Numa das viagens em que levou ajuda à Bósnia, Magnus encontrou uns amigos, colegas de trabalho, em muito má situação. Ajudá-los significou esvaziar a conta bancária, 4.200 libras. "De regresso à Escócia só pensava nas contas para pagar: 'E agora? Não temos dinheiro. Por favor, meu Deus, ajuda-nos?'".

Quando chegou a casa, a mulher, Julie, deu-lhe um envelope para a mão. Lá dentro, um cheque no valor exacto de 4.200 libras. "'Sei que precisa disto'", podia ler-se. "Mais ninguém sabia o que tinha acontecido. Era de um padre irlandês que pedia o anonimato, nunca me encontrei com ele, nunca soube quem era", conta. "Isto não é uma coisa que aconteceu há 20 anos, continua a acontecer um pouco todos os dias", diz.

Magnus vem de uma família católica das Terras Altas da Escócia. A primeira vez que saiu do Reino Unido tinha 14 anos e foi para ir numa peregrinação a Fátima em família. Este ano voltou ao santuário para celebrar o 13 de Maio e rezar pelos voluntários e por todos os que apoiam a Mary's Meals, "com mão-de-obra, com dinheiro, com orações".

Hoje, a ajuda alimentar chega a 2,4 milhões de crianças das regiões mais pobres do mundo, mas não foi assim desde o início. Cerca de um ano depois depois de ter estado em Fátima pela primeira vez, Magnus foi noutra peregrinação em família, desta vez a Medjugorje, na antiga Jugoslávia, agora Bósnia-Herzegovina, onde seis crianças garantem ter visto Nossa Senhora.

Magnus MacFarlane-Barrow,
Magnus MacFarlane-Barrow, créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

"A viagem renovou a nossa vida de fé como família", recorda Magnus. "Já na Escócia, os meus pais transformaram a nossa casa num retiro para peregrinos, de portas abertas para quem chega e quer rezar. Ainda hoje é assim, passados 40 anos".

Mais tarde, durante a Guerra na Bósnia, que durou entre 1992 e 1995, Magnus e o irmão queriam fazer alguma coisa para ajudar a população. "Resolvi tirar uma semana para recolher mantimentos, roupas e outros bens junto de amigos, que depois fomos levar até um campo de refugiados perto de Medjugorje". Tinha então 24 anos.

Guiaram da Escócia até lá e a experiência foi tão marcante que, uma semana depois, Magnus desistiu do seu trabalho como criador de salmão, vendeu a sua casa e nunca mais parou. "Quando regressámos as pessoas continuavam a doar coisas e alguém me deu uma camioneta. Decidi que enquanto houvesse necessidade e enquanto as pessoas continuassem a doar bens eu continuaria a fazer este trabalho".

Foi nas idas e vindas da Bósnia, atrás do volante de uma carrinha de carga, que Magnus conheceu a mulher, uma enfermeira que "abdicou de tudo" para se dedicar aos outros. "Hoje, muitas vezes é ela que conduz e, admito com alguma vergonha, fá-lo muito melhor do que eu". Magnus e Julie têm sete filhos, alguns já independentes.

Nunca mais voltou à piscicultura e 30 anos depois aqui está. Mas esta é apenas uma parte da história. A primeira organização que fundou chamava-se Scottish International Relief e fazia muitas coisas além de distribuir comida e roupa, como construir casas para crianças seropositivas na Roménia ou trabalhar com crianças de rua na América Latina.

22€ para alimentar uma criança durante um ano

A Mary's Meals, organização sem fins lucrativos, nasceu em 2002. O nome é inglês, mas o movimento é global. "O nosso trabalho é fornecer uma refeição escolar diária. Suprir a necessidade imediata de alimentação da criança, permitindo-lhe ao mesmo tempo frequentar a escola, garantir a sua educação", explica Magnus.

"Muitas crianças vêm à escola por causa destas refeições, não estavam na escola antes disso. E sabemos que a Mary's Meals mudou a vida de mais de 2,4 milhões de crianças". A ONU declarou o objectivo "Fome Zero até 2030", mas a verdade é que mais de 200 milhões de pessoas passam fome, uma situação que as diversas guerras só tem vindo a agravar.

Mary's Meals
Mary's Meals créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Foi numa das muitas viagens pelo mundo que surgiu a ideia do projecto a que deram o nome de Maria, mãe de Jesus. "Naquele ano tive um encontro com uma criança no Malawi que me marcou. Foi um ano terrível lá, e este miúdo estava sentado ao lado da mãe, uma mulher a morrer de SIDA. Edward tinha 14 anos. Perguntei-lhe quais eram suas ambições: "Ter o suficiente para comer e poder ir para a escola", respondeu-me. E foram as suas palavras que realmente iniciaram este trabalho", recorda Magnus.

"Na Mary’s Meals acreditamos que os jovens são inovadores, promotores de cultura e agentes de mudança, são eles que vão encontrar soluções para as questões globais da fome, da pobreza, da injustiça. É a geração que nos aproxima da realização de "Fome Zero até 2030" e de um futuro diferente para o mundo em que vivemos".

