Era suposto ser um regresso retumbante. Depois de uma edição marcada pelos apertados protocolos de segurança devido à pandemia (com poucos presentes e muitos momentos pré-gravados), a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas esperava que a cerimónia dos Óscares regressasse ao Dolby Theatre, em Los Angeles, se não com a pompa de outrora, pelo menos com um magnetismo semelhante.
Contudo, depois de dadas todas as estatuetas, o que arrisca ficar na memória não são os prémios ou os discursos emotivos, já que apenas um momento tem dominado as atenções mediáticas — e sim, foi um dos vencedores, mas pelas piores razões. Galardoado pela sua interpretação em “King Richard”, Will Smith recebeu o primeiro Óscar de Melhor Ator da sua carreira, apenas meia-hora após esbofetear o comediante Chris Rock em direto por este ter feito uma piada sobre a sua mulher, Jada Pinkett-Smith.
Ao receber o prémio, Smith pediria desculpa à instituição e a todos os presentes — menos ao homem que agrediu — e diria que agiu como Richard Williams, personagem que encarnou, para proteger a sua família, mas o mal já estava feito. Com a bofetada, uma cerimónia com mote "Movie Lovers Unite" [“Cinéfilos unidos”] foi dominada pelo “único momento de que toda a gente está a falar, a única coisa de que alguém se vai lembrar”, como escreveu Daniel Fienberg no Hollywood Reporter. “O programa acabou aí. O que se seguiu foi uma hora de puro desconforto”, acrescentou.
Desde logo, uma série de questões foram lançadas. Terá sido tudo planeado? Há quem se consuma a dissecar frames para tentar provar o logro, apesar da polícia de Los Angeles ter sido chamada e ter sido Chris Rock a não querer apresentar queixa. E teria Smith escapado impune ao ato se não fosse o putativo vencedor de um dos principais troféus da noite?
Tablóides como o New York Post têm adiantado que o ator pode ser obrigado a devolver o Óscar, mas onde é que isso deixa figuras como Harvey Weinstein, produtor que venceu 81 estatuetas, ou Mel Gibson, que após ter sido colocado na lista de proscritos de Hollywood durante dez anos por casos de violência doméstica, racismo e antisemitismo, regressou triunfalmente com a vitória de Melhor Realizador em 2017 por “Hacksaw Ridge”?
Vários apressaram-se a chamar ao momento “o pior da história dos Óscares” — apenas para serem recordados de quando a ativista nativo-americana Sacheen Littlefeather foi apupada no palco em 1973 quando rejeitou o galardão de Melhor Ator em nome de Marlon Brando, ou de quando Roman Polanski recebeu in absentia o Óscar de Melhor Realizador em 2002 por “O Pianista”, apesar de permanecer um homem procurado pela justiça norte-americana por ter alegadamente drogado e abusado sexualmente de uma menina de 13 anos, em 1977.
Tais temas em debate ensombraram aquilo que era suposto ser celebrado — os filmes e os seus intervenientes. “Se a Jane Campion se tornou na terceira mulher de sempre a vencer a categoria de Melhor Realizador, mas o Will Smith esbofeteou Chris Rock, será que aconteceu mesmo?”, sintetizou Sian Cain no The Guardian. A este feito junte-se os de Ariana DeBose, primeira atriz negra e LGBT a vencer um troféu, e de Troy Kotsur, primeiro ator surdo a reclamar um Óscar, como aqueles ofuscados por um ato de agressão de meros segundos.
Audiências sim, mas a que custo?
Se a chapada de Smith não tivesse acontecido, teria sido esta uma boa noite para os Óscares? As opiniões dividem-se, sendo mais os não-crentes que os crentes. O acima citado Daniel Fienberg escreveu que a cerimónia “já estava a descarrilar antes” desse momento; já Joel Meares, pelo AV Club, lamentou que a agressão tenha estragado o que estava a ser “contra todas as expectativas”, uns Óscares “animados, frequentemente hilariantes e emocionais”.
A larga maioria, contudo, reuniu o consenso de que, mesmo que chocante e deplorável, a agressão de Will Smith teve o condão de resgatar a cerimónia da monotonia — e recordou que a televisão em direto tem a capacidade de produzir momentos únicos. “No interessa o quão desesperadamente a ABC [o canal que emite o programa] e a Academia quisessem que a cerimónia fosse uma máquina bem oleada, os Óscares deste ano provaram o poder da televisão em direto, para melhor e para o profundamente desconfortável pior”, escreveu Caroline Framke para a revista Variety.
Mas porquê a necessidade de criar essa “máquina bem-oleada”? Para contrariar a decadência dos Óscares. As audiências daquele que é considerado o supra sumo dos eventos de celebração cinematográfica têm vindo paulatinamente a decair desde o início dos anos 2000. A edição de 2021, em particular, representou um ponto particularmente baixo: apenas 10,4 milhões de pessoas assistiram ao programa nos EUA, menos 56% que os 23,6 milhões de espectadores de 2020.
