Para os fãs de futebol — não só da Premier League, mas do desporto-rei em geral —, Louis Saha é sinónimo de golos. Formado na academia de Clairefontaine, de onde saíram lendas como Thierry Henry e William Gallas, tendo dado os primeiros passos no Metz, o francês espalhou classe na primeira liga inglesa, envergando as cores de emblemas como o Fulham ou o Everton. Mas toda a gente se recorda verdadeiramente é de vê-lo de vermelho, com o símbolo do Manchester United.
Requisitado a dedo por Sir Alex Ferguson, técnico imortal dos Red Devils, Saha chegou ao clube na mesma época que Cristiano Ronaldo, em 2003-04, sendo mais tarde uma peça importante para a conquista do bicampeonato, em 2006-07 e 2007-08, e da Liga dos Campeões de 007-08. A sua eficácia em frente à baliza levou-o a representar a seleção nacional francesa tanto no Euro 2004 como no Mundial de 2006, apenas falhando a final por ter levado um amarelo… contra Portugal.
Contudo, para lá dos troféus, Saha é também sinónimo de uma carreira que podia ter tido outros voos, não tivesse o talentoso francês sido flagelado por sucessivas lesões. Foram elas que o impediram, por exemplo, de disputar a final da Liga dos Campeões de 2007/08 pelo Manchester United frente ao Chelsea — que os Red Devils venceram no desempate por grandes penalidades —, juntando-se aos colegas em celebração com um sentimento algo agridoce.
No entanto, do fundo do sofrimento e da adversidade, surge a oportunidade. Foi no rescaldo dessa dolorosa final que Saha começou a debitar as primeiras linhas do surpreendente “Thinking Inside the Box”, o seu livro-terapia que, mais do que uma mera autobiografia, escrita por um ghost-writer, é a obra em que Saha partilha como lidou com as agruras da vida desportiva e aborda alguns dos desafios que enfrentam os futebolistas, procurando desta forma inspirar os colegas a encarar os seus problemas com mais honestidade.
A iniciativa foi bem recebida pela imprensa, só que o francês queria mais. Considerando o livro algo com um “impacto e alcance minimal”, Saha começou a procurar outras formas de ajudar outros futebolistas. A resposta viria já depois de pendurar as botas, em 2015, tendo-se lançado na criação de uma aplicação para telemóvel chamada AxisStars.
Nos últimos quatro anos, Saha tem vindo a trabalhar com a sua equipa para desenvolver este projeto, misto de rede social e agremiador de serviços. De acordo com o website do AxisStars, os atletas aderentes podem “conectar-se diretamente com marcas de confiança e prestadores de serviços para assegurar contratos de patrocínio, comprar bens de luxo e encontrar serviços de consultoria de que precisem, como advogados e aconselhamento financeiro”.
Ao SAPO24, Saha disse que quer com este projeto ajudar jovens atletas a compreenderem que têm de tomar decisões por si próprios — não delegando as tarefas em outrem —, afim de evitarem finais de carreira conturbados. Mas, além disso, o francês diz também querer oferecer uma plataforma para os futebolistas se exprimirem mais livremente. Segundo o ex-jogador, ainda há muitos temas tabu, como a saúde mental e o grau de vulnerabilidade que os atletas podem demonstrar, ou, nas suas palavras, o facto de terem “o direito a chorar, a falhar, a começar de novo e a voltar à luta”.
É com este sentido de missão que admite ter mais orgulho no que está a fazer agora do que naquilo que conseguiu atingir na sua carreira enquanto jogador. É com essa mudança em pano de fundo, de futebolista para empresário, que Louis Saha foi convidado para participar na conferência “The Career Transitions of Professional Footballers” (“As Transições de Carreira de Futebolistas Profissionais”), que decorre no dia 6 na cimeira Soccerex Europe, junto de nomes como Nuno Gomes, Paulo Ferreira e o seu compatriota Christian Karembeu.