Como decidem que países ajudar? "Queremos estar onde a necessidade é maior", responde Magnus MacFarlane-Barrow. "Onde é que as crianças estão a sofrer mais, onde passam mais fome, onde há mais crianças sem frequentar a escola? Isto significa que não fazemos escolhas fáceis e estamos frequentemente em locais de conflito e de guerra. É por isso que estamos no Sudão ou no Haiti. É aí queremos estar, é aí que o nosso trabalho tem o maior impacto".

O modelo de ajuda também é importante. "Queremos que seja propriedade local, tanto ao nível do trabalho diário de cozinhar e servir as refeições, como ao nível da produção. Privilegiamos comprar localmente, ajudando os agricultores, a economia e o voluntariado local. Trata-se de um entendimento muito claro com a comunidade desde o início", esclarece.

Para fazer não basta querer. "Olhamos para as estatísticas e perguntamos: este é um local onde queremos estar? Se sim, podemos encontrar um produto e entregá-lo de forma eficaz? Conseguimos encontrar uma boa organização para trabalhar em pareceria connosco? Podemos criar a nossa própria entidade lá? Muitas vezes os voluntários e os parceiros são pessoas que vivem na pobreza, mas que escolhem ajudar porque vêem como isso transforma a vida dos seus filhos ou netos".

Ou seja, a Mary´s Meal tem de assumir a organização de voluntários para garantir que todos os dias são preparadas, entregues e servidas as refeições nas escolas. Isto implica ter equipas nos países, dar-lhes formação e visitar as escolas pelo menos duas vezes por semana para verificar se os alimentos estão a ser bem utilizados. Muitas vezes os voluntários fazem parte de estruturas locais como a igreja, podem ser missionários ou irmãs da caridade, como acontece na Etiópia. Alimentar uma criança durante um ano custa em média 22 euros.

O caso de Cascais e o testemunho dos voluntários

A vinda de Magnus a Portugal foi organizada por voluntários. "Vim por causa deste incrível movimento de apoio, para agradecer aos que já apoiam a causa e convidar novas pessoas para aderirem à Mary's Meals".

Fátima foi "maravilhoso. Foi realmente incrível estar aqui tantos anos depois e milhares de pessoas a rezar juntas. Nunca perco a sensação de privilégio por Deus me ter dado este trabalho específico, isso dá-me muita alegria. E encontro pessoas incríveis o tempo todo, em todo o mundo".

"Sabe", diz o responsável da Mary´s Meals, "ligamos a televisão ou olhamos para a Internet e são só más notícias. Temos todas as razões para estar deprimidos. Mas eu tenho esta experiência de conhecer pessoas heróicas, gente que se entrega profundamente. E é impossível deixar de ter esperança. Por isso, diria que 30 anos a fazer este trabalho também fortaleceram a minha fé em Deus".

A verdade é que quando começa a alimentar as crianças de uma escola, seja onde for, a organização não sabe ao certo de onde virá o dinheiro para o ano seguinte ou os voluntários. E é aqui que "acontecem verdadeiros milagres".

Mary's Meals
Mary's Meals créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Em Cascais, o SAPO24 testemunhou a dedicação de muitos paroquianos à Mary's Meals. Mas, da mesma maneira que as crianças não têm de ter fé para serem alimentadas, também os voluntários não têm de ser católicos para ajudar. E cada um "contribui com o que pode o tempo que pode, dinheiro, mão-de-obra ou oração".

Há muitas maneira de ajudar. Inês Melo, por exemplo, começou por organizar noites de fados para angariar fundos e atrás de si levou um grupo de filhos de amigos, miúdas como Carminho Veloso, 20 anos, estudante de Gestão, que "no início nem sequer sabia o que era a Mary's Meals", mas hoje gostaria de ir "onde for mais preciso ajudar", ou António Cardoso Lopes, 18 anos, a acabar o 12.º ano, atraído por "uma causa da qual não se fala assim tanto". Estão onde é necessário, seja em bancas a distribuir folhetos, em eventos de angariação de fundos, a vender livros solidários "Refeições de Maria" ou a preparar salas para conferências e palestras sobre a organização.

Miguel e Mariana Arrobas são casados há 22 anos e têm sete filhos. Miguel participou nos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992, era então uma jovem promessa na natação. A vida quis que as coisas fossem de outra maneira. Hoje, nada em águas abertas com o apoio da mulher, que apenas impôs como condição que essas "provas" fossem uma plataforma de angariação de fundos para causas solidárias.

No ano passado, Inês Melo desafiou Miguel a correr pela Mary's Meals. "E se fosse antes a nadar?" E assim foi, Miguel tornou-se embaixador de uma prova de natação entre a Torre de Belém e Cascais, 20 quilómetros. Mas haverá outras braçadas solidárias.

Etiópia, Malawi, Zâmbia, Zimbabué, Haiti, Sudão, Moçambique. "Não me lembro de uma época em que tenha havido tanta necessidade. Em todos os países onde trabalhamos temos uma lista de escolas à nossa espera", desabafa Magnus.

Cerca de 50% das receitas da Mary's Meals provêm do Reino Unido, a maior fatia da Escócia, que tem apenas perto de 5 milhões de habitantes. Em segundo está os Estados Unidos, que representa cerca de 25% da ajuda monetária, seguido da Alemanha e da Áustria. Em Portugal o movimento está a ganhar peso. Como diz Inês Sevinate Pinto, outra voluntária, "quando a comunidade se inspira e ajuda, coisas boas acontecem".