro Nuno Santos será primeiro-ministro, exactamente com os mesmo vícios de Costa, para afundar ainda mais Portugal no pântano socrático e económico da cauda da Europa - ainda por cima agora com tiques comunistas e totalitários anti-mérito, anti-iniciativa privada e anti-liberdade, que horrorizariam os fundadores".
Francisco Assis considera que "este governo acabou por se revelar mais instável até do que o da geringonça" e na entrevista à RTP confessa que "a montra de sucessores apresentada no congresso não fez sentido nenhum. O governo não é um curso de formação profissional, devem ir para o governo os mais capazes e os mais maduros, com mais consistência política e técnica, e não para ver se têm futuro". E avança que é um erro o recurso a personalidades com pouca autonomia política e que "dificilmente sobreviveriam como figuras públicas mais do que 24 horas" depois da sua saída do governo.
Daniel Adrião também acusa António Costa de "estar a gerir de forma desastrada todo o processo da sua alegada sucessão, que ele próprio alimentou e tem alimentado", desde logo "com a nomeação dos proto-candidatos, que escolheu e levou para dentro do governo, transferindo para o governo um problema que não é do governo, é do PS". Essa é, para este político, "a razão de todos os problemas: tensão, conflitualidade e falta de coesão".
E responsabiliza também o primeiro-ministro pelo adiamento do Congresso Nacional do partido, que deveria realizar-se em setembro, mas, provavelmente, será adiado para o ano que vem. "As maiorias não servem para subverter as regras", diz, lembrando que os mandatos electivos são de dois anos (o congresso de 2018 foi realizado em maio e o seguinte em agosto de 2021, um adiamento que ficou a dever-se à pandemia, que fechou o país). A decisão será tomada pela comissão nacional, onde Costa tem maioria, na reunião de 3 de junho.
"As questões estão muito fulanizadas, quando o que está em causa é o rumo que o PS deve seguir - que, na minha perspectiva e de outros militantes deve ser diferente do atual. Todo o modelo de governance do PS deve mudar, tanto em termos de organização interna, aquilo que se designa por democracia intrapartidária, como em termos de matriz, que é reformista e transformacional - não se pode limitar a gerir a conjuntura, tem de ter a ambição de implementar uma agenda estratégica que sobreviva a governos direcções".
"no dia em que António Costa anunciar que parte para outra, haverá alternativas dentro do PS. À esquerda e à direita, de diferentes sensibilidades" - Ana Gomes
Apesar de considerar que "o partido se deixou reduzir ao papel de claque do governo" e que "está obnubilado pelo poder", Ana Gomes não tem dúvidas de que "no dia em que António Costa anunciar que parte para outra, haverá alternativas dentro do PS. À esquerda e à direita, de diferentes sensibilidades".
E lembra as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa. "Quando disse que este ano de 2023 era decisivo, suponho que não estava a descurar as implicações das eleições europeias do próximo ano, que podem determinar mudanças a nível nacional, desde logo pelo facto de o primeiro-ministro voltar a ser solicitado para um lugar europeu. Ao longo de anos António Costa construiu o lugar onde a bola vai cair".
António Costa tem tentado desfazer o mito, garantindo que não vai a lado nenhum e que os mandatos são para cumprir até ao fim, mas não seria a primeira vez que o primeiro-ministro voltaria com a palavra atrás, como aconteceu em relação à TAP, por exemplo, que primeiro devia ser pública a todo o custo e agora, afinal, é para privatizar. A este propósito, Daniel Adrião recorda que há quem defenda que a manutenção de Galamba pode ser para provocar a dissolução da Assembleia da República, deixando em aberto o caminho para a Europa.
A grande hipótese, por isso, pode abrir-se em 2024 ou em 2026, "mas, em qualquer dos casos, António Costa só sairá com novas eleições", afirma Ana Gomes.
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