No ano passado, o jornal britânico The Guardian publicou um relatório desconcertante sobre como mais de 500 futebolistas podem ter perdido mais de mil milhões de libras devido a maus conselhos financeiros. Como é que isto aconteceu?
Há muitos fatores para que estas coisas aconteçam. Durante a carreira os futebolistas têm pouca margem para cometer erros. Confiam em advogados ou agentes e é muito difícil — sem terem a educação e o tempo para rever documentos — aperceberem-se da extensão dos assuntos que podem enfrentar. Tudo isto combina-se com o curto espaço de tempo que têm para otimizar as coisas em termos de investimento de carreira. São pressionados a fazê-lo [investimentos], mas sem conhecimento. É como investir em arte sem ter quaisquer noções de arte, é [correr o risco de] ficar sob o controlo de alguém que está a fazer as coisas em proveito próprio.
Basicamente, a quantidade de jogadores em situação frágil é enorme. Com os idosos fala-se sobre como são um alvo fácil porque não sabem ou não querem saber, mas com os mais novos passa-se o mesmo, porque eles não têm educação nem o tempo, estão muito focados no seu próprio desporto e em manter-se no onze inicial.
Mas porque é que isso acontece?
O porquê tem a ver com a enorme quantidade de dinheiro que pode ser despendido de forma errada. Qualquer investimento pode correr mal, não há garantias, mas os jogadores enfrentam um ambiente pouco seguro, devia haver mais apoio para eles porque é dinheiro fácil para se obterem comissões.
Quão vulneráveis são os jogadores quando começam as suas carreiras?
São muito vulneráveis, têm de se rodear das pessoas certas. É possível imaginar que os pais sejam o mais bem intencionados possível e que queiram o melhor para os filhos, mas para eles também é muito difícil porque se trata de um ambiente desconhecido. Nunca lá estiveram, têm uma ideia, mas não sabem qual o valor de mercado do seu filho, não conhecem as necessidades de proteger a marca ou a imagem dele, não sabem como dar-lhe confiança e ao mesmo tempo proteger o seu estado de espírito, porque receber este dinheiro [valores elevados] com estas idades é muito complicado para qualquer pessoa.
É uma questão apenas de idade?
Mesmo para alguém que ganha a lotaria com 35 anos, a sua cabeça começa a andar à roda. Agora imagina se é alguém que não tem tempo para se sentar e tratar das coisas de forma profissional, mas está a receber dinheiro ao nível do CEO de uma grande empresa. Estar preparado para isto mentalmente é uma missão impossível, é por isso que é necessário estar rodeado das pessoas certas. É uma situação muito vulnerável porque estás num ambiente em que tudo se baseia no medo, porque te avisam que alguém um dia te vai enganar, “tem cuidado, não faças isto, não faças aquilo, deixa-me ser eu a fazer”. Tu tens medo de aprender porque achas que é impossível de compreender, é assustador porque nunca estiveste nessa situação e já ouviste tantas histórias, não queres parecer estúpido porque as pessoas vão falar disso na imprensa. É um tabu ainda maior porque não tens a plataforma para falar sobre isso e achas que vais ser humilhado. Falar com as pessoas certas é muito exigente, proceder às devidas diligências é demorado. Todos estes processos, de obter os conselhos certos das pessoas certas, fazem de ti vulnerável. Olha para a Internet, tu lá não sabes o que está certo e o que está errado.
Mas estarão os futebolistas mais protegidos hoje em dia ou este continua a ser um problema corrente?
Eu penso que hoje há mais cuidado com os jogadores nos clubes. Ainda assim, acho que os sindicatos deviam fazer mais. Não podemos estar contentes com o facto de os números andarem à volta dos 50% [de desemprego após o final da carreira em campo]. Um em cada dois ficam desempregados, é horrível. Há necessidade de se ter um sistema de crédito nos sindicatos, ou de apoio aos jogadores no clube, para nos assegurarmos de que os melhores atuantes deste desporto fantástico estão protegidos. Se te interessas por isto não podes estar contente com estes números.
