Mal foi conhecido o conteúdo do guião da cerimónia, o mal-estar no lado ucraniano começou a fazer-se sentir, com expoentes no arcebispo de Kiev e no embaixador da Ucrânia junto da Santa Sé. De nada serviu saber-se que as duas mulheres em causa trabalham na mesma instituição de solidariedade social e, além do mais, são amigas.

O guião da Via-Sacra, conhecido há alguns dias, revela que, para as 14 estações, foram escolhidas famílias em diferentes situações e tendo vivido distintas experiências, como forma de evocar a encíclica Amoris Laetitia, no seu quinto aniversário. Na penúltima estação, correspondente à morte de Jesus, o Vaticano quis colocar simbolicamente a convivência e amizade entre as partes em guerra precisamente no momento em que se comemora o ponto mais alto desta “Semana Maior”, se se excluir a Ressurreição.

Está previsto que, nesse momento, as duas mulheres farão uma oração em que aludem “a mortes por todo o lado”, “à vida que parece perder valor”, às rotinas de repente interrompidas, às lágrimas que já se esgotaram, interrogando diretamente Deus: “Onde estás, Senhor? Onde te escondeste? Queremos a nossa vida de volta. Porquê tudo isto? Que culpa temos? Porque nos abandonaste? Porque separaste deste modo as nossas famílias?” E pedem, a terminar: “No silêncio da morte e da divisão fala e ensina-nos a fazer a paz, a sermos irmãos e irmãs, a reconstruir o que as bombas querem aniquilar”.

O figurino da 13.ª estação foi objeto de destaque no Vatican News, nesta segunda-feira, 11, traduzido em várias línguas. O burburinho levantou-se e espalhou-se, lançando preocupações no Vaticano. A prova foi que o padre Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica e próximo do Papa, se desdobrou em declarações aos media e num artigo em Il Manifesto, em que procura desativar a contestação. A ideia principal é esta: “Entendamo-nos sobre uma coisa precisa: Francisco é um pastor, não um político”. E, nesta quarta-feira, 12, citava um tweet do Papa que faz notar que “o Senhor (…) não nos divide em bons e maus, em amigos e inimigos. Para Ele somos todos filhos amados”. “É terrível e escandaloso, mas é o evangelho de Cristo”, sublinhava a este propósito, Spadaro.

Ucranianos recordam episódio de Abel e Caim

Não é por esse diapasão que afina o arcebispo Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana, que diz ter recebido inúmeros apelos dos fiéis da Igreja e da sociedade civil, no país e no estrangeiro, para comentar a Via-Sacra papal.

O comentário de Shevchuk foi divulgado pelo departamento de comunicação da Igreja, nestes termos:

“Considero esta ideia inoportuna e ambígua, pois não leva em conta o contexto da agressão militar russa contra a Ucrânia. Para os greco-católicos da Ucrânia, os textos e os gestos da 13.ª estação desta Via-Sacra são incompreensíveis e até ofensivos, sobretudo [no momento em que se está] à espera do segundo ataque, ainda mais sangrento, das tropas russas contra as nossas cidades e aldeias. Sei também que os nossos irmãos católicos de rito latino compartilham estes pensamentos e preocupações.”

Mais elaborado é um texto de teor analítico que surgiu, nesta quarta-feira, na página da Universidade Católica Ucraniana, assinado pelo seu vice-reitor, Myroslav Marynovych, intitulado “A cruz de Abel e a cruz de Caim são cruzes diferentes”.

O artigo começa por sublinhar que o que se anuncia para a Via-Sacra exprime “uma incapacidade de ver as circunstâncias desta guerra a partir de dentro, e não apenas de fora” e que foi a “tentativa de reconciliar imediatamente os dois povos que indignou muitos ucranianos”.

Recorrendo ao episódio de Abel e Caim, do livro do Génesis, o autor entende que o Papa, nesse caso, evita nomear Putin e evita dizer, como Deus disse a Caim: “Aqui está a voz do sangue do teu irmão que clama da terra”. “Sem nomear o criminoso pelo nome, o Papa dá a impressão de que procura separar o criminoso do castigo merecido”.

Isto porque, segundo Myroslav Marynovych, “a cruz de Abel (a vítima inocente) e a cruz de Caim (o arrependimento do agressor) são cruzes diferentes”. E acrescenta: “Elas não podem ser combinadas, porque todo aquele que quer seguir Jesus deve tomar a sua própria cruz (cf. Mt 16:24). Os ucranianos já carregam a sua cruz; os russos têm ainda de carregar a sua nos seus ombros”.

Ao contrário de “comentadores do Vaticano” que estão certos de que “bons e maus, agressores e vítimas são aceites sob a cruz de Jesus”, “as nossas cruzes são diferentes: para uns é a cruz do sacrifício, para outros é a cruz penitencial do pecador”, defende o responsável da Universidade Católica Ucraniana.

E recorre a declarações que atribui ao núncio apostólico no seu país, o arcebispo Visvaldas Kulbokas, que terá afirmado: “É claro que sabemos que a reconciliação ocorre quando o agressor admite a sua culpa e pede desculpa.”