No cerne da contestação está um vídeo da atuação de Homem em Catarse, alter-ego de Nelson Afonso Dorido, a 11 de agosto, junto ao altar da igreja de São Sebastião. A captação, originalmente publicada na página do artista, foi parar ao blog Senza Pagare, de cariz religioso. Numa entrada do website, chamada “Woodstock na igreja de São Sebastião em Cem Soldos”, datada de 30 de agosto, fala-se num “concerto nada condizente com a sacralidade de uma igreja”.
A mesma publicação recorda que a realização de uma atuação nestas condições vai contra as normas estabelecidas na Conferência Episcopal Portuguesa de dia 16 de Novembro de 2005, cujo artigo 28 dita que “a realização destes concertos em igrejas, que é superiormente preconizada, obedecerá sempre às normas publicadas pela Santa Sé e pelas dioceses portuguesas, segundo as quais o repertório deverá ser condizente com o lugar sagrado, constituído por música sacra ou religiosa, e sujeito a aprovação superior”. Face a estas normas, o autor do texto pergunta-se se o Bispo de Santarém, diocese responsável por Cem Soldos, foi informado da natureza do evento.
Ontem, a 2 de setembro, a Diocese de Santarém publicou um comunicado na sua conta oficial de Facebook, onde a Vigararia Geral afirma que “o Bispo de Santarém, bem como os serviços da Cúria Diocesana, não tiveram conhecimento prévio de que a Igreja de São Sebastião de Cem Soldos iria ser usada para espetáculos do Festival Bons Sons, que decorreu de 9 a 12 de agosto de 2018″.
No mesmo texto pode ser lido que, até à data desta edição do festival, “não consta” que “o Festival Bons Sons de Cem Soldos tenha usado os espaços sagrados de modo a causar escândalo ou que exigisse a intervenção da autoridade diocesana”, reconhecendo, todavia, que a Diocese recebeu “observações de escândalo que chegaram de várias partes do país e do estrangeiro”.
Para Luís Ferreira, fundador e diretor artístico do Bons Sons, a polémica não faz sentido pois o festival já organiza concertos na igreja de São Sebastião desde 2008, sendo que o “Bons Sons vai fazer 13 anos [foi fundado em 2006] e nunca tivemos problemas”. Natural de Tomar e formado em Design Industrial, Luís Ferreira integra o Sport Club Operário de Cem Soldos (SCOCS), associação cultural local responsável por várias iniciativas, entre as quais o Festival Bons Sons, dedicado à promoção de música portuguesa.
Conhecendo bem a aldeia, o designer recorda que “há concertos na igreja de Cem Soldos” desde que se lembra. Além disso, "a questão da autorização é uma não questão" pois “há um conhecimento e um entendimento comuns do projeto há muitos anos" junto dos vários padres que tiveram a cargo a paróquia de Cem Soldos. No entanto, Luís Ferreira compreende “postura e a reação” da Diocese de Santarém, atribuindo a génese da controvérsia a um “grupo ultraconservador que fez pressão e obrigou a Diocese a tomar uma posição”, o que colocou visões diferentes da igreja em confronto.
Onde o discurso do responsável endurece é quanto à conotação profana dada à atuação, considerando que se trata de um "vídeo que alguém roubou da página do artista" e cuja descrição, Woodstock na igreja de São Sebastião em Cem Soldos, foi escolhida "de forma maliciosa, para deturpar a leitura das pessoas”.
Luís Ferreira clarificou que Homem em Catarse “nem sequer é rock” e que todos os concertos organizados neste palco, denominado Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, decorrem “muito cedo para aproveitar o facto de estar sol e as pessoas poderem estar num local fresco, com boa acústica”, e que os artistas são de “de índole mais intimista”, para “criar um lugar de proximidade entre o público e os músicos".
Para garantir a respeitabilidade dos locais de culto, o responsável recorda que o Bons Sons trabalha “com artistas que exploram géneros ligados à Pop, ao Rock e ao Hip-Hop que podem até tocar no palco Zeca Afonso [localizado em frente à igreja de São Sebastião], mas que não faz sentido nenhum tocarem dentro do espaço da igreja”, exemplifica.
Falando em nome da organização, o diretor defende que “quem esteve no festival não ficou indignado” e que “quem ficou indignado não esteve nem pretende estar presente no Bons Sons”. Trata-se de “pessoas que não conhecem o festival”, diz, acrescentando que "é dessa ignorância e dessa visão estreita da fé que se cria uma polémica”.
Pelo contrário, Luís Ferreira lembra que o objetivo do festival é de promover “comunhão e boas energias”, ao integrar “toda a comunidade na sua execução". O lema desta edição, Amor de Verão, "reflete isso mesmo", diz.
Quanto às próximas edições do Bons Sons, a organização ainda não tomou uma posição oficial quanto ao que irá fazer e Luís Ferreira realça que tal é “prematuro”, pois “o tempo da polémica não é o tempo de tomar decisões”. No entanto, o diretor artístico deixou claro o futuro deste palco depende da decisão da própria igreja, pois é “dona do espaço”. A organização, todavia, mantém-se “disponível para trabalhar como sempre trabalhou."
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