É aqui que a AxisStars entra, não é? Disse numa entrevista que "os jovens jogadores são como golfinhos e o mundo do desporto vai ter sempre muitos tubarões". Como é que a sua plataforma funciona?
Em primeiro lugar, há o aspeto da comunidade. Basicamente, ao estares rodeado de pessoas como tu, sentes-te mais confiante se quiseres partilhar ou fazer perguntas. É um ambiente muito seguro. Em segundo, pode-se fazer networking com especialistas que nós, enquanto empresa, verificámos sob diferentes critérios, para nos certificarmos de que têm boa reputação e não se colocaram em situações dúbias. Depois há um segundo nível de proteção, que é uma auto-regulação criada pelo sistema de pontuação de 0 a 5 estrelas. Todos os produtos e serviços são sujeitos a isso, pois ajuda a manter a qualidade e a segurança da plataforma, indo ao encontro dos valores que queremos, como a transparência.
Estamos a querer fazer uma coisa muito neutral, por isso um dos aspectos é o facto de que qualquer um — desde agências a organizações ou empresas a retalho — se poder juntar à plataforma AxisStars e ter acesso direto aos jogadores. É direto não para cortar os intermediários, mas para nos certificarmos de que os jogadores compreendem que podem obter o seu valor de mercado, que podem ver com os seus olhos, que se eduquem. É uma questão de não serem os outros a lidar com isto, é preciso que sejas tu [atleta] a dedicares-te em vez de estares sentado no teu sofá. Precisas de perceber o que se está a passar, pois quando paras [de jogar] é brutal.
Quais são os requisitos para um final de carreira suave?
É preciso que obtenhas todo o conhecimento possível, porque os teus rendimentos passam a ser outros. Podes passar a ter propósitos, ideias e problemas diferentes, e tudo isto ao mesmo tempo é muito difícil. Passas a estar financeiramente exposto e toda a gente que teve a sorte de ter um grande salário tem de arranjar uma forma de o manter.
Ou seja, está a dizer que os jogadores muitas vezes estão demasiado dependentes dos seus agentes ou da família.
Exatamente. Mesmo com os teus pais, ainda que, com todo o amor no coração, queiram fazer tudo por ti, tu não aprendes. Tens de te meter na bicicleta e ver as coisas com os teus olhos, mesmo que caias no caminho, para compreender que tens de ter equilíbrio e tens de ter uma visão. Se o teu pai estiver sempre a guiar essa bicicleta, nunca aprenderás. E depois, quando tiveres filhos, como é que vais ensiná-los? Isto é contraproducente, tens de te safar sozinho. Tens de te certificar que, se o quiseres fazer, tens uma plataforma para isso. Mas, neste momento, se te sentires mesmo pressionado com as coisas, não as fazes, pedes ao teu agente. Se as pessoas quiserem fazê-lo, é preciso dar-lhes a possibilidade. Neste momento, não é possível.
Mas pegar num projeto foi um pouco o que lhe aconteceu. Quando se reformou, tornou-se num empreendedor. Como é que foi parar à área dos negócios?
Basicamente, eu comecei a escrever o meu livro e senti-me muito entusiasmado ao partilhar a minha história. Mas depois também quis partilhar outras, então juntei tudo numa espécie de guia para que as pessoas compreendessem como é a experiência de alguns jogadores. Ter este conteúdo assim reunido fez-me pensar no AxisStars.
Em que sentido?
Eu pensei: "Sim, o livro é bom, mas o impacto e o alcance é minimal, por isso gostava de ter uma plataforma que estivesse disponível 24/7 para ti. Ter uma app capaz de te informar, de te dar oportunidades... Eu precisava de ir mais além, por isso é que demorou tanto tempo. Eu ando a trabalhar na AxisStars há quatro anos, mas temos feito imensa investigação para nos certificarmos de que a ferramenta está boa, de que as funcionalidades estão bem combinadas, de que não é difícil de usar. Algumas pessoas são muito geeky, outras não, pelo que tem de ser uma coisa equilibrada. Ninguém usa o LinkedIn no universo dos futebolistas porque não conheces bem quem é quem, é muito corporate. É por isso que combinámos toda esta informação para nos certificarmos de que se torna numa Amazon, numa Uber, num Instagram, numa app parecida com as que se vê e que são fáceis de navegar. No entanto, o principal aspeto é ter uma visão em que damos opções concretas, 24 horas por dia. Mesmo um agente, se tiver alcance em Inglaterra ou em Portugal, pode não ter em França ou nos EUA. Nós queremos construir alguns caminhos mesmo sólidos onde aqueles tipos, se quiserem chegar a outro mercado, o podem fazer de forma segura através da AxisStars.
