Margarida Tavares é infecciologista do hospital de São João, no Porto, onde dedica parte do seu tempo à área da preparação e resposta a doenças potencialmente emergentes. “Havia pessoas que me diziam 'tu trabalhas com coisas que não existem'. E, de facto, é um pouco isso, nós temos de nos preparar para aquilo que ainda não existe”, conta ao SAPO24.
Em 2005, deu nas vistas quando perante a ameaça da gripe aviária foi incumbida de preparar o Plano de Contingência da Gripe do São João, o primeiro do país e que serviria de modelo para todos os outros em Portugal.
Agora, volta a estar na linha da frente, desta vez para combater a SARS-CoV-2, vírus que provoca a doença covid-19, com a qual acredita que teremos de aprender a viver — tal como acontece com a gripe.
Em entrevista, a médica assume-se como crítica do modelo confina/desconfina, diz que espera que a população saia desta pandemia com mais literacia em Saúde e o país com o alerta de que é necessário ter um sistema de saúde mais robusto para as pandemias que poderão surgir — e que se tornarão mais comuns com a pressão do ser humano sobre o planeta Terra.
Deixa porém uma nota de esperança: acredita que em 2022 será possível ir a um supermercado como antigamente, ou seja, sem máscara.
1 - A covid-19 é uma doença que veio para ficar e com a qual teremos de aprender a conviver?
Tudo aponta nesse sentido. Inicialmente, ainda pensámos que pudéssemos ter uma SARS com o mesmo tipo de atuação do que a que apareceu em 2003, que foi rapidamente contida. Não era impossível pensar nessa possibilidade. Mas também, por outro lado, tínhamos coronavírus que vieram para ficar, que são responsáveis pelos resfriados da comunidade ou até mesmo o coronavírus que provoca a síndrome respiratória do Médio Oriente, a MERS, que, embora não tenha o potencial pandémico deste novo coronavírus, também ficou cá até hoje, provocando muitos poucos casos, porque está associada a uma transmissão zoonótica, a partir dos camelos, e sobretudo ligada àquela zona da península arábica.
"Esta coisa das variantes, é verdade que estão a surgir, mas mesmo assim temos de ter a noção de que esta variabilidade é muito mais lenta do que aquilo que se passa nos vírus da gripe"
2 - É justificada a comparação com o vírus da gripe?
Tendo em conta que é um vírus RNA, apesar das pequenas diferenças, tem características com muitas parecenças com o tipo de vírus da gripe, o que nos faz pensar que é um vírus que pode ter um comportamento, tal como está a ter, muito idêntico ao da gripe. Estamos a aperceber-nos cada vez mais, por exemplo, de que provavelmente é um vírus que vai ter um comportamento sazonal, tal como a gripe tem. É muito plausível que ele possa ficar.
3 - Falava das pequenas diferenças entre o vírus da gripe e o SARS-CoV-2...
Há uma diferença relevante entre o vírus da gripe e este coronavírus: é que, como o vírus da Gripe A é um vírus cujo material genético está segmentado em oito segmentos, ele é muito muito mutável, muito mais do que este coronavírus que nós estamos a ver. Esta coisa das variantes... É verdade que estão a surgir, mas mesmo assim temos de ter a noção de que esta variabilidade é muito mais lenta do que aquilo que se passa nos vírus da gripe.
4 - Não é, então, uma surpresa que assistamos ao aparecimento de novas variantes, mesmo considerando essa diferença de ritmo quando comparado ao vírus da gripe.
A variabilidade existe e vai existir. E é natural. Os vírus estão cá, e não sendo seres vivos, mas sendo qualquer coisa desse género, há tendência na Natureza às coisas equilibrarem-se e haver uma seleção natural de vantagens. Cada vez que ele encontrar uma vantagem vai aproveitá-la e é isso que vai acontecer. Vai tornar-se, provavelmente, mais transmissível, mais sazonal e, creio eu, cada vez menos virulento, menos patogénico.
5 - Isso fará com que esta seja apenas a primeira de várias campanhas de vacinação?
