A Rússia que existe além de Moscovo não está habituada a turistas. Kratovo, por exemplo, na região circundante da capital russa, onde a seleção portuguesa se instalou no centro de treinos do Saturn, é o exemplo de um sítio assim: estranhou os estrangeiros, depois entranhou-os. E agora só espera que fiquem com a melhor ideia da Rússia para que um dia possam voltar.
Kratovo é uma localidade. O seu centro é a estação de comboios, rodeada de pequenos negócios - de supermercados a frutarias e cafés -, que fica também a poucos metros do Kratovskiy Prud, o parque que envolve uma grande lagoa. Não tem câmara municipal nem junta de freguesia ou centro recreativo, as pessoas cruzam-se na estação ou nos passeios junto à lagoa.
De repente, esta pequena localidade, próxima das cidades de Ramenskoie e Jukovsky, foi invadida por portugueses, por jornalistas portugueses melhor dizendo. Devido ao trânsito infernal de Moscovo, a viagem de comboio de uma hora até à capital russa, apesar de desconfortável, soou sempre altamente convidativa à imprensa. Foi num desses dias em que, abrigados do sol esperávamos o comboio, que Denis nos interpelou em espanhol. O jovem russo de 17 anos morou um ano na cidade de Valência, em Espanha. Tinha apenas 14 anos nessa época, mas quis colocar em prática o seu espanhol e sorriu-nos. Poder falar em espanhol - ou num ‘portunhol’ arranhado - parecia uma benção comparado às incontáveis vezes em que nem o inglês era solução e, saturados, quer de um lado quer do outro, acabávamos a retirar os telefones do bolso e falar através da voz de alguém, de um qualquer robô, que sentenciava qualquer conversa à informação estritamente necessária e imediata.
Denis queria saber o que estávamos a achar da Rússia. Pergunta-nos se estamos a gostar, do que tínhamos gostado mais. Uma primeira abordagem para depois, ao longo da viagem, procurar saber do que é que não tínhamos gostado. Respondemos que, em honestidade, não houve nada que nos tivesse incomodado. A barreira da língua existe, claro, mas no final do dia todas as pessoas têm sido prestáveis e amáveis connosco e o país surpreendeu-nos pela sua beleza, com os subúrbios verdejantes da capital a contrastarem com os subúrbios de betão da Europa ocidental.
A conversa com o jovem que sonha ser piloto de aviões - e que por isso apanha todos os dias o comboio em Kratovo, perto de Jukovsky, onde fica um dos aeroportos que serve a cidade de Moscovo - termina com um pequeno gesto de simpatia e hospitalidade, tão simples à primeira vista: “Olhem, vou sair nesta estação. Aqui têm duas pastilhas elásticas russas como prenda e agradecimento”. “Spasiba [Obrigado]”, respondemos. “De nada, tudo pelos turistas”, e sorri antes de sair da carruagem.
“Tudo pelos turistas”. A frase ficou. E ficou porque não é estranha. Leva de imediato para a conversa com José Dias, um português que veio estagiar para Moscovo para uma empresa de turismo - “uma espécie de versão do Booking, mas só para empresas”, conta -, e que também ele se revela surpreendido pela Rússia.
“Há muita propaganda de que a gente não se apercebe. Muito do que nós ouvimos não é verdade. Temos de vir para aqui de cabeça aberta e o que comecei a perceber, pouco tempo depois de chegar, foi que muito do que se fala em Portugal é sobre o governo russo. E há uma diferença enorme entre o governo russo e o povo russo. O povo russo é muito simpático, sempre prestável, ajuda, tem muito interesse por outras culturas. Estou a adorar o país”, confessa.
José não tem dúvidas: “eles querem que a seleção deles que ganhe, mas acho que estão mais felizes porque têm cá muitos estrangeiros e gostam disso. E conseguem quebrar o estigma. Querem atrair o pessoal estrangeiro a todos os níveis”.
E querem.
Em mais de 90% dos casos em que entrámos num táxi, depois das devidas apresentações, a primeira pergunta foi: “estão a gostar da Rússia?”. Não foram menos as vezes que na estação, quando alguém nos interpelava, impelido pelas acreditações da FIFA que trazemos ao peito, e a mesma pergunta foi feita uma e outra vez.
Eles não nos estranham, eles entranham-nos. Pelo menos assim o querem, ao jeito deles, pois claro. Porque a poucos dias de deixar este país, fica-se com a clara impressão que mais do que receber a maior competição de futebol do mundo, a Rússia e os russos queriam mostrar a arte de bem receber. Mostrar que neste extremo da Europa não está nenhum país estranho, mas sim um país vizinho que pode ser o destino de uma viagem como qualquer outro.
E têm-no conseguido.
Diário da Rússia é uma rubrica pela voz (e teclas) de Abílio Reis e Tomás Albino Gomes, equipa do SAPO24 enviada à Rússia para fazer cobertura do Mundial. Um diário que é mais do que futebol, porque a bola não se faz só de bola, mas também das pessoas que fazem a festa. Acompanhe a competição a par e passo no Especial "Histórias de futebol em viagem pela Rússia".
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