Como é que tem sido o percurso para lançar a app?
A app ainda não foi lançada, ainda está a ser testada. No início de setembro, quando formos à Soccerex, poderemos mostrá-la de melhor forma. Estamos muito orgulhosos porque esta jornada tem sido não só muito informativa, como também penso que os desafios que estamos a enfrentar são bons para nós. Mostram que há uma barreira que ninguém ainda quebrou. Vê-se que a sociedade quis mudar, as questões da transparência chegaram à banca, à área dos seguros, todas estas empresas tiveram de melhorar a sua proteção de dados. Todas estas coisas funcionaram em benefício do que estamos a tentar atingir. Talvez há quatro anos a ferramenta não estivesse pronta, mas a sociedade também não. Toda a gente falava de transparência, mas ninguém estava a fazer nada nesse sentido. Agora toda a gente tem de fazê-lo. Já tivemos pessoas e parceiros a testar a app e o feedback que temos recebido é muito entusiasmante. O próximo passo nesta app é ter tudo consistente. É como no futebol: tens de marcar golos, mas se marcares muitos só num ano, isso não é bom o suficiente.
Estamos a falar da vida de jogadores e de como a AxisStars pode impactá-la. Falando em específico na sua vida, vamos ao início: como é que começou a jogar futebol?
O meu pai era muito fervoroso, ele costumava levar-me a muitos jogos. Eu tinha seis anos quando comecei a jogar. Foi uma escolha fácil, mas eu nunca pensei que seguiria o desporto profissionalmente, a ganhar dinheiro com isso. A partir dos 13, 14 anos, quando me juntei à academia Clairefontaine, foi quando me apercebi, ao jogar com os melhores jogadores, como o Nicholas Anelka e o Thierry [Henry], de que também estava lá. Jogar era motivo de grande entusiasmo, mas quando vi, passados dois anos, que o Thierry Henry estava a ganhar o Campeonato do Mundo [de 1998], foi quando fiquei mesmo motivado a seguir os seus passos.
E foi aí que decidiu ser um jogador profissional.
Mas foi preciso chegar aos 20 anos de idade para eu me aperceber de que tinha responsabilidades, de que tinha um nome de família e que queria representá-lo da melhor forma possível, porque uma pessoa fica muito exposta quando assina por um clube. Tentei estar num bom ambiente e fazer o melhor possível em campo. Apercebi-me, ainda novo, de que a oportunidade estava lá para mim, porque sabia quais as escolhas a fazer para ser bem sucedido. Mas durante a minha carreira achei que devia fazer mais. Não fui capaz de fazê-lo porque tinha medo, e tenho a certeza de que há muitos jogadores na mesma posição, incapazes de se envolverem mais em projetos que queriam fazer porque estão focados na sua carreira, não querem ser expostos pela imprensa. Não é bom. Acho que há grandes oportunidades para fazer muitas coisas, mas ainda não há plataformas para o fazer acontecer num ambiente seguro, para, por exemplo, dar-lhes confiança para prosseguir com a sua educação.
Temos falado de alguns dos problemas que afetam a vida dos futebolistas. Durante a sua carreira, passou por alguma destas questões?
