Esta quinta e sexta-feira, Portugal recebe o Festival de Cannes do futebol. Pelo menos era assim que Duncan Revie, filho do antigo selecionador inglês e treinador do Leeds, Don Revie, fundador da Soccerex, se costumava referir aos eventos que organizava pelo mundo fora e que colocavam o futebol, o negócio e indústria que o envolve em perspetiva.
Em Oeiras, vai discutir-se o futuro do futebol. Em parceria com a Liga Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol, a La Liga e a Câmara Municipal de Oeiras, a Soccerex traz a Portugal o Soccerex Europe, naquele que é um regresso ao velho continente após dois eventos nos "dois maiores mercados futebolísticos emergentes", China e Estados Unidos.
O termo 'futuro do futebol' é muito lato. Há que o afunilar e ninguém melhor do que David Wright, diretor de marketing de Soccerex e adepto do Chelsea, retrato de um clube moderno que nasce precisamente deste encontro entre a modalidade e o mundo corporativo, para nos explicar o que vai acontecer.
David diz que se lembra perfeitamente do primeiro evento da Soccerex em que participou, quando os painéis eram só sobre o que acontecia dentro de campo, e de como foi evoluindo até aos dias de hoje, em que os negócios e a tecnologia estão no centro da discussão.
Ao mesmo tempo, fala-nos do dia em que o pai, acabado de chega a casa, lhe disse que o seu clube do coração tinha acabado de ser comprado "por uns russos", algo que não o incomoda de forma nenhuma. "As pessoas acusam-nos de ter comprado sucesso, mas tem sido ótimo viver esse sucesso", diz.
Perguntámos a David se acha que o crescimento do futebol feminino vai ser o próximo grande tema: "não sei como é em Portugal, mas no Reino Unido o Mundial mostrou-me que os adeptos querem ver os jogos das equipas femininas, mas há um conflito: são há mesma hora que os jogos das equipas masculinas. Portanto, se és adepto do clube, não consegues ver os dois jogos. Tens de conseguir alcançar o nível certo de organização e perfeccionismo". Pareceu-nos que sim.
Esta é uma conversa sobre um legado, de apelido Revie, sobre Portugal, um país líder no mundo do futebol, sobre as mudanças na última década na modalidade e da memória da entrevista em que Diego Maradona brinca sobre um dos golos mais míticos da história, a Mão de Deus.
David, podemos dizer que o que vai acontecer durante estes dois dias em Oeiras, a Soccerex Europe, é a Web Summit do futebol?
O nosso fundador, Duncan Revie, costumava referir-se à Soccerex como o Festival de Cannes do futebol. É sobre juntar as pessoas da indústria para que possamos aprender, conhecer-nos e fazer negócios. Durante estes dois dias, em Oeiras, através de conferências, de network, vamos discutir o futuro do futebol na Europa.
O evento tem como cartaz, por assim dizer, uma série de painéis onde se vai discutir o futuro da modalidade, mas, para além disso, conta com representantes de várias organizações e clubes. Consegue imaginar, por exemplo, uma conversa de corredor entre o representante internacional da Academia do Ajax e o manager da Academia do Birmingham City?
Claro. Temos um painel com o representante internacional da academia do Ajax sentado ao lado de representantes do SL Benfica e Sporting CP. Também vamos ter o antigo diretor de metodologia do PSG cá. Vamos ter vários especialistas em desenvolvimento de jogadores e academias a juntarem-se para discutir diferentes ideias. Se estás à frente de uma academia, estás envolvido no processo de desenvolvimento de um jogador, portanto, poder perceber como é que o Ajax o faz, como o Benfica usa tecnologia e data para reforçar o processo de formação, entender como o Sporting trabalha a performance física dos jogadores e perceber a metodologia por detrás de um clube como o PSG... Este conhecimento direto, de dentro, na primeira pessoa, é muito importante para ajudar a melhorar uma academia.
Houve essa preocupação de convidar clubes de diferentes dimensões?
