No último ano morreram em Lisboa 134 pessoas cujos corpos não foram nunca reclamados. Em pensões, na rua, em hospitais, acabaram no Instituto Nacional de Medicina Legal, às vezes durante meses. Em muitos casos, nome e idade são desconhecidos e a data do óbito não é certa.

A contagem de vítimas corresponde ao período de 15 de Outubro de 2023 e 15 de Outubro de 2024, Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, data em que é celebrada uma missa e são lembrados todos aqueles que chegaram ao fim da vida sem ninguém, família ou amigos. De então para cá, já morreram mais 26 pessoas nestas circunstâncias.

"Há tempos telefonou para cá o proprietário de um andar, tinha um inquilino que morreu e queria saber o que fazer a uma mala com roupa dessa pessoa. A primeira coisa que perguntámos foi se o senhor tinha família. Respondeu que tinha uma filha, mas que lhe tinha ligado e ela não quis saber, "ele que se governasse", terá dito, conta Mário Pinto Coelho, provedor da Irmandade de São Roque.

Os casos sucedem-se. "É um mundo de cão", desabafa Mário Pinto Coelho. "Isto é resultado do que se vive nos nossos dias, o problema da habitação, a falta de dinheiro até para a alimentação - em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão. Tudo isto é motivo de discussões e conflitos familiares, que resulta nisto. E diz-se que só na quinta geração é que a pessoa consegue sair da pobreza".

Em Lisboa há pelo menos 594 pessoas a dormir na rua, mas os sem-abrigo rondam os 3.378, segundo Carlos Moedas, presidente da câmara, que anunciou um plano municipal que prevê uma despesa de 70 milhões de euros em sete anos, entre 2024 e 2030, e a duplicação de 1.000 para 2.000 das vagas de acolhimento. Não chega, mas o problema está longe de se limitar aos sem-abrigo, como ilustram as histórias relatadas por Mário Pinto Coelho.

Quem é, afinal, a Irmandade de São Roque? César das Neves, Bagão Félix ou Souto Moura estão lá

A Irmandade de São Roque está hoje ligada à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, mas não foi sempre assim. A Irmandade nasce em 1506, oito anos depois da Misericórdia, num tempo em que as epidemias - os Covid de então - alastravam pela Europa. Conta-se que a peste chegou à capital e matou meia cidade depois de um barco italiano contaminado ter atracado no rio.

D. Manuel I viu-se a braços com uma situação catastrófica e milhares e milhares de pessoas estão hoje sepultadas no Largo Trindade Coelho, conhecido como largo da Misericórdia. "Se escavar um buraco, encontra logo ossadas", avança o provedor, que recorda o tempo em que se pensou em fazer um parque de estacionamento subterrâneo. "Era só ossos".

O rei D. Manuel tentou de tudo para travar a mortandade. Derrotado e sem saber mais o que fazer, decidiu mandar vir de Veneza, onde ainda hoje está o túmulo, umas relíquias de São Roque, que viveu no século XIII e foi reconhecido como o santo protector contra as pestes - nasceu em Montpellier, no sul de França, e aos 18 anos vendeu os seus bens e distribuiu pelos pobres e foi fazer uma viagem para Roma. No caminho foi curando os doentes da peste.

Vieram as relíquias e o que é certo é que a peste estancou. Para as guardar, um grupo de homens constrói no local onde está hoje a Igreja de São Roque uma ermida com a ajuda dos carpinteiros de machado, que faziam as naus. E é desta forma que a Irmandade fica ligada à morte e aos funerais.

Pormenores históricos à parte, o culto a São Roque divulgou-se por todo o mundo e todos os anos há um convénio das irmandades de São Roque: França (15 de Agosto), Espanha, Itália, Alemanha, Bélgica, Canadá, Estados Unidos, Brasil, Colômbia. Em Portugal um levantamento feito através das câmaras municipais e bibliotecas permitiu localizar 112 locais em que São Roque é venerado e muitas terras têm uma rua com o seu nome. Em Lisboa, e porque Agosto é mês de férias, o dia de São Roque é celebrado no primeiro domingo de Outubro.

Pais de bebés e filhos de idosos dão moradas falsas nos hospitais para não terem de pagar funerais

Podem morrer sozinhos, mas os funerais são realizados na companhia de voluntários da Irmandade de São Roque, que procura que todas estas pessoas tenham um enterro digno e quer garantir que ninguém é levado sozinho até à sepultura.

Os corpos podem estar sem vida há semanas, guardados nas arcas frigorificas do Instituto Nacional de Medicina Legal durante meses sem que ninguém lhes sinta a falta, mas, uma vez concluído o processo administrativo, são tratados como família, como irmãos.

Os funerais dos que morrem sozinhos só começaram a ser feitos de forma organizada em 2004. A irmandade e os voluntários fazem este acompanhamento com abnegação, nunca viram aquela pessoa, muitas vezes não sabem o seu nome nem tão pouco a data do óbito. Enterrar os mortos é uma das obras de misericórdia contidas nos evangelhos.