Sim, quando se chega aos 30 anos e se teve a oportunidade de ter uma carreira de uma década, tem-se ótimas experiências, mas também algumas más e outras frustrantes. Apesar de tudo, eu tive uma vida muito privilegiada, não me posso queixar porque alguns dos meus amigos e pessoas que conheço sofreram. Mas, sim, é possível fazer maus investimentos, encontrar as pessoas erradas com os conselhos errados, todas essas coisas acontecem regularmente com alguém que é bem sucedido. Pessoas como o Cristiano Ronaldo, não importa quanto dinheiro recebem, às vezes metem-se em apuros ao conhecer a mulher errada ou o gestor de conta errado, todas essas coisas acontecem. É só uma questão de quão grande é o problema e o seu impacto.
Não digas que sabes como é a vida quando tens 30 anos, porque não é verdade.
E é uma questão de escala? Há pessoas que chegam a um ponto em que fazem tanto dinheiro e são tão bem sucedidas que podem tomar alguns riscos.
Sim. Tomar riscos faz parte do nosso jogo, em campo, mas não podemos fazê-lo da mesma maneira fora dele. Só que [quando saímos] ainda temos a mesma mentalidade, é difícil desligar essa confiança. Tu tens de ser confiante, não podes mostrar quaisquer fraquezas, é uma forma de te protegeres. Em frente de um fã, do teu agente, tens de ter aquela figura, porque não podes mostrar que és fraco, não podes mostrar que não sabes ou que não tens a certeza das coisas. Não és um mestre das finanças, não és um mestre em direito, mas ainda assim queres mostrar que entendes tudo, para não dares parte fraca. É muito perigoso, porque ainda és jovem. Não digas que sabes como é a vida quando tens 30 anos, porque não é verdade.
Esse aspeto de que os jogadores têm de utilizar uma máscara e mostrar que estão sempre preparados vai ao encontro de uma questão premente no futebol atual, que é como é que os jovens futebolistas lidam com a sua saúde mental. Quão importante pensa ser este problema atualmente?
É muito sério. Ainda não se sabe exactamente porque ainda não há números quanto a casos de doença, mas como lhe disse, é muito difícil lidar com a pressão, com a responsabilidade da família. A rotina está sempre em alta, entendes? Alguns jogadores têm a atitude certa. O Pierre-Emerick Aubameyang, para mim, é um bom exemplo, é um tipo que está sempre de sorriso, dá para perceber que ele gosta da sua vida e que faz o melhor possível no campo. Algumas pessoas têm esta capacidade, ao passo que outras ficam muito nervosas.
Sim, tens. Tens o direito a chorar, a falhar, a começar de novo e a voltar à luta.
E como é que se evita ceder perante a pressão?
É uma questão de rodeares das pessoas certas, dos sindicatos te ajudarem, de teres uma aplicação capaz de te falar sobre o tema e não ser tabu. Quando estás mal, quanto te sentes deprimido, é um assunto muito sério. É muito comum, especialmente quando os jogadores se reformam, porque é muito difícil de lidar: não sabem o que fazer, o que os vai entusiasmar, que atividades poderão fazer. O aspeto da reforma do jogador é muito desafiante. Durante e depois da tua carreira, em todos os aspectos, ser capaz de lidar mentalmente com as coisas é, sobretudo, uma questão de educação: tens de compreender que é normal fazeres coisas erradas. É um processo, acontece a toda a gente. Sim, tens. Tens o direito a chorar, a falhar, a começar de novo e a voltar à luta.
Mas essa também não é uma questão do público? Não acha que às vezes há uma pressão desmedida dos fãs ou dos clubes?
Para mim não é uma questão dos fãs. Eles têm o direito de julgar ou criticar os jogadores. É normal. A única coisa que se pede a um fã é que não seja racista ou malicioso, que nos trate como seres humanos. É normal que tenhas sempre idiotas, mas é mais um problema da imprensa. Os media têm o dever de não repetir os clichés de sempre. Quando alguém como o Didier Drogba doa a uma instituição de caridade e outras ações do género, têm de falar sobre isso. Têm de se certificar que a imagem de um futebolista não fica presa às tolices que se ouvem. Aqueles fãs que pensam coisas más dos jogadores apenas o fazem porque eles foram publicitados desta maneira, a caricatura está lá para ser multiplicada nas redes sociais. A imprensa tem a grande responsabilidade de mudar isto. Lá está, somos seres humanos, mas se a imprensa está a dizer diariamente que somos um certo tipo de produto, isso tem impacto.