Sim, é provável que possamos entrar numa situação parecida com o vírus da gripe em que vamos ter de, periodicamente, adaptar as vacinas às variantes que estão a circular mais predominantemente e, ao mesmo tempo, fazer boosts da imunidade dos anticorpos dos vírus circulantes.
"Há 15 anos, no serviço de urgência, se pedíssemos a uma pessoa para colocar uma máscara, a reação muitas vezes era 'mas porque é que eu tenho de colocar uma máscara? eu não pego nada a ninguém!'"
6 - Dos hábitos que adquirimos ao longo deste ano, quais é que acha que se vão manter? As máscaras e o frasquinho de álcool-gel vão ser a nova carteira e telemóvel?
Espero que não. Já se notou precisamente, a partir de 2006-2007, quando começámos a fazer uma preparação para a pandemia de gripe mais intensiva, nomeadamente aqui em Portugal, que as pessoas aprenderam imenso e tornaram-se muito mais capazes de assimilar rapidamente esse tipo de hábitos e de compreendê-los. Há 15 anos, no serviço de urgência, se pedíssemos a uma pessoa para colocar uma máscara, a reação muitas vezes era 'mas porque é que eu tenho de colocar uma máscara? eu não pego nada a ninguém!'. Isto era uma reação muito natural. Hoje em dia as pessoas compreendem que é uma forma de nos protegermos e de protegermos os outros, é perfeitamente aceite.
[A máscara e o frasquinho de álcool-gel] Em vez de serem [indispensáveis] como a carteira e o telemóvel, acredito que vão ser coisas que rapidamente acrescentamos à carteira ou à mala. Acho que se vai tornar algo mais natural, mas espero que não se enraíze, porque também é importante ver o rosto e o sorriso das outras pessoas. Nós sabemos que, se nos fecharmos, nos taparmos e não contactarmos com os outros, não temos transmissão de doenças, mas isso também não é viver. Tudo tem de voltar ao seu equilíbrio. Vai ser sempre um depois diferente do antes, mas espero que também fiquem coisas boas.
7 - Acha que Portugal está hoje mais preparado para enfrentar uma pandemia?
Acho que estamos mais preparados, mas acho que não estamos suficientemente preparados. Nem Portugal, nem muitos países do mundo. É muito difícil este esforço de nos prepararmos para o incerto. É preciso muita disciplina, muita perseverança, investimento, um investimento do qual não se veem facilmente resultados. É preciso um trabalho de formiguinha. Esta coisa de nos andarmos a preparar para uma coisa que nunca há-de vir... Às vezes, eu, que sempre trabalhei muito nesta área da preparação e resposta de várias doenças potencialmente emergentes, havia pessoas que me diziam 'tu trabalhas com coisas que não existem'. E, de facto, é um pouco isso, nós temos de nos preparar para aquilo que ainda não existe. E mais, o nosso sucesso é tão maior quanto menos elas se virem. É um trabalho difícil. Eu acho que Portugal não estava preparado, suficientemente, no seu todo. Alguns locais fundamentais não se preparam a tempo, outros preparam-se melhor, houve também heterogeneidade nessa preparação das várias estruturas. E depois, sabe como é, é um espírito muito português e é um espírito de muitos outros países, passada a tempestade esquecemos as coisas más.
8 - Ou seja, para o futuro fica a lição de uma maior preparação, mesmo que o ‘inimigo’ seja invisível.
Por exemplo, desde 2014 que insisto que precisamos de ter preparação regular, treino regular, por exemplo, no uso de equipamentos de proteção individual, atualizá-los, atualizar a formação de todas as pessoas potencialmente envolvidas. Isto toma muito tempo, os serviços por vezes estão assoberbados com outras tarefas, é difícil convencer as pessoas de que é preciso estar duas horas a fazer exercícios para uma coisa que não se sabe quando ou se vai acontecer. Mas não, não estávamos preparados o suficiente e em breve teremos outra coisa que vai ressurgir, mas claro que aprendemos algumas coisas.
9 - Há muita gente que defende precisamente que as pandemias se vão tornar mais regulares.