"Em 2003/04 a Misericórdia tinha - e ainda tem - um serviço de apoio aos doentes de HIV/Sida. Na altura não havia os remédios que há hoje e morriam muitas pessoas", recorda Mário Pinto Coelho. "A directora era a enfermeira Ana Campos Reis, que, com mais um ou dois funcionários, acabava muitas vezes por acompanhar os doentes que morriam, geralmente pessoas sem família ou que a família e amigos tinham renegado".

E assim surgiu a ideia: porque não fazer isto em relação às outras pessoas? A partir de Maio de 2004, a Irmandade de São Roque assumiu que todas as pessoas que morrem na cidade de Lisboa, "na rua, em hospitais, prisões, pensões ou sem-abrigo, sejam nacionais ou estrangeiros", têm direito a um enterro digno, logo que o processo administrativo esteja concluído e o corpo seja libertado.

Quando morre um asiático ou um africano ou uma pessoa de leste, por exemplo, há trâmites a cumprir, desde logo averiguar o óbito, mas também contactar as respectivas embaixadas, saber se a família quer recuperar o corpo, esperar respostas. Às vezes, meses de espera. "Há bastantes estrangeiros, muitos africanos. As famílias gostariam de levar o corpo para a sua terra, mas é caro", explica o provedor.

Entre os mortos também há crianças, normalmente recém-nascidos. Muitos bebés que não chegam sequer a ter nome, às vezes nem se sabe o sexo. "Por vezes, quando a criança nasce morta, os pais dão uma morada falsa no hospital para não terem de pagar o funeral. Às vezes vemos nos enterros uma senhora sozinha ou um casal jovem à distância e adivinhamos o resto, calculamos que sejam mães de nados-mortos, por exemplo. Também há filhos de idosos a dar moradas falsas nos hospitais", afirma Mário Pinto Coelho.

Voluntários, precisam-se

Foi o padre Vítor Melícias que, em 1990, quando ficou provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (criada pela Irmandade da Misericórdia), quis alterar os estatutos da instituição. Acontece que, de acordo com o direito canónico, estas instituições só podem ser extintas por decreto do bispo da diocese ou 100 anos depois da morte do último irmão de uma irmandade.

A Irmandade da Misericórdia estava adormecida desde que os seus dirigentes fugiram para o Brasil, mas não foi extinta. Na dificuldade de saber se ainda existiam membros vivos, fez-se um protocolo entre a Irmandade e a Santa Casa e a irmandade passou a chamar-se Irmandade da Misericórdia e de São Roque, com alteração dos estatutos em 2008. O último capítulo dita que a Irmandade de São Roque é o garante do espírito cristão com que a rainha D. Leonor criou  em 1498 a Irmandade da Misericórdia, valores que têm de ser mantidos, agora na dependência do Estado. E a irmandade passou a fazer parte do conselho institucional da Santa Casa.

"Temos aí a possibilidade de ter algum controlo sobre a situação", diz o provedor da Irmandade de São Roque. A irmandade é hoje responsável pelo culto católico em todas as igrejas a capelas pertencentes à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a começar por São Roque. A irmandade tem ainda a seu cargo parte religiosa e espiritual de dois hospitais e cerca de 20 lares.

Para isso conta com um grupo de cerca de 40 voluntários, mas precisa de muitos mais. É que, ao contrário da maioria do voluntariado, este é feito durante a semana e de dia, no horário normal de trabalho. "Por exemplo, não há funerais aos sábados e domingos", lembra Mário Pinto Coelho.

Por este motivo, os voluntário são normalmente reformados, que "hoje têm quase sempre duas profissões que nos estragam os planos: a de avós - ficam com os netos até os pais chegarem do trabalho -, ou a de filhos - têm pais muito velhotes, às vezes doentes, a precisar de atenção", ironiza o provedor. Ainda assim, tem havido sempre quem vá acompanhar o enterro dos sozinhos.

De três em três anos é lançado um concurso público para os serviços funerários. Depois de contactada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, a funerária combina os pormenores do enterro com a Irmandade de São Roque. A função dos voluntário é levantar a coroa de flores e acompanhar as exéquias. "Pretendemos com estes funerais que acompanhamos que as pessoas tenham na morte a dignidade que não tiveram em vida. É um funeral igual ao que seria o de um familiar nosso, não há irmãos e sangue a acompanhar, mas há os irmãos em Cristo", remata Mário Pinto Coelho.

Além dos funerais dos que morrem sozinhos e do acompanhamento religioso e espiritual de cerca de 40 equipamentos sociais com cerca de dois mil utentes (lares, centros de dia e cuidados continuados), a Irmandade de São Roque é ainda responsável pelo Auto de Natal, que envolve crianças, jovens e idosos, conduzidos por uma equipa de profissionais no ensino de dança, canto e representação. Os ensaios começam em Setembro e a primeira apresentação foi a semana passada, no Largo da Trindade, em Lisboa, e contou com mais de 500 participações, tudo prata da casa.