Recordo o caso de Rahim Sterling, quando ele utilizou a sua conta de Instagram para denunciar o tratamento que ele e outros receberam da imprensa tablóide inglesa. Eu vou juntar a este ponto uma pergunta que lhe queria fazer. No seu livro não teve pejo em discutir assuntos como o racismo no futebol. Recentemente, o seu conterrâneo e jogador do Manchester United, Paul Pogba, foi vítima de ataques racistas online depois de falhar a conversão de uma grande penalidade. Podemos falar do racismo como um problema generalizado ou resume-se [no futebol] a casos isolados?
É um grande problema, porque o futebol é uma grande janela [um grande palco]. Quando se olha para a sociedade, para a influência de jogadores como Pogba, eles têm imensos seguidores. Se eles se focarem em aspetos de cariz social ou político, isso vai ter resultados, vão ser capazes de influenciar muitos jovens. Ter o Pogba a aceitar ataques racistas e a dizer "estou 'ok' com isto, o racismo sempre existiu, não há problema". Não! Assim nada vai mudar! Se o Rahim Sterling não se defender, as pessoas vão assumir que é 'ok'. Vão pensar que às vezes há injustiças e discriminação e normaliza-se isso, seja de que forma for. É preciso entender que a voz dos futebolistas é crucial para haver mudanças. Temos o dever de fazê-lo porque a sua influência nas pessoas pode levá-las a pensar e mudar a forma como a sociedade funciona.
Quando se olha para a Premier League, é um problema bem mais contido em comparação a outros países. Durante a minha carreira fiquei bastante contente com o que foi feito com esta liga, comparado, por exemplo, com o que se passa em França ou Itália. Sim, as controvérsias são diferentes, a história também, todas as pessoas têm formas diferentes de se expressar. Nós entendemos isto. Mas não interessa só compreender, as coisas têm de mudar.
Acha que o ambiente na Europa dos últimos anos tornou-se mais propenso a estes atos de racismo e xenofobia no futebol?
Sim, nos últimos anos tem sido difícil. Eu tenho uma amiga que me disse uma coisa muito relevante quanto a esta discussão, sobre como se criou um ambiente cultural nesta geração em que não há meios-termos, é tudo a preto e branco e é preciso escolher um lado. É assim que as coisas agora funcionam e quando nós, futebolistas, somos expostos na imprensa ou nas redes sociais, se não nos mostrarmos contra uma coisa, estamos a favor dela. Isto é muito difícil porque há questões que demoram tempo a resolver. Vejamos, por exemplo, a homofobia. Eu sou completamente contra, assim como contra o racismo, e às vezes as pessoas precisam de ser educadas durante mais tempo. Demora tempo, não é só fazer uma campanha ou uma conversa ao sábado ou ao domingo depois de um jogo em que algo tenha acontecido, é todos os dias. É preciso dinheiro, é preciso investimento. Há casos que são fáceis de identificar, outros estão enraizados. Neste momento, toda a gente pode sentir uma coisa num dia e no dia seguinte já se esqueceu.
O futebol é mais poderoso do que as Nações Unidas
A propósito desse papel dos futebolistas de que falou, neste evento Soccerex Europe vai participar numa discussão acerca dos jogadores enquanto 'influencers', modelos de influência. Que poder acha que os jogadores têm neste ambiente regido pelas redes sociais?
É gigante. Os jogadores não têm noção — e se tiverem, fazem-no de forma individualista — e essa é uma das coisas que a AxisStars quer mudar. Se eles fizerem alguma ação, queremos criar buzz à volta disso, criar primeiras páginas e histórias [jornalísticas]. Por exemplo, ninguém quer saber das ações de caridade do Cristiano Ronaldo, que é o jogador mais generoso do mundo e nunca está na manchete de nenhum jornal porque fez algo de bom. É sempre por algum coisa má ou pela forma como jogou. Mas eles [os jogadores] têm uma influência massiva, porque se cem milhões seguirem um jogador faz, se o seu papel for lutar contra o racismo... Mas por vezes a sua voz não é levada a sério. A FIFA pode fazer algo, fazer com que os jogadores sejam melhor representados. É fácil falar, mas eu vou tentar fazer o meu papel com a AxisStars.
