Por: António Pereira Neves e Luísa Meireles da agência Lusa
“Não sinto necessidade de dar [o meu contributo] enquanto político, primeiro porque não estou preparado para isso, acho que daria um péssimo político e também acho que devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de atuação completamente diferentes”, afirmou o vice-almirante Gouveia e Melo à Lusa, numa entrevista de balanço sobre o processo de vacinação.
Além do mais, disse, não se sente “inclinado para isso”.
“Já diversas vezes me perguntaram e eu tenho a certeza absoluta que há dentro do quadro democrático e da sociedade civil pessoas muito mais capazes para desempenhar esse papel”, sublinhou.
Para o vice-almirante, que exerce a coordenação daquele processo desde fevereiro, os militares são mais vocacionados para a ação e são menos negociadores.
“A política é uma arte de negociação permanente, nós [militares] somos menos negociadores, na nossa maneira de estar a rapidez da ação não exige de nós grandes capacidades de negociação, exige grandes capacidades de decisão e de decisão sob stresse”.
Para Gouveia e Melo, essa é uma das razões pela qual daria “um péssimo político”: “Falta-nos essa capacidade de negociar de forma muito aberta com todos os setores da sociedade e todos os interesses da sociedade e isso é uma coisa que os militares não estão habituados a fazer”.
“Temos preparações diferentes, são maneiras de estar diferentes e não devemos misturar isso. Se no passado houve essas misturas, ou houve necessidade dessas misturas, isso é o passado”, sublinhou.
E destacou: “Acho que não há necessidade de nenhum militar vir para a política, nós temos uma classe política muito desenvolvida e estruturada, a democracia está estruturada e terá os seus caminhos e encontrará sempre as suas soluções”.
Reconhecendo que ao longo destes últimos meses foi obrigado a negociar muitas vezes, “porque teve de se adaptar” — diz -, Gouveia e Melo sublinha, no entanto, que “são militares” as características que ajudaram neste processo.
“São características de autoridade para ter planos executados em tempo, para conseguir objetivos mesuráveis em tempo, para conseguir um ritmo elevado e rápido. Isso obriga alguma autoridade, a impor coisas muitas vezes”, afirmou.
Para o vice-almirante, a emergência da pandemia facilitou esse tipo de decisões, mas — ressalvou — “num processo diferente, no processo democrático, esse autoritarismo era imediatamente negativo e teria consequências negativas”.
E resumiu: “Portanto, eu acho que os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militar e os políticos fazem o que sabem fazer, que é ser políticos (…) nós vivemos numa democracia estável, não devemos confundir as coisas”.
Segundo Gouveia e Melo, poder-se-ia equacionar a situação ao contrário e por um civil a tomar conta de uma campanha militar.
“Eu acharia que eventualmente era capaz de não ser a melhor opção e vice-versa, a forma como nós somos educados tem importância”.
Manifestantes contra vacinas precisam de "lição de democracia"
“Todos os debates e conversas são interessantes e importantes. Quando nós dizemos que as vacinas salvam milhares de pessoas e as pessoas dizem que não salvam, não há aqui ponto de encontro para se discutir. Nós não conseguimos encontrar uma margem de discussão quando não concordamos com o facto básico que gera a discussão”, diz o vice-almirante Gouveia e Melo em entrevista à agência Lusa.
Quando visitava um centro em Odivelas no dia 14 de agosto onde se concentravam jovens adolescentes, um grupo de manifestantes antivacinação chamou-lhe “assassino”, ao mesmo tempo que se declarava contra a inoculação de jovens, argumentando que “crianças não são cobaias”.
“As pessoas tentaram barrar-me o caminho e gritavam aos meus ouvidos. Não houve nenhuma tentativa de agressão, na realidade. Aquilo não é democracia. Democracia é discutirmos argumentos, mas não temos que os impor a ninguém”, relata.
“Houve miúdos que foram tomar as vacinas naquele momento e, quando iam a passar, os manifestantes diziam ‘Lá vai mais um morto!’. Isso é uma pressão, uma coação psicológica. Essas pessoas têm que ter uma lição de democracia”, defende.
Gouveia e Melo frisa que “ninguém é obrigado a ser vacinado”.
“Mas quem quer ser vacinado deve poder passar pela porta tranquilamente e deve poder sair pela mesma porta tranquilamente depois de ser vacinado. Não tem que ser molestado, amedrontado ou perseguido psicologicamente”, reforça.
O vice-almirante refere que estar sob proteção do Corpo de Segurança Pessoal não interfere com o seu dia-a-dia ou com o seu itinerário pela infraestrutura da vacinação e indica que “não há receio de uma agressão física” por parte de ativistas que não concordam com o processo ou com as medidas de restrição impostas por causa da pandemia.
O que foi ponderado foi a possibilidade de “um tipo de provocação qualquer que, em termos de imagem, poderia ser negativa para a imagem do próprio processo” de vacinação.
“Não seria bom, por exemplo, para as Forças Armadas, verem um oficial general ser agredido na rua. E seria pior se um oficial general ou um militar reagisse à agressão”, ilustra.