O fenómeno não é exclusivo aos Óscares — Grammys, Emmys e Globos de Ouro têm sofrido decadência semelhante —, e as razões têm sido discutidas amiúde. A título de exemplo, Ross Douthat, cronista do The New York Times, elencou vários fatores ainda antes da cerimónia, desde o advento das redes sociais — que retirou glamour e distanciamento às estrelas de Hollywood, já que agora podemos vê-las a tomar o pequeno almoço no Instagram — até à extinção iminente da instituição do “Cinema” — não no sentido de que os filmes vão acabar, mas de que passaram a ser apenas mais um conteúdo a disputar a nossa atenção entre séries de televisão e vídeos online.
Douthat, de resto, recorda-nos no seu texto que o filme por excelência dos Óscares — para sensibilidades de uma cultura média-alta, sem ser demasiado artístico nem demasiado comercial — perdeu popularidade, mesmo tendo em conta a pandemia. “Os nomeados deste ano mostram o seu cunho de atores famosos, grandes realizadores e géneros clássicos de Hollywood. No entanto, apesar de tudo isto, quase ninguém os foi ver”, aponta, citando que dos 10 nomeados a Melhor Filme, apenas um conseguiu fazer mais de 100 milhões de dólares a nível doméstico, “Dune” — todos juntos fizeram aproximadamente um quarto do que “Spider-Man: No Way Home” conseguiu atingir na mesma métrica, com 800.6 milhões de dólares.
Perante as mudanças tectónicas dos hábitos de consumo provocadas pela pandemia e pelas plataformas de streaming, não há muito que os Óscares possam fazer. No entanto, continuando a ser um dos chamarizes para os encantos da indústria de Hollywood, a edição deste ano procurou combater o desinteresse reinante na cerimónia. Para tal, a Academia decidiu promover uma série de mudanças para tornar o programa mais dinâmico e mais curto — o objetivo era reduzi-lo para três horas, apesar de tal não ter acontecido. Estas alterações, contudo, começaram logo por gerar controvérsia.
Em causa está o facto de oito categorias terem sido remetidas para um pré-espetáculo antes da cerimónia oficial — todas elas prémios técnicos, como Melhor Som ou Melhor Edição —, sendo reduzidas curtos clipes de vídeo a emitir durante o programa. Não só a redução de tais prémios a pormenores de somenos importância foi vista como um insulto, — merecendo a oposição de muitos dos intervenientes da indústria, que assinaram uma carta aberta para que a Academia não tratasse os colegas como “cidadãos de segunda” —, como a sua implementação foi confusa para quem não seguisse o programa também nas redes sociais. Como apontou James Poniewozik para o New York Times, “os segmentos dos discursos de agradecimento foram introduzidos no espetáculo ao vivo de forma tão desajeitada que apenas podemos esperar que tenha sido uma forma de protesto da categoria de edição”.
O pior, contudo, foi o tipo de destaques que foram dados com o tempo disponível. Para celebrar o legado dos filmes James Bond, foram chamadas a palco três lendas dos desportos radicais — o surfista Kelly Slater, o skater Tony Hawk e o snowboarder Shaun White —, uma decisão algo incompreensível quando se podia ter feito o mesmo quando há quatro dos atores que interpretaram o famoso agente ainda vivos. Além disso, de forma a tentar aproximar os Óscares de um público mais novo, os organizadores criaram duas categorias cujo vencedor podia ser votado no Twitter: o #OscarsFanFavorite e o Oscars Cheer Moment. Apesar desta tentativa de democratizar a cerimónia, a reação foi de confusão, incompreensão e escárnio por parte do público.
Estes foram apenas alguns dos momentos mais criticados pelos vários órgãos especializados a cobrir a edição deste ano, sendo que todos eles seriam eclipsados não só pela agressão de Will Smith, como pela aparente normalidade com que foi encarada pela produção. “Foi uma cena sombria, sem quaisquer consequências aparentes para o que acabara de acontecer”, lamentou Dominic Patten no Deadline.
Para Caroline Framke, da Variety, o pecado capital foi esse mesmo. “Diz-nos tudo que nem sequer Will Smith a esbofetear Chris Rock na cara tenha conseguido impedir a cerimónia dos Óscares de teimosamente seguir pelo seu percurso predeterminado”, pelo menos até ao momento em que Smith foi receber o galardão e relembrar todos do que tinha feito.
A obsessão em criar um programa eficiente “cortou cantos” e “irritou as pessoas”, mas fez pior do que isso, escreve a jornalista. “Perante os destroços de uma noite prestigiada a perder o seu lustro ao vivo e a cores, há algo a dizer quanto à completa inabilidade da produção de prever o imprevisível. Numa corrida desesperada por audiências, tentou de tal forma ser glamorosa e suave que caiu de cara quando a noite podia ter sido salva”. Resta saber qual o futuro dos Óscares face ao que se passou. “A ABC pode ter tido o buzz que queria, mas a que custo?”, perguntou.
Comentários