"Não faz sentido que o nosso Congresso do PS seja sobre o presente, mas sobre o futuro do nosso país", sustentou António Costa no passado dia 8 de maio, numa sessão de esclarecimento com militantes socialistas da FAUL (Federação da Área Urbana de Lisboa), poucos dias depois de José Sócrates ter anunciado a sua desfiliação deste partido.

Na mesma sessão, o secretário-geral do PS fez questão de acrescentar que o seu partido não deve "olhar para o drama de hoje, nem para a questão que se vai colocar amanhã, podendo antes concentrar-se no horizonte de médio e longo prazo".

O congresso do PS arranca hoje e prolonga-se até 27 de maio, na Batalha (Leiria), onde se vão discutir 24 moções setoriais sobre temas como a renacionalização dos CTT, a defesa do Serviço Nacional de Saúde ou a regulamentação da prostituição.

Desde que António Costa assumiu a liderança do PS, em novembro de 2014, esta é a segunda vez em que episódios que decorrem do processo judicial de José Sócrates rodeiam um congresso dos socialistas. Em novembro de 2014, duas semanas após José Sócrates ser sujeito a prisão preventiva por suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, o atual secretário-geral do PS, logo à entrada para o congresso, deixou um apelo no sentido de que os delegados socialistas separassem ao longo dos trabalhos as questões de justiça e de política - um pedido que foi cumprido.

O "caso Sócrates" regressou em força ao PS no mês passado, depois da divulgação pela SIC de parte dos interrogatórios judiciais a que foi submetido o antigo primeiro-ministro.

A eurodeputada socialista Ana Gomes defendeu então que o seu partido não podia "continuar a esconder a cabeça na carapaça da tartaruga" e que este Congresso, na Batalha, no distrito de Leiria, era a "oportunidade para escalpelizar como [o PS] se prestou a ser instrumento de corruptos e criminosos".

Dias depois, foi o próprio presidente do PS, Carlos César, a afirmar que, a confirmarem-se, as suspeitas em torno de José Sócrates e do antigo ministro Manuel Pinho, gerar-se-á "uma situação incompreensível e lamentável". Relativamente ao caso específico de José Sócrates completou: "A vergonha até é maior porque era primeiro-ministro".

Na mesma linha, o porta-voz dos socialistas, João Galamba, que entrou para a bancada do PS em 2009 por indicação de José Sócrates, considerou que "envergonha qualquer socialista" quando se vê um ex-primeiro-ministro e secretário-geral do PS acusado de corrupção e branqueamento de capitais". "Obviamente, envergonha qualquer socialista, sobretudo se as matérias de que é acusado vierem a confirmar-se", acrescentou.

Durante uma visita oficial ao Canadá, António Costa foi questionado pelos jornalistas se concordava com estas posições de Carlos César. "Se essas ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa democracia. Mas se não se vierem a confirmar é a demonstração que o nosso sistema de justiça funciona", respondeu, horas antes de José Sócrates anunciar a sua desfiliação do partido, alegando não aceitar "julgamentos antecipados por parte de camaradas" seus.

António Costa afirmou depois respeitar a "decisão pessoal de José Sócrates", mas manifestou-se "surpreendido, porque não há qualquer tipo de mudança da posição da direção do PS sobre aquilo que escrupulosamente tem dito desde o início: Separação entre aquilo que é da justiça e aquilo que é da política".

Dentro do PS, o "histórico" António Campos e o dirigente Daniel Adrião estiveram entre os poucos que condenaram publicamente a atuação de membros da direção como João Galamba e Carlos César, alegando, também, tal como José Sócrates, que os dois fizeram um julgamento antecipado sem respeitar a norma da presunção de inocência própria de um Estado de Direito.

O eurodeputado socialista Francisco Assis, em entrevista ao jornal "Público" a 22 de maio assumiu uma posição original: Recusou a criminalização das políticas dos governos de Sócrates, elogiou "a coerência" de António Costa perante este caso, mas deixou uma farpa dirigida a João Galamba. "Houve outras pessoas do PS que realmente mudaram de posição [em relação a Sócrates]. Não tenho nenhuma teoria explicativa para essa mudança", disse.

Quatro anos e meio de uma liderança que apostou em entendimentos à esquerda

António Costa terá na Batalha, distrito de Leiria, o seu terceiro Congresso como secretário-geral do PS, num percurso de quatro anos e meio em que apostou em entendimentos à esquerda, com críticas pontuais da ala direita.

Nas três vezes em que foi escolhido pelos militantes socialistas para o cargo de secretário-geral do PS, em eleições diretas (novembro de 2014, maio de 2016 e maio de 2018), António Costa conseguiu sempre resultados acima dos 95%, nas últimas duas vezes com a oposição de Daniel Adrião.

Essas amplas maiorias alcançadas em "diretas" confirmaram-se, depois, nos dois últimos congressos: Em dezembro 2014, fez um acordo de lista única à Comissão Nacional com a minoria "segurista", cedendo-lhe 30% dos lugares; em junho de 2016, já como primeiro-ministro, enfrentou uma lista encabeçada por Daniel Adrião, mas que registou pouco mais de 10% dos votos dos delegados.

Do ponto de vista interno, a questão mais relevante e controversa sempre residiu no posicionamento político que António Costa propôs desde o início para o PS.

Logo no primeiro Congresso Nacional do PS como líder, em dezembro de 2014, na Feira Internacional de Lisboa (FIL), sinalizou que contava com o Bloco de Esquerda (BE) e o PCP para uma solução governativa que saísse das eleições legislativas de outubro de 2015.

No discurso de encerramento, o secretário-geral socialista advertiu que não iria "ajudar" estes partidos à sua esquerda a manterem-se no "protesto", mas antes chamá-los para "a solução".

"Não contarão com o PS para vos ajudar a manterem-se na posição cómoda de ficarem só pelo protesto e não virem também trabalhar para a solução", afirmou, referindo-se a PCP e BE, tendo também recusado a ideia de um "arco da governabilidade" constituído pelo seu partido, PSD e CDS-PP.

Em simultâneo, o líder socialista recusou entendimentos políticos à direita, afastando uma reedição do "Bloco Central" PS/PSD de 1983/1985.

"Não é possível ser alternativa às atuais políticas [do Governo de Pedro Passos Coelho] com quem quer precisamente prosseguir as atuais políticas", disse, frisando, então, que essa recusa não era "um problema de nomes" dos protagonistas, mas "um problema de políticas".

"O pior que pode acontecer para uma democracia é quando se gera um enorme empastelamento, quando existe um pântano no qual ninguém se diferencia, em que tudo é farinha do mesmo saco, e em que não conseguimos distinguir o que é que uns propõem do que os outros propõem", argumentou, num discurso que tem mantido até ao presente.

Este tipo de alinhamento do PS com entendimentos preferenciais à esquerda foi contestado por vozes da chamada ala liberal do PS, tendo como principal crítico o eurodeputado socialista Francisco Assis.

No Congresso de 2014, Francisco Assis abandonou o conclave na noite do segundo dia em protesto por a mesa adiar sucessivamente a marcação da sua intervenção de fundo perante os delegados.

Em junho de 2016, já com o atual Governo, apoiado no parlamento por PCP, BE e PEV, em funções, Francisco Assis subiu à tribuna para manifestar dúvidas sobre a viabilidade desta solução inédita, designadamente em torno de matérias de fundo como a política europeia, orçamento e defesa nacional.

Há dois anos, Francisco Assis defendeu que o executivo está suportado numa aliança contranatura e vive numa liberdade muito condicionada, o que lhe valeu alguns apupos durante a sua intervenção.

O deputado socialista Sérgio Sousa Pinto, outro dos críticos da solução de Governo à esquerda, optou por não discursar nesse Congresso por considerar que tal não seria útil para o partido, aceitando, no entanto, integrar a Comissão Nacional do PS.

Em contraponto, Manuel Alegre e outros destacados socialistas, como Carlos César, Ana Catarina Mendes, Pedro Nuno Santos ou João Galamba, fizeram a defesa da atual solução de Governo e negaram qualquer mudança ideológica ou radicalismo no PS.

O momento mais unificador do Congresso de 2016 registou-se com a subida ao palco do antigo primeiro-ministro socialista e atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que não marcava presença numa reunião magna do PS desde 2000.

O secretário-geral do PS terminou o último congresso do seu partido, numa conjuntura externa em que Portugal estava sob a ameaça de sanções europeias, pedindo aos portugueses que fossem otimistas.

Os dois congressos sob liderança do atual secretário-geral do PS foram também marcados pelo caso judicial que envolve o antigo primeiro-ministro e líder socialista José Sócrates, que, recentemente, se desfiliou deste partido.

No Congresso de dezembro de 2014, António Costa pediu que o seu partido separasse as questões de justiça e de política, conseguiu que os delegados socialistas, ao longo de três dias de trabalhos, não levantassem o tema das circunstâncias da prisão preventiva de José Sócrates.

Já no Congresso de 2016, a única referência direta a José Sócrates partiu do dirigente Daniel Adrião, numa intervenção em que defendeu a ideia de que o PS "devia muito" ao seu antigo primeiro-ministro, que conseguiu em 2005 a única maioria absoluta até agora alcançada pelos socialistas em eleições legislativas.