Gouveia e Melo assume que já se deparou com “pessoas muito irracionais” e que, “por mais calmo e ponderado que se possa ser, num momento de agressão, uma pessoa pode perder toda a ponderação e é melhor que isso não aconteça”.
Afirma-se “supertranquilo” e assegura não ter sido sua a iniciativa de pedir proteção policial.
“Foi uma avaliação de ameaça feita pelos nossos serviços, que acharam que eu devia ter proteção porque a excitação dessas pessoas e grupos nas redes sociais passou para lá do limite do que seria a retórica normal. Mas nunca me senti ameaçado”, declara.
O trabalho dos agentes que o acompanham passa por saberem se, numa visita a qualquer espaço, “há alguém à porta à espera, coisas desse género, mas mais do que isso, não”.
“Julgo que essas pessoas vivem numa bolha, que se isolam de tudo o que está à sua volta que não confirme a realidade delas. Depois é muito difícil falar com essas pessoas, não é por falta de vontade nossa. Essas pessoas têm uma atitude quase irracional e muitas vezes irascível quando tentamos falar sobre factos”, lamenta.
Indicando que a disseminação das vacinas pela população coincidiu com uma redução da incidência das infeções pelo coronavírus SARS-CoV-2, admite que “as pessoas podem crer em tudo, mesmo em coisas inacreditáveis”.
“O mundo inteiro já vacinou 200 ou 300 milhões de pessoas. Quantas morreram em resultado da vacinação? Quantas morreram em resultado do vírus?...Se não chegarmos a um facto concreto para podermos discutir e comparar opções, não há discussão possível”, considera.
“Vou despir este camuflado quando sentir que ganhámos a guerra”
“Vou despir este camuflado quando sentir que de alguma forma ganhámos a guerra, ou pelo menos não a conseguimos fazer melhor. Em princípio será quando se atingir os 85% das segundas doses”, disse o coordenador da "task-force".
Esse marco deverá ser alcançado por estes dias, segundo disse, mas, até lá, não quer dar “sinal de descanso”, sublinhou.
“Enquanto não tivermos todos com a segunda dose - todos os 84% ou 85% da população - há um trabalho a fazer, que é retirar espaço de manobra ao vírus”, acrescentou, referindo que essa tarefa compete ao Estado – que tem de dar as condições para que tal aconteça – e aos portugueses, acorrendo ao processo de vacinação.
Gouveia e Melo considerou, no entanto, que não faz sentido “sobrevacinar” populações já vacinadas, deixando outras à mercê do vírus, nomeadamente noutras zonas do globo.
“Isso não me parece ético e não parece uma boa estratégia”, destacou.
“Há um princípio ético e moral, nós não devemos proteger-nos em detrimento de outras pessoas, que precisam também de proteção”, esclareceu, justificando que “devemos ser solidários, a solidariedade não é só com o irmão, ou com a mãe ou com a família, é dentro do Estado e, depois do Estado, para outros estados e na comunidade internacional”.
Por outro lado, o vice-almirante assinalou o “aspeto prático”: “Não é uma boa estratégia deixar zonas muito desprotegidas, onde o vírus se vai mutar naturalmente (…) e não é combatido”.
“Se [o vírus] se mutar mais rapidamente, mais tarde ou mais cedo, face à globalização, viremos a sofrer de uma reinfeção de uma estirpe já mutada muito mais resistente é muito mais difícil de combater”, afirmou.
Do ponto de vista pessoal, terminada a tarefa da vacinação, o vice-almirante disse tencionar tirar “três dias para descansar depois disto, só para desligar o ritmo” e regressar às funções que desempenhava.
Anteriormente, Gouveia e Melo era adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado-Maior General das Forças Armadas, cargo pelo qual recebeu uma medalha do Presidente da República, a 19 de agosto passado.
“Tratou-se de um reconhecimento, ao fim e ao cabo, da função militar”, disse.
“A medalha que eu recebi, em termos de ‘timing’, pode ter parecido que era uma medalha que tinha a ver com o processo de vacinação, mas o que me foi explicado (…) é que era um processo que tinha a ver com as funções que eu desempenhei nas Forças Armadas”, contou o vice-almirante.
Questionado se mereceria uma outra pelo processo de vacinação – “uma medalha civil”, como se lhe referiu – Gouveia e Melo respondeu que não precisa “de mais medalhas nenhumas”.
“Já não preciso de nada, eu vou na rua e as pessoas agradecem, a generalidade das pessoas tem uma atitude muito generosa para comigo e ao fim e ao cabo eu também represento um grupo de militares e de enfermeiros (…) essa medalha é para todos nós”, afirmou.
Sobre o papel das Forças Armadas neste processo, o vice-almirante considerou que “as FA são o que o povo quer que elas sejam” e que há mecanismos democráticos para que o faça sentir.
“A população portuguesa tirará certamente as ilações que quiser tirar deste processo, tem os mecanismos democráticos para fazer sentir, o próprio poder político tem os mecanismos adequados para fazer sentido se o papel [das FA] é reforçado ou não é reforçado”, explicitou.
“Eu acho que nós fomos chamados a fazer uma função diferente, não sei se a fizemos bem ou mal, parece-me que a fizemos bem, mas não sou eu que me vou julgar, é a população, é o poder político”, disse.
E concluiu: “Nós, Forças Armadas, faremos o que for necessário, porque na base das Forças Armadas uma das missões é ajudar a nossa população, portanto (…) é uma coisa natural”.
Portugal perto do limite da população-alvo da vacinação
"Estamos a chegar ao limite do público-alvo para ser vacinado", indica, apontando que a meta de 85% da população portuguesa com vacinação contra a covid-19 completa deverá ser atingida até ao fim do mês, disse à Agência Lusa o coordenador da ‘task-force’.
O processo está "mesmo já no fim, tirando as crianças dos 0 aos 12 anos, que são entre 11% e 12% [da população], e havendo 03% a 04% de pessoas que recusam a vacina", diz. Isso significa que não teremos muito mais população para vacinar”, referiu o militar em entrevista à Lusa.
Este fim de semana, dever-se-á atingir o patamar de 85% da população elegível para ser vacinada com pelo menos uma dose administrada. Olhando para o futuro, Gouveia e Melo defende que “não é necessária uma ‘task-force’” para além da missão que está prestes a finalizar, quer para fazer reforços de vacinação quer para a eventualidade de a vacinação contra a covid-19 se tornar uma rotina regular.
“O que está recomendado é uma vacinação reforçada para pessoas que estão imunossuprimidas. Estamos a falar num universo de, no máximo, 100 mil pessoas, se calhar até inferior”, salienta.
Garante que “neste momento há reserva de vacinas para essa terceira dose”.
A ‘task-force’ que liderou foi “uma máquina montada de forma extraordinária para um processo extraordinário”, reconhece Gouveia e Melo, mostrando-se convencido que uma campanha anual de reforços de vacinação poderá ser assegurada pelos cuidados de saúde primários: “Já o faziam para a vacinação da gripe e poderão fazê-lo”.
Ao cabo do que considera “uma batalha com prazo, o mais curto possível para cumprir um plano de vacinação” com duas doses para a maior parte da população, o oficial general da Armada reconhece alguns momentos de impasse ao longo de nove meses.
Um desses pontos aconteceu com a incerteza sobre efeitos secundários da vacina Oxford/Astrazeneca, cuja administração chegou a ser suspensa e cujo uso acabou por ficar limitado a pessoas com mais de 60 anos.
“Não consigo dizer se houve uma guerra comercial [entre fabricantes de vacinas]. Às vezes, parecia. Tivemos que viver com limitações que apareceram em certas alturas do processo de vacinação e tivemos que o adaptar a essas limitações, com sucesso”, argumenta.
“Houve momentos em que nos faltaram vacinas e o nosso ritmo não era aquele para o qual tínhamos capacidade. Depois, quando apareceram as vacinas, o ritmo aumentou. Quando já estávamos a chegar ao fim do processo de vacinação, tendo vacinas e capacidade, faltavam as pessoas. Mas nós cumprimos. Daqui para a frente estaremos a vacinar três a quatro mil pessoas por dia em todo o país”, salienta.
Além de todo o pessoal de enfermagem, médicos, administrativos e todos os militares, Gouveia e Melo destaca a importância das autarquias, que “tiveram um papel extraordinário neste processo: disponibilizaram espaços, recursos humanos e recursos materiais”.
“Sem [as autarquias] teria sido muito difícil. Nós estamos a operar entre as 4.500, 5.000 pessoas todos os dias nos centros de vacinação, muitas contratadas pelas autarquias, muitas voluntárias”, destaca, apontando ainda que o poder local permitiu montar os mais de 300 centros de vacinação “mais abertos, espaçosos, arejados e mais adequados a este tipo de vacinação” fora dos centros de saúde.
Para Gouveia e Melo, o ritmo da vacinação acabou por ditar o ritmo da progressão da pandemia em Portugal, sobretudo a partir do momento em que a variante Delta do coronavírus SARS-CoV-2 atingiu o país.
“Nós tivemos a variante Delta muito cedo. Quando atingimos cerca de 55% das segundas doses, já com a variante Delta, notou-se uma quebra da incidência, que deixou de aumentar e começou a cair. O processo de vacinação foi combatendo sistematicamente a incidência e ajudando a combatê-la. Neste momento, estamos a ganhar. Apesar do desconfinamento, apesar de haver muita mobilidade, férias, estrangeiros em Portugal, a incidência está a baixar”, destaca o vice-almirante.
Com o novo ano letivo prestes a começar, Gouveia e Melo admite que “este vírus gosta de ajuntamentos e que “é natural” que se assista a um aumento de casos, mas afirma-se otimista: “Estou convencido que com a taxa de vacinação que nós temos na população, a incidência não aumentará muito, poderá aumentar temporariamente, mas vai cair naturalmente”.
Comentários