Não tenha qualquer dúvida. A possibilidade de termos uma nova pandemia por um outro agente — mesmo que seja um que já existiu, mas que se modificou o suficiente, como por exemplo, os vírus da gripe. Afinal, podemos sempre ter pandemias da gripe, porque os reservatórios naturais do vírus são as aves aquáticas migratórias. Há imensos vírus da gripe que são vírus aviários e que não são vírus humanos, mas que, em determinadas circunstâncias, em determinado momento, podem saltar, aquilo que se chama still over, de uma espécie para outra, adaptarem-se e tornarem-se um vírus humano. Então, [uma nova pandemia] pode acontecer com um vírus que nunca existiu, que nós nunca conhecemos, mas também pode existir com um vírus que já conhecemos, mas que se modificou muito, como os da gripe ou até outros coronavírus.
Há circunstâncias que são intrínsecas ao próprio agente infeccioso, porque nem todos os vírus têm a capacidade de se tornar pandémicos. Por exemplo, o vírus da raiva nunca deixou de ser um vírus animal. Quantas vezes ele já teve oportunidade de infetar o Homem? Ele infeta o Homem, mas nunca se transmite entre Homens. Transmite-se dos animais para o Homem e é assim já há séculos, portanto é pouco provável que vá mudar. Por outro lado, há vírus como VIH, que era um vírus dos primatas não-humanos, claramente bem identificado como tal, que em determinado momento saltou e adaptou-se de uma forma estupenda. Atualmente é um vírus absolutamente humano e não é mais um vírus dos primatas.
10 - A ação humana também nos aproxima desses novos vírus?
Há características intrínsecas ao próprio agente infeccioso, que tipo de vírus é, se é um vírus RNA, se é assim, se é assado, se muda, se não muda, se liga aqui, se se liga acolá... Depois há outras características que são as do hospedeiro e a do ambiente. São os pilares: o agente, o hospedeiro, o humano e o ambiente. Relativamente aos comportamentos humanos e ao meio ambiente, há características que são cada vez mais frequentes e que favorecem a emergência de novos agentes, nomeadamente o crescimento da população humana e com isso a pressão sobre o meio selvagem, sobre os animais selvagens, que cada vez aproxima mais o ser humano dos seus habitats e que o deixa em contacto com agentes que nunca havia contactado com tanta frequência antes. Por outro lado, com a globalização rapidamente se dá a volta ao mundo e um agente infeccioso pode espalhar-se rapidamente. Temos ainda as alterações climáticas, os eventos climáticos extremos, as secas, as cheias, as temperaturas que aumentam, que diminuem, os ciclos das águas... tudo isso favorece que haja alterações grandes no ecossistema que podem de facto levar a essas transformações e a essas emergências. E a própria atividade económica intensa, o uso da terra, grandes alterações do uso da terra, a exploração intensiva da terra, a produção intensiva de animais, tudo isso são fatores que favorecem a emergência de novas doenças infecciosas com origem nos animais.
"Chegar a um extremo destes de parar uma sociedade? Não, não creio que essa possa ser a solução"
11 - Se voltamos a passar por algo semelhante, vê no modelo confina/desconfina a solução para controlar a pandemia?
Não, não vejo porque nunca fui favorável a esse modelo. O confinamento para mim é uma medida absolutamente extrema para quando tudo falha, para quando já nada pode ser feito, para quando já mais nada resta, para quando tudo está em perigo. Para mim é assim. Temos de encontrar novas formas, modernas e adequadas à nossa forma de viver, à nossa vida em democracia, para poder ajudar a controlar as doenças, nomeadamente as doenças infecciosas e a sua transmissão. Claro que há coisas que sabemos que funcionam, a questão de nos afastarmos uns dos outros, a questão de protegermos a nossa respiração, proteger os outros da nossa tosse, a questão da higiene das mãos, no caso das doenças que se transmitem por contacto, como é o caso desta, medidas aplicadas cirurgicamente em determinados locais, fechar uma turma ou uma uma escola se há um surto significativo, medidas que sempre foram utilizadas e que sabemos que têm efeito. Agora, chegar a um extremo destes de parar uma sociedade? Não, não creio que essa possa ser a solução.