A Soccerex é para toda a gente dentro da indústria do futebol. Portanto, sim, é para os clubes de elite, mas também é para aqueles que estão a aprender e para todos aqueles que representam negócios que envolvem este mundo. Por isso é que a nossa parceria com a Federação Portuguesa de Futebol é tão importante, permite que clubes, empresas, associações e organizações de todo o país estejam envolvidas na conferência e beneficiem dela.
Porquê Portugal?
Organizamos eventos por todo o mundo. Já fizemos eventos em 19 cidades espalhadas por 13 países, pelos cinco continentes, nos últimos 23 anos. É um produto global. No último ano focámo-nos, estrategicamente, em fazer eventos nos dois maiores mercados futebolísticos emergentes: China e Estados Unidos. Queríamos que 2019 fosse o ano em que voltávamos a fazer o evento na Europa. Portugal é, em vários sentidos, um líder no mundo do futebol. É, atualmente, campeão europeu e vencedor da Liga das Nações, para além do sucesso em futsal e futebol praia. É um país que deu ao mundo muitos treinadores de elite, sempre associados ao sucesso e a diferentes abordagens... Tínhamos uma lista de diferentes cidades e países, mas assim que as conversações começaram com as pessoas de Oeiras tornou-se claro onde o evento iria acontecer. Portugal pareceu-nos uma ótima aposta.
"(...) a Soccerex, sim, é sobre o negócio em torno do futebol e de toda a indústria envolvente, mas sem futebol nada disto existia. Primeiro, é sobre o que acontece no relvado, sobre os jogadores, a qualidade do jogo. Isso é o coração de tudo isto."
Quando fala na China e nos Estados Unidos como mercados futebolísticos emergentes, pelo que viu, acredita que podem chegar ao nível do futebol europeu?
São dois países com vários desafios para superar. A história do futebol em Portugal, Inglaterra, Espanha, no continente europeu, está muito mais enraizada na cultura do que na China ou nos Estados Unidos. Mas nestes dois mercados há uma enorme quantidade de pessoas. Se eles conseguirem organizar adequadamente as competições, estruturar os clubes e ainda criarem uma boa rede de desenvolvimento… A MLS está numa fase mais avançada do que a liga chinesa, apesar de ter de rivalizar com grandes modalidades como basquetebol, beisebol, NFL… Acho que não vão fazer frente à Premier League, mas penso que em pouco tempo vamos ver jovens promessas à procura de uma oportunidade para jogar na MLS.
Quando falava de Portugal enquanto líder, isso só acontece porque a Federação cresceu muito nos últimos anos em termos de organização, tecnologia… E isto acontece porque futebol já não é só futebol, não é?
Talvez há 20, 30 anos, futebol fosse apenas um desporto, agora é um negócio, é entretenimento, é uma economia global. A audiência dos grandes torneios e competições e o significativo aumento de receitas… Em Portugal o crédito vai todo para o Tiago [Craveiro] e a sua equipa pela abordagem inovadora com que desenvolveram o crescimento da Federação.
Disse que, hoje, futebol não é apenas um desporto, é também um negócio. Acha que isso afeta o jogo jogado no campo?
Vou voltar a invocar o nosso fundador para dizer que a Soccerex, sim, é sobre o negócio em torno do futebol e de toda a indústria envolvente, mas sem futebol nada disto existia. Primeiro, é sobre o que acontece no relvado, sobre os jogadores, a qualidade do jogo. Isso é o coração de tudo isto. Mas bons negócios também significam melhores infraestruturas, melhores investimentos em treino e tecnologia. Por isso todo este negócio está apenas a ajudar a melhor a modalidade.
Há algum clube que o David apoie?
Claro que sim, sou adepto do Chelsea! Só por isso tenho uma grande ligação a Portugal. Tivemos grandes treinadores e jogadores portugueses nos últimos anos. O início da temporada tem sido interessante, não com tanto sucesso como em anos anteriores, mas temos um homem do clube como treinador, uma equipa jovem. Isso deixa os adeptos expectantes.
