Na semana passada dois acontecimentos trouxeram o TTIP - sigla inglesa do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento - de novo para a ribalta. A visita do Presidente Obama à Europa, declaradamente para acelerar as negociações, e o vazamento pelo Greenpeace das cláusulas que estão a ser secretamente negociadas. O debate tem sido contaminado com posturas ideológicas que, embora esclarecendo muitos pormenores, também obscurecem a compreensão das suas características. É uma boa altura para esclarecer o que está em jogo.
As negociações entre entre a Comissão Europeia e o Governo dos Estados Unidos começaram em Julho de 2013 e estão na terceira ronda. O objectivo é um tratado de livre-comércio entre os EUA e a UE, conhecido na Europa como TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), nos Estados Unidos como TAFTA (Transatlantic Free-Trade Agreement) e em Portugal como APT (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) ou simplesmente Tratado Transatlântico.
As projecções indicam que o acordo vá acrescentar à economia da União Europeia cerca de 120 mil milhões de euros, à dos EUA cerca de 90 mil milhões e ao resto do mundo mais 100 mil milhões. Ou seja, o maior tratado comercial alguma vez feito, com um valor de metade do PIB mundial e um terço do fluxo de negócios à escala planetária. Afecta todos os sectores da economia, desde a agricultura aos serviços (com a estranha exclusão, por exigência francesa, da indústria musical e cinematográfica).
O objectivo é remover todos e quaisquer obstáculos às transacções, físicas e comerciais, entre a Europa e os Estados Unidos, e proteger os investimentos à escala internacional.
Em termos gerais, o TTIP tem sido criticado pelas esquerdas, pelos ambientalistas e pelos movimentos anti-globalização. Num ponto há que lhes dar razão prévia: o tratado tem sido negociado em segredo, o que não só é pouco democrático como suspeito. Afinal de contas, se se trata de um grande benefício para todos, porquê ocultar as diligências das partes? O argumento das entidades envolvidas é que, não estando todos os pormenores decididos, a sua publicação só iria levantar alarmes e falsas questões.
Mas apesar do secretismo, alguns pormenores têm chegado ao público, provocando reacções bastante violentas na Alemanha e em França, países onde a opinião pública segue as peripécias com mais interesse. O vazamento dos termos do tratado, obtido pela Greenpeace esta semana, revela aspectos de facto preocupantes, mesmo excluindo as opiniões politicas de quem analisa. Contudo, os defensores do TTIP já vieram afirmar que o leak da Greenpeace é falso. Segundo esses opinadores, a oposição ao tratado é meramente ideológica e vem da parte da extrema-esquerda proteccionista, e dos grupos antiglobalização e "altermundialistas" que são sempre contra
o comércio internacional.
Poderá ser. Mas o facto é que, para além do já mencionado secretismo, que leva naturalmente aos piores receios, sabem-se pormenores do tratado que levantam sérias dúvidas quanto às suas vantagens. Para começar, os sistemas de saúde e as condições de trabalho ficam ameaçados, assim como a regulação financeira e a protecção ambiental. Uma alínea perturbadora permitiria às empresas multinacionais processar os governos em tribunais especiais para eliminar restrições ao investimento. Outra alínea refere-se à liberalização das restrições aos produtos transgénicos e à imposição de patentes nos vegetais geneticamente modificados, abrindo caminho para o monopólio das sementes agrícolas por parte de grandes empresas como a Monsanto, a Syngenta ou a Bayer.
Em termos gerais, a UE tem normas mais restritivas do que os EUA quanto ao processamento de alimentos e inclusão de químicos e pesticidas, ou mesmo segurança dos veículos. Tudo isso seria eliminado.
O tratado pretende impor medidas restritivas na Internet, de modo a proteger as empresas de críticas, e liberaliza a utilização dos dados pessoais para efeitos comerciais. Esses dados podem ser adquiridos por bancos, seguradoras e outras empresas de modo a organizarem as suas carteiras de clientes, excluindo aqueles que eventualmente possam não interessar.
Quanto aos famigerados transgénicos, seriam abolidas as referências nos rótulos. É o caso, por exemplo, da "ractopamina", uma droga usada para acelerar o crescimento de animais. Nos EUA, 80% dos porcos e 30% das vacas são criados assim, e o documento visa o "reconhecimento mútuo" bem como a intenção expressa de " não criar barreiras injustificadas" ao comércio deste químico e dos animais assim criados. Advoga ainda a remoção das verificações e inspecções sobre a comida importada, pretendendo confiar apenas na palavra dos exportadores.
Passa a ser permitida também a extracção de petróleo pelo método chamado Fracking, um processo de injecção de fluido para dentro do solo a uma elevada pressão, a fim de fracturar a rocha de xisto para libertar o gás natural do seu interior. O Algarve é uma das áreas em consideração.
Ao nível empresarial, seria permitida e até incentivada a privatização de todos os sectores, inclusive a água. A liberalização abrange não apenas as empresas, mas também concursos, aquisição de bens e serviços por parte do estado e das entidades públicas, sejam centrais regionais ou locais. Assim, as multinacionais vão poder aceder livremente a todas as actividades até agora desempenhadas e/ou da responsabilidade do sector público.
Um aspecto complicado da desregulação financeira envolve uma figura jurídica chamada "Investor to State Dispute Settlement". Concede a um investidor estrangeiro o direito de iniciar o processo de resolução de litígios contra um governo estrangeiro (o "Estado anfitrião"), sempre que a legislação ameace os seus lucros presentes ou futuros, com base no conceito de expropriação directa ou indirecta. O litígio corre em tribunais especiais de que não existe possibilidade de apelo e, em quase todos os casos, termina com elevadas indemnizações pagas pelos estados às grandes companhias.
Da parte dos Estados Unidos há grande urgência em fechar este acordo, devido à proximidade de eleições, no final do ano. E os governos europeus, especialmente o alemão, que se considera altamente competitivo a nível internacional, também não vê razões para adiar por muito mais tempo.
Resta às opiniões públicas dos países informarem-se de forma a fazerem parte de uma discussão que tem amplas repercusssões na vida de todos. TTIP pode ser uma sigla pouco interessante nos media instantâneos, mas, como se pode ver pelos temas que aborda, é bem mais decisiva que muitas das discussões efémeras.
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