As audições das duas primeiras testemunhas, arroladas pelo Ministério Público (MP) no julgamento em que o antigo presidente do BES é acusado de três crimes de abuso de confiança, em processo conexo e separado da Operação Marquês, começaram com um atraso de 30 minutos e logo de início Francisco Machado da Cruz mostrou-se reticente a testemunhar, referindo receio de poder vir a ser incriminado, uma vez que já foi acusado no processo do universo do Grupo Espírito Santo (GES).

“Fui acusado no processo do universo GES, para surpresa minha, em 36 crimes. Tudo o que disse no inquérito do universo GES foi a verdade e só a verdade. Sempre colaborei com a justiça, a comissão parlamentar de inquérito, a CMVM... Só o facto de conhecer Ricardo Salgado ou qualquer atividade do GES pode ser utilizado pelo MP para me incriminar de novo. Já me chegam 36 crimes, não preciso de nenhum novo”, afirmou.

Quando o procurador Vítor Pinto começou a inquirição com a pergunta se o ex-contabilista da Espírito Santo International (ESI) tinha sido administrador na ES Enterprises, Machado da Cruz disse que não ia responder, com o representante do MP a mostrar-se surpreendido pela recusa. O presidente do coletivo de juízes, Francisco Henriques, defendeu que a resposta a essa questão “não o pode incriminar de forma alguma”.

Sob aviso do juiz auxiliar Rui Coelho, que alertou para a necessidade de as perguntas serem feitas e a possibilidade de ser avaliada posteriormente “em sede própria” a legitimidade da recusa, Machado da Cruz, 62 anos, acedeu a prestar esclarecimentos, confirmando ter desempenhado funções na sociedade até 2014, mas sem precisar o início.

Sobre a sua ligação a Hélder Bataglia, o antigo contabilista da ESI assumiu ter conhecido o antigo líder da ESCOM entre 1993 e 1994. Explicou ainda que Bataglia o convidou para trabalhar na empresa AMDL (uma empresa participada da ESCOM), em Angola, entre 2000 e 2001, chegando ambos a viver juntos em Luanda durante “poucos meses”.

“Partilhámos casa, mas não estávamos muito tempo juntos. O Helder viajava constantemente”, disse.

Após esta experiência, Machado da Cruz revelou ter ido trabalhar para a Suíça para outra empresa do universo GES e disse que não voltou a ter “contactos próximos” com o antigo presidente da ESCOM, cujas principais atividades em Angola eram a mineração e o imobiliário.

Michel Canals, gestor de fortunas suíço e arguido no processo Monte Branco, que foi ouvido por videochamada e com recurso a tradução em italiano, confirmou que Ricardo Salgado era um dos clientes da sociedade gestora de património Akoya através da sociedade ‘offshore’ Savoices, mas que não era ele quem fazia pessoalmente a gestão dos fundos do ex-banqueiro.

Confrontado pelo MP com um documento enviado para a Akoya ao cuidado de Canals e a solicitar a transferência de 1,5 milhões de euros a favor da Savoices, assinado por Helder Bataglia, o gestor de fortunas suíço disse só ter visto esse documento antes da audição e vincou que não havia nenhuma assinatura ou carimbo em seu nome, indicando que a ordem de pagamento tinha sido realizada a partir de Lisboa e que não se lembrava da justificação dessa transferência.

“Não consigo ver a justificação no documento. Com certeza falou-se verbalmente desta justificação, mas não me lembro especificamente qual foi", declarou o gestor suíço, apesar de ter explicado que os clientes estavam obrigados a justificar.

Michel Canals confirmou ainda que havia colegas seus na Akoya a abrirem contas em Singapura e Hong Kong, mas garantiu não se recordar se as mesmas eram feitas em nome de Ricardo Salgado, referindo ainda não saber a natureza da relação entre o ex-banqueiro e o empresário José Guilherme, notando apenas o seu conhecimento pelos “jornais” de que seriam “amigos”.

Canals afirmou ainda desconhecer uma transferência da ES Enterprises para a Savoices no valor de quatro milhões de euros ou de investimentos desta sociedade na EDP.

O julgamento de Ricardo Salgado, que não esteve presente esta tarde no tribunal, prossegue na quinta-feira com a audição do inspetor Paulo Silva, que esteve ligado à investigação da Autoridade Tributária no processo Operação Marquês.