É curioso que seja fã do Chelsea porque é precisamente o exemplo de um clube moderno, nascido da convergência entre o mundo do futebol e dos negócios.
É verdade, lembro-me perfeitamente do dia em que o Chelsea foi "comprado". Estava de férias, o meu pai chegou a casa e disse-me "fomos comprados por uns russo" [risos]. O clube mudou e é um exemplo de até que ponto um investimento pode moldar um clube.
Como adepto, preferia o clube com ou sem Roman Abramovich?
Não me interprete mal, mas depois da chegada de Abramovich nós vencemos campeonatos, a Liga dos Campeões… Acho que nos últimos anos houve um desligar na relação entre os fãs e o clube. O ambiente que existe no início desta temporada pode ser uma alavanca para recuperar essa ligação. Não há uma forma má de o dizer, sem ele nunca teríamos ganhado o que ganhámos, não teríamos visto jogar os jogadores que vimos… As pessoas acusam-nos de ter comprado sucesso, mas tem sido ótimo viver esse sucesso.
E ser adepto com vista direta dos bastidores, o futebol perde a magia?
É muito interessante. Quando me juntei à Soccerex o meu foco era apenas a época do Chelsea. Estes últimos anos ajudaram-me a perceber o quadro geral, como são organizadas as competições, como funcionam os media… É diferente. No meu trabalho anterior falava um bocadinho de futebol com os meus colegas, aqui trabalho e falo de futebol constantemente, portanto, quando chego a casa falo pouco de bola. A minha mulher está felicíssima [risos].
Faço esta pequena picardia sobre a convergência destes dois mundos, mas o fundador da Soccerex é o filho de Don Revie, antigo treinador da seleção inglesa e do Leeds. Mais do que ninguém ele teria uma visão purista do futebol.
Infelizmente, Duncan faleceu há uns anos, mas sem dúvida que, tal como o seu pai, era um verdadeiro homem do futebol. Nasceu e foi criado neste mundo, passava o tempo todo a contar histórias de quando o pai o levava para os relvados e lhe apresentava os jogadores daquela famosa equipa do Leeds dos anos 70. Ao mesmo tempo, contava que Don Revie era um visionário no que toca ao que seria o negócio do futebol no futuro. Ele costumava dizer ao Duncan que um dia o estádio estaria coberto de publicidade, as infraestruturas iriam ser uma coisa completamente diferente… o futebol seria mais. O que acontece no campo é o mais importante, mas há negócios em redor, há uma indústria a crescer, milhões de euros, novos empregos. É importante reconhecer que o futebol é um negócio, mas que não seria nada sem o desporto em que se centra.
"Os clubes hoje têm tanto dinheiro, graças a direitos de transmissão dos jogos, às receitas do clube, que sentem que podem investir como quiserem nas suas equipas."
Desde então o futebol mudou muito. Os valores das transferências, por exemplo, atingiram números que seriam inimagináveis há 10 anos, nem precisaríamos de recuar até ao tempo de Don Revie.
O mercado de transferências mudou sobretudo nos últimos três anos. A transferência de Neymar, do FC Barcelona para o Paris Saint-Germain, foi um ponto de viragem no que toca ao que os clubes estão preparados para pagar por um jogador. Se olharmos para o que se passou com Felix, 120 milhões de euros, o negócio deu-se porque o Atlético esteve disposto a pagar este valor pelo jogador, não porque aquela era a sua avaliação de mercado. Os clubes hoje têm tanto dinheiro, graças a direitos de transmissão dos jogos, às receitas do clube, que sentem que podem investir como quiserem nas suas equipas. Acima de tudo acreditam que vão ser recompensados por este investimento, dentro e fora de campo. O mercado mudou mesmo muito. Aliás, basta olhar para o dinheiro que clubes como o Benfica fizeram nos últimos anos, isso tem um impacto gigante nas contas de um clube.