Vai tomar parte no Soccerex Europe e já esteve noutras edições, em anos anteriores. Qual é a importância destes eventos para o futebol?
São muito importantes, porque quando se trata de inovação, quando se quer melhorar ferramentas de marketing, de comunicação com o público ou em termos de performance em campo, este evento é uma grande oportunidade porque está toda a gente no mesmo local e com vontade de ir mais além, de ser melhor e mais rápida. É muito bom para conhecer as pessoas certas. Já estive em três ou quatro eventos e gostei muito do que vi. Tem melhorado de ano para ano, desde a comunicação às tecnologias empregues, que são de topo. Tudo isto faz deste evento especial e é fácil ver como tem impacto onde é organizado, seja em Miami ou em Portugal. Porque o futebol é mais poderoso do que as Nações Unidas.
Essa é uma frase em pêras.
É, mas quando se vê a pressão que faz, como por exemplo dizer a um país que não vai participar num campeonato do mundo... Acredita, seja qual for o embargo que se coloque num país, seja comida ou outros recursos, ele ainda vai-se aguentar durante seis meses ou um ano até ceder. Mas se interferir com o futebol, isso é super disruptivo.
Por causa do quão popular o desporto é?
Sim, em todo o lado no mundo se pode praticar este desporto, não é preciso sequer ter amigos. Compara com o rugby, por exemplo, onde se não passares a bola para trás, para alguém, não consegues treinar sozinho, Quanto ao futebol, toda a gente já o experimentou, de uma forma ou outra. É por isso que tens tantos seguidores e treinadores de bancada, acham que conhecem o jogo. É muito popular e por isso tem um enorme poder que pode ainda crescer mais, há muito potencial na Ásia, vai chegar a um ponto que temos 4 biliões (mil milhões) de pessoas a ver o jogo.
O Soccerex Europe está a ser organizado em Portugal e, por isso, pergunto-lhe, presta atenção ao futebol português?
Claro. Têm feito um grande trabalho e tem estado melhores que a França na Europa, fico um bocadinho chateado com isso (risos).
Bem, mas vocês ganharam um Campeonato do Mundo.
Sim, é o que digo, na Europa temos de ser melhores! Portugal e o Cristiano Ronaldo... Não é para estar a singularizá-lo, porque o Bernardo Silva tem sido tremendo também. Fico muito entusiasmado por Portugal porque têm jogadores fantásticos, incluindo o melhor do mundo, têm toda a paixão pelo futebol, é incrível. Não estou surpreendido que o Soccerex seja organizado aqui. As academias portuguesas são muito populares na Europa e este é um dos países a que as pessoas estão a prestar atenção. Em termos da equipa nacional, em termos das academias, em termos do esforço que o país tem feito ao longo dos anos para melhorar, tem-me espantado, é óptimo. Só estou preocupado quanto ao Cristiano terminar a carreira, porque é um embaixador tão bom para Portugal e um jogador incrível.
E o jogador português tem sido sujeito a uma grande valorização. Neste defeso, houve o caso de João Félix, mas também de João Cancelo. A que é que acha que se deve esta valorização?
Era o que estava a dizer, esses jogadores são incríveis e vêm das camadas jovens de clubes com o Sporting ou o Benfica, ou até do Guimarães. Estão a despontar. É muito agradável ver que há qualidade, mas também paixão, autenticidade, aquele tipo de identidade. É como os argentinos, nota-se que são muito dedicados. São muito técnicos, mas têm também aquela vontade de ir um pouco mais além de que ninguém está à espera e é muito especial. Eu lembro-me de jogar contra o Quaresma e ele tem a sua própria identidade, a forma como mostra as suas habilidades e a sua felicidade em campo. É assim que vejo a identidade de Portugal.
Ainda no mesmo tópico. Ao longo da sua carreira, partilhou os relvados com muitos futebolistas, mas há um que se destaca e já o referimos várias vezes na conversa. Como foi partilhar balneário com Cristiano Ronaldo? Não era o mesmo jogador que é hoje, ou era?
O mesmo em termos de qualidade, sim. Eu penso que desde jovem idade já estava a treinar para ser o melhor, a tentar marcar mais golos e driblar de forma mais eficiente, ele sempre foi obcecado. Para ser assim tão bom, tens de ser obcecado. Eu não sei o que ele come, ele não é normal. Eu acho que ele antes não tinha grande vida [familiar/social], por isso agora é muito bom ver que ele tem uma bela família, é invejável porque parece ter tudo sob controlo, alguns jogadores têm essa vida, mas não conseguem gerir nada. Ele continua a ter "histórias" escritas sobre ele, mas isso é porque é um grande ícone e isso é difícil de lidar. Ele fê-lo com classe, ainda que não seja um assunto fácil, ele foi confiante o suficiente.
Ele, para mim, deu-nos uma lição, porque este tipo tem tido uma vida mesmo especial — ser capaz de fazer o que fez consistentemente ao longo de duas décadas é incrível. Eu, tendo cruzado caminho com ele quando ele ainda tinha 18 anos e até aos 21/22 anos, podia dizer que antecipava a sua carreira, mas isso seria mentira, porque este tipo chegou a um nível que ninguém imaginava. Marcar este número de golos, para um extremo, seria impossível. Marcar assim tantos a cada época, seria impossível. Vencer troféus para Portugal quando este país ainda tinha um potencial imenso por realizar, mas nunca o tinha feito, seria impossível. Ele fez tudo isto. Estou a falar de coisas impossíveis de imaginar, sem desrespeito para o futebol português, mas ele fez de tudo.
E passando da carreira de Ronaldo para a sua, a maior parte das pessoas identifica-o com o Manchester United, mas jogou em muitos outros clubes. Que retrospetiva faz do seu percurso?
Eu sinto-me muito afortunado de ter jogado em tantos clubes. Um dos clubes especiais para mim foi o Fulham, sinto que a minha carreira começou neste clube, quando me apaixonei pelo futebol inglês. Depois tive a oportunidade de fazer a minha transferência de sonho ao ir para o [Manchester] United. Quando és mais novo e pensas nestas coisas, achas que é inalcançável, mas eu consegui e joguei ao lado de enormes futebolistas, desde o guarda-redes aos avançados. Vencer troféus faz com que cada dia, cada gota de suor, seja mesmo especial, porque vale a pena. Sinto-me muito privilegiado por ter experienciado isto.
Tenho mais orgulho na forma como me reergui do que quando estava a marcar golos por diversão porque era natural ou fácil.
Mas ainda depois do United, ainda prosseguiu carreira, em clubes como o Everton e o Tottenham.
Claro que cada clube ao qual me juntei a seguir já não foi a mesma coisa, mas isso acontece quando chegas a fases diferentes da tua carreira e eu mantive-me sempre apaixonado com o meu jogo. Às vezes importa mais como te sentes a jogar do que a equipa, tinha a ver com o quão profissional e dedicado estava a ser. Acho que sempre fui respeitado, quer estivesse a corresponder ou não em campo, porque os fãs me viam de certa forma, eu nunca me envolvi em lutas e coisas do género. Mesmo se estivesse altamente motivado, sempre me comportei de forma condigna, julgo, e isso foi o elemento mais importante da minha carreira e por isso estou muito orgulhoso. Claro que gostaria de ter vencido mais troféus e de ter marcado mais golos, mas tive tantas lesões que tenho de estar contente, porque quando jogas e passas pelo que eu passei, não tens a carreira que eu tive.
Estávamos há pouco a falar da saúde mental dos jogadores. Tendo em conta as lