O Governo aprovou, na quinta-feira em Conselho de Ministros, o decreto-lei que cria o Estatuto dos Profissionais da Cultura, depois da consulta pública que contou com dezenas de contributos.
“O que nós temos, sobretudo, são desconfianças e preocupações”, disse o dirigente sindical Rui Galveias, do Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, de Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE).
A questão dos prazos de garantia e a forma como se chega ao subsídio de cessação da atividade, “que não [se sabe] como é que se vai chamar, mas é uma espécie de subsídio de desemprego”, são, segundo Rui Galveias, alguns dos motivos de preocupações para o sindicato.
“Isto para nós é um problema, porque sendo importante que alguns trabalhadores do setor passem a ter proteção social, porque, de facto, são trabalhadores independentes, a maior parte dos trabalhadores que estão a recibos verdes no setor são falsos recibos verdes”, observou, acrescentando que a “grande preocupação” do sindicato consiste em saber “como é que medidas deste tipo ajudam a resolver esse tipo de problemas”.
“[Temos] um problema de baixos salários, temos um problema de irresponsabilização das entidades contratantes no setor que não vai ser resolvido legalizando a ilegalidade”, frisou.
Sobre o subsídio similar ao subsídio de desemprego, ao qual o trabalhador, para ter acesso, “tem de perfazer o prazo de garantia de seis meses de prestação de atividade”, Rui Galveias realçou desconhecer como será feita a quantificação do tempo de trabalho.
“Quer dizer, isto não pode ser a lógica do vou lá, pago seis meses de Segurança Social e tenho direito a um subsídio de 2,5 IAS [Indexante dos Apoios Sociais] durante seis meses. Não faz sentido”, sublinhou. Para Rui Galveias, “não é esta a lógica, nem o objetivo” do Estatuto dos Profissionais da Cultura.
Para o dirigente sindical, o estatuto “pode abrir caminho para coisas muito perigosas no universo do trabalho em Portugal, encaminhando muita gente que está numa situação de precariedade, achando que estão numa situação de empreendedorismo, como é o caso de alguns trabalhadores das ´Ubers`e por aí fora”.
Contactada pela agência Lusa sobre esta aprovação, Salomé Lamas, da direção da Associação de Artistas Visuais em Portugal (AAVP), disse que a entidade recebeu esta notícia “com enorme desagrado e frustração, porque o documento parece um chapéu que serve a todos, mas afinal não serve a ninguém”.
“No caso dos artistas visuais, foi sempre o lado mais lesado”, avaliou, defendendo a “criação de regimes de exceção para cada uma das áreas” envolvidas.
Ressalvando que “houve uma dedicação do Ministério da Cultura, que parecia ser séria, feita com tempo e com a participação e esforço de muitas estruturas a apresentar propostas, mas viram-se afastadas no final [do processo para a criação do Estatuto], que, afinal, vai agravar a informalidade e a precariedade”.
“Estamos, indignados, tristes e desiludidos”, expressou, acrescentando que há um sentimento de as associações que participaram no processo terem sido “defraudadas”.
O Estatuto dos Profissionais da Cultura, uma reivindicação do setor com pelo menos duas décadas, começou a ser desenhado em meados de 2020, quando o Governo anunciou a criação de um grupo de trabalho interministerial, “para análise, atualização e adaptação dos regimes legais dos contratos de trabalho dos profissionais de espetáculos e respetivo regime de segurança social”.
“Esta é uma daquelas situações em que tudo muda, mas tudo fica igual”, considerou a responsável da direção da AAVP.
Em comunicado, a Convergência pela Cultura considerou que a aprovação, por parte do Governo, “de um estatuto criado com base na adulteração é uma demonstração do desrespeito pelos contributos dos agentes culturais, que já manifestaram a sua indignação pelo facto deste diploma encontrar-se longe do modelo final”, acusando a ministra de “faltar à palavra relativamente à continuidade das reuniões para discussão dos principais pontos que se encontram por resolver”.
“Concluímos que o Governo não pretende criar mecanismos de inclusão dos trabalhadores que se encontram reféns da informalidade, não pretende a revogação da Lei 4/2008 que permanece como base de referência no diploma deste estatuto, não prevê a revisão dos trabalhadores independentes nem confere proteção social aos prestadores de serviços, como também não assume a necessidade de criação de mecanismos de inclusão para trazer todos os trabalhadores para o sistema contributivo. Um estatuto não pode substituir a necessidade de uma Lei de bases, conforme sempre reivindicámos”, acrescenta aquela estrutura.
Por seu turno, Margarida Sardinha, presidente da direção da SOS Arte PT – Associação Portuguesa de Apoio aos Artistas Visuais em Tempos de Crise – que reúne profissionais liberais, como pintores, escultores e outros artistas plásticos, bem como artistas conceptuais e multidisciplinares – disse estar também indignada com este desfecho.
“Estamos boquiabertos”, resumiu, contactada também pela Lusa, sobre a aprovação do decreto-lei esta quinta-feira, “depois de ter havido a promessa de uma reunião em setembro, para continuar a apresentar sugestões, mas não foi marcada, e nem sequer houve qualquer justificação” da parte da tutela.
Margarida Sardinha considera que os artistas visuais saem prejudicados neste Estatuto “porque trabalham muitas vezes sozinhos e assumem um risco muito mais elevado”, e prevê que “muitos deles vão continuar a usar o regime antigo”.
“Apresentámos uma proposta de regulamentação da relação entre os agentes culturais e os artistas visuais, mas não foi contemplada” no documento, lembrou, entre as sugestões apresentadas para incluir na proposta, nesta área.
Mesmo assim, a presidente da direção da SOS ARTE PT diz que a associação “celebra com positividade a criação de um Estatuto dos Profissionais da Cultura, mas como um início de bons ventos para os artistas visuais em Portugal que tem de ser trabalhado”.
Uma primeira versão do documento foi aprovada em Conselho de Ministros, em 22 de abril deste ano, seguindo-se depois um período de consulta pública, que terminou em junho, tendo o Ministério da Cultura anunciado na altura que recebeu 72 contributos.
Em 14 de julho, numa audição parlamentar, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, disse que em setembro seriam retomadas as reuniões com as entidades que estiveram envolvidas no processo de construção do estatuto. Na altura, a ministra reiterou a “disponibilidade do Governo” para o diálogo.
No entanto, segundo as estruturas representativas dos trabalhadores do setor, tal não aconteceu.
Num comunicado conjunto, divulgado em 08 de outubro, 12 estruturas representativas dos trabalhadores da Cultura recordaram estarem há três meses à espera de uma resposta da tutela ao pedido de diálogo “sobre vários aspetos importantes e problemáticos da proposta” do estatuto.
Depois de “um longo e exigente” processo de conversações e três meses após a consulta pública, as 12 estruturas consideravam “inaceitável” que o Governo defina “a versão final da legislação sem [se] reunir novamente com as organizações representativas”.
Até porque “o Governo interrompeu abruptamente o diálogo e aprovou em Conselho de Ministros [em abril], precipitadamente, a versão inicial do Estatuto”, que “tem vários erros e limitações”.
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