Outra grande mudança é o crescimento do futebol feminino. É o próximo grande tema
O futebol feminino está a crescer imenso. Este Mundial, em França, pode ter sido o ponto de viragem, já embalado pelo Campeonato de 2015 no Canadá, que teve muito sucesso. Entre estas duas competições assistimos a um grande crescimento do futebol feminino, sobretudo na Europa. Os clubes de elite estão a investir em equipas femininas e isto vai-se prolongar. No Reino Unido houve um recorde de audiências com a transmissão do jogo das meias-finais entre os Estados Unidos e a seleção inglesa. Mais de 11 milhões de pessoas viram o jogo. A UEFA tem agora de trabalhar para garantir que há o mesmo nível de interesse nos jogos entre Campeonatos do Mundo, mas acho que se está a perceber a qualidade de jogo e do potencial comercial do futebol feminino. Temos visto várias marcas a investir durante o Mundial, assim como novos patrocinadores a aparecerem nas competições domésticas.
"Não sei como é em Portugal, mas no Reino Unido o Mundial mostrou-me que os adeptos querem ver os jogos das equipas femininas, mas há um conflito: são há mesma hora que os jogos das equipas masculinas."
Fala-se muito de igualdade salarial entre jogadoras e jogadores. Acha que vamos ter de esperar que haja esse maior interesse, esse aumento de potencial e de qualidade de jogo, antes de voltar a esse tema?
A qualidade do futebol feminino, hoje em dia, já é bastante elevada. Agora o ponto é como construir o jogo. Não sei como é em Portugal, mas no Reino Unido o Mundial mostrou-me que os adeptos querem ver os jogos das equipas femininas, mas há um conflito: são há mesma hora que os jogos das equipas masculinas. Portanto, se és adepto do clube, não consegues ver os dois jogos. Tens de conseguir alcançar o nível certo de organização e perfeccionismo entre as diversas competições para perceber como são geridas as ligas femininas, como funcionam as transmissões dos jogos e assim garantir que o futebol feminino tem visibilidade. Quando chegarmos a esse ponto devemos falar sobre salários e igualdade.
O David está na Soccerex há 11 anos. Como foi assistir a esta década de evolução do futebol?
O envolvimento da tecnologia é provavelmente o maior desenvolvimento. Como em toda a sociedade, a tecnologia está a moldar o nosso quotidiano. Lembro-me de quando comecei a trabalhar na Soccerex, filmávamos todas as conferências em estúdios de televisão. No último dia saí do evento com uma caixa cheia de cassetes. Na altura, tínhamos um painel para discutir a influência da tecnologia no futebol; hoje, todos os painéis, de uma forma ou de outra, são sobre como a tecnologia está a afetar diferentes áreas do futebol, dentro e fora de campo. Acho que essa é uma das maiores mudanças. Além disso, o mercado dos direitos de transmissão cresceu imenso, especialmente na Premier League onde se bateram todos os recordes, o que ajudou a mudar o desporto em todo o continente. Mas isso é outra área.
Então, tecnologia e direitos de transmissão.
A venda de direitos televisivos teve um grande impacto. A Premier League teve contratos milionários, a La Liga assinou um contrato coletivo… Muita coisa mudou em várias formas. As redes sociais são outro tema igualmente importante. Há cinco/seis anos tivemos um painel sobre como as redes sociais poderiam ter impacto no futebol, hoje é algo intrínseco a cada sessão. Tornou-se natural, a proximidade dos jogadores aos fãs, o contacto mais permanente e direto.
Destes 11 anos, qual é a maior história que tem para contar dos eventos em que participou?
Tivemos tantos grandes oradores… mas se tiver de escolher, pessoalmente, foi a entrevista que Diego Maradona deu no Asian Fórum da Soccerex na Jordânia em que brinca com o golo que marcou a Inglaterra no Mundial de 1986, a mão de Deus. Essa, para mim, é a melhor.
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