"Para mim estas mensagens de confinar e desconfinar... Eu preferia levar a mensagem de outra maneira, convencer as pessoas, porque acredito que elas são capazes de compreender, porque ninguém suporta viver nisto".
12 - Então qual é a solução?
A primeira coisa para podermos responder a estas situações é termos um sistema de saúde robusto que pode lidar e cuidar das pessoas quando uma fatalidade como estas acontece.
13 - Sobretudo no início, falou-se muito de imunidade de grupo como estratégia para combater a pandemia por parte de alguns países. Porque é que Portugal não a adotou?
Nós pretendemos adotar essa estratégia através da vacinação. Para além de termos sistemas de saúde robustos e preparados, uma segunda coisa importantíssima no controlo de uma doença infecciosa é uma vacina e aí sim entra a imunidade de grupo de que nós falamos. Os cálculos que fazemos é sempre baseado na existência de uma vacina. Claro que a imunidade natural pode ajudar, mas é muito difícil imaginar que vamos atingir uma imunidade de grupo, nomeadamente com valores muito altos como nós temos para esta infeção. O valor calculado, com base nas várias características da doença e na forma como ela se transmite, foi de 60% a 70% de imunidade de grupo. Com uma doença que tem esta letalidade, muito concentrada num grupo etário, não é sequer repartida, ela mata as pessoas muito vulneráveis e muito velhas da população, é difícil imaginar que conseguimos infetar tanta gente até atingir essa imunidade. Isso não é muito plausível. É perigoso. Precisamos de uma vacina para atingir essa imunidade de grupo.
14 - O que acha que deveríamos fazer diferente numa próxima vez?
Apostar mais na prevenção, na preparação dos cuidados de saúde para receber a situação e lidar com ela. Admitir que há pessoas que vão adoecer, que há pessoas que vão morrer, mas prepararmo-nos para ter a melhor resposta possível dos serviços de saúde. Por outro lado, também apostar numa estratégia de comunicação que permita levar as pessoas a fazer aquilo que queremos que elas façam. Para mim, estas mensagens de confinar e desconfinar... Eu preferia levar a mensagem de outra maneira, convencer as pessoas, porque acredito nas pessoas, acredito que elas são capazes de compreender, de se abster de determinados comportamentos durante uma fase curta, porque ninguém suporta viver nisto. Não é possível pedir isto às pessoas durante tanto tempo. Têm de ser medidas curtas, cirúrgicas e conseguir comunicar com as pessoas. Podem-me dizer que é muito difícil, mas eu acredito que é possível.
15 - Há pouco mais de um ano, grande parte dos nomes que vemos hoje na praça pública a falar sobre a pandemia de covid-19 eram desconhecidos para a maioria dos portugueses. Acha que os agentes da saúde, infecciologistas, epidemiologistas, médicos de saúde pública, conquistaram definitivamente um papel no espaço público?
Acho que é passageiro, sinceramente. É importante que em determinado momento falem as pessoas que sabem de determinados assuntos. Se o nosso problema fosse um vulcão, nós provavelmente teríamos geólogos todos os dias a falar de manhã à noite. Acho que é passageira esta ocupação do espaço público, embora ache que pode haver um benefício para a sociedade portuguesa de uma melhor literacia em Saúde. No entanto, aquilo a que tenho assistido, de toda essa cacofonia mediática também provocada por muitos agentes da área da saúde, também tem grandes malefícios, porque há muitas visões que não são suficientemente objetivas, que não são independentes... Acho que começa a haver já muita confusão nessas mensagens e acho que acabará por tudo voltar ao seu lugar.
16 - Para além de mediar comportamentos, temos também de saber mediar a comunicação.
Já ninguém suporta ver os telejornais cheios de coisas de pandemia, médicos a falar daqui e dali. Acho que isso é muito cansativo. Tem de ser mediado, tem de ser doseado para que não tenha um efeito contrário àquilo que se pretende.
17 - Quando é que acha que podemos voltar a ir a um supermercado sem ter de usar obrigatoriamente máscara?
Acho que quando, de facto, houver uma percentagem muito grande da população vacinada e quando estivermos claramente numa fase de calmia... Eu imagino que isso possa acontecer já em 2022, tenho essa esperança.
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