O que é que faz um grande cozinheiro? A capacidade encontrar os melhores ingredientes? Claro, isso é fundamental. A técnica? Também. Uma boa equipa à sua volta? Óbvio. E um excelente chef? A capacidade criativa aliada a tudo o resto.
A cozinha é um campo de criatividade, as frigideiras, tachos e panelas são autênticos quadros em branco à espera de fundir sabores. É aqui que está um dos segredos da inovação culinária: a capacidade de juntar os mais inesperados ingredientes e a partir daí fazer um grande prato.
Peço desde já desculpa a quem me acompanha desse lado do ecrã, não era de todo minha intenção deixá-lo de água na boca a más horas. Servem apenas os dois primeiros parágrafos para dizer que Zinedine Zidane é um excelente chef e que o seu Real Madrid é uma receita única, uma mistura de ingredientes clássicos e inovadores, mas sempre deliciosa.
Os Merengues acabaram de conquistar o seu 34.º título da história, o primeiro grande troféu desde que Cristiano Ronaldo deixou a capital espanhola para rumar a Turim. E foi assim que Zidane e companhia 'cozinharam' a liga.
O chef
Zinedine Zidane é franco-argelino. Poderíamos dizer que a sua grande receita - um Real Madrid premiado com duas La Liga, duas Supertaças, dois Campeonatos do Mundo de Clubes, três Ligas dos Campeões e duas Supertaças Europeias - é uma conjugação da cozinha moderna francesa, transfigurada com alguns ingredientes mais inóspitos oriundos do norte de África, mas isso seria o autor deste texto a deixar levar-se por aforismos culinários. O Zidane jogador foi um atleta magnífico, unanimemente um dos melhores futebolistas de sempre, cujo último momento da carreira foi ter dado uma cabeçada num adversário e ter sido expulso, na final do Campeonato do Mundo de 2006, frente a Itália, e já depois de ter marcado um golo.
Zidane, o treinador, é um grande chef porque passou por grandes cozinhas - Bordéus, Juventus e Real Madrid - com outros grandes chefs, como Vicente del Bosque ou Carlo Ancelotti. Com estes outros treinadores, desculpem, cozinheiros, Zidane aprendeu a estratégia de liderança, a do líder natural, alimentada pela crença do grupo.
O grande trunfo do francês não é a tática. Zidane não tem tiki-taka (estilo de jogo eternizado por Pep Guardiola no FC Barcelona) nem gegenpressing (o modelo de Jürgen Klopp no Dortmund e, depois, no Liverpool) que fiquem para a história da tática do futebol, mas tem três Ligas dos Campeões seguidas e dois dos três títulos espanhóis do Real Madrid na última década. O treinador francês é um homem do balneário que sabe utilizar muito bem os ingredientes que tem à sua disposição - que, diga-se de passagem, não são ingredientes quaisquer. No campo, tem uma equipa versátil, sem grandes alaridos táticos, capaz de jogar em transição rápida ou de fazer 90 minutos baseados no controlo da posse de bola. O Real de Zidane baseia-se sobretudo na capacidade de resposta que dá aos diferentes adversários e com uma grande rotatividade da equipa. O mesmo prato é servido de várias maneiras e desde que o francês é treinador principal dos Merengues, o sabor tem sido digno de estrela Michelin.
O refugado, a base de qualquer bom prato
Disseram-me no outro dia que o refogado foi inventado pelos portugueses. Fiquei surpreendido, custa-me imaginar que nem toda a cozinha não comece com uns dentes de alho, uma cebola e um fio de azeite. No entanto, não me convencem de que a receita de Zidane não começa desta forma. Não, não há o grande ingrediente português que fazia dos pratos servidos pelo francês uma delícia a priori, mas mesmo sem Cristiano Ronaldo, Zizou mostra que tem arte para calibrar a escolha dos ingredientes.
Esta temporada, a base da reconquista do título dos madridistas começa na defesa, onde ‘mora’ a mais que calibrada dupla Sergio Ramos, o central goleador (fez abanar as redes da baliza adversária 10 vezes esta temporada), e Raphael Varane, central campeão do mundo. No lado esquerdo da defesa mora Marcelo, símbolo do clube pela postura competitiva dentro de campo e de proximidade aos adeptos fora dele. No meio-campo há Modric, ex-Bola de Ouro, Toni Kroos, jogador de passe certo, e Casemiro, peça fundamental no xadrez de Zidane para destruir o jogo adversário. Na frente de ataque, Karim Benzema, o 'novo' matador de serviço
Esta, que é a base das conquistas europeias de Zidane no passado, são ainda hoje a base de uma equipa, tanto em campo como no balneário, que sofreu várias metamorfoses ao longo da época, com o chef Zidane a experimentar várias combinações com um balanço (quase sempre correto) de juventude - destaque para o francês Ferland Mendy e os jovens brasileiros Vinícius Júnior e Rodrygo - e ADN merengue.
A arte de saber escolher os ingredientes
Escolher bons ingredientes é fundamental para se poder concretizar um bom prato, mas mais importante ainda é saber não insistir naqueles que numa receita não fazem sentido. Neste caso, Gareth Bale é o caso mais evidente. Depois de não ter saído do Real Madrid nos últimos mercados de transferências, em que teve sempre com um pé de fora da capital espanhola, este ano esteve afastado das opções principais do clube e soma apenas 1.261 minutos distribuídos por 20 jogos.
O galês já mostrou que "não quer saber" e que está apenas à espera de novas oportunidades para sair (ou para jogar golfe...). Os momentos somam-se, depois da bandeira do País de Gales onde se podia ler “País de Gales. Golfe. Madrid. Por esta ordem”, o extremo somou mais uma série de episódios, desde dormir no banco de suplentes com a máscara a tapar os olhos, a ver o jogo de binóculos. Aquele que já foi um dos melhores do Real Madrid é atualmente um elemento que Zidane vê ultrapassado e capaz de estragar o gosto ao prato num momento delicado da época, em que depois da conquista do campeonato há uma eliminatória da Liga dos Campeões para inverter (o Real Madrid perdeu na primeira-mão, em casa, 0-1 frente ao Manchester City).
Outro ingrediente que não caiu bem na receita de Zidane foi Jovic. O antigo avançado do SL Benfica prometia aprimorar a receita madrilena (que tem de começar a pensar a sucessão de Benzema), mas dois golos em 25 jogos sabem a pouco e dão pouca vontade de pedir mais.
Ainda no capítulo dos ingredientes que iriam fazer deste "prato" o melhor que Zizou cumpre falar da contratação de Eden Hazard, jogador que vinha tentar ocupar o espaço deixado livre na panela por um tal de CR7. Contudo, o extremo belga teve uma época parca em grande exibições e recheada em lesões, impossibilitando-o de ser uma figura de destaque no prato servido por Zidane em cada jogo.
É indiscutível que Hazard é um dos mais talentosos jogadores da atualidade e com certeza que com melhor sorte será um dos destaques do menu que será servido na próxima temporada.
O improviso que deve ficar
Na arte de criar um bom prato com novos ingredientes é importante haver um registo que fique. Zidane tem de guardar a receita e tem-na guardada para fazer do Real Madrid um clube constantemente vencedor, o que atualmente não acontece. Até Zizou chegar ao comando técnico do Real, os Merengues eram um emblema 'insosso', desiquilibrado nas conquistas. Com a chegada do antigo 10 francês (que, na verdade, usou o n.º 5 quando equipou de branco em Madrid), os Merengues passaram a ser um prato mais equilibrado, muito intenso nas mostras europeias de cozinha, e mais fraco nas mostras domésticas. Hoje, com a vitória do seu segundo título nacional como treinador, Zidane chega ao balanço perfeito. Hoje, Zizou tenta começar a traçar um caminho que, por exemplo, impeça que ídolos como Cristiano Ronaldo representem o clube durante 10 anos e saiam apenas com dois títulos de campeão nacional no currículo.
Zidane improvisou, criou uma receita e mostrou que não foi uma devaneio criativo. No Real Madrid cozinhou o melhor Real Madrid do século XXI, primeiro com Ronaldo e agora, num caminho mais complicado, sem o maior ídolo da história recente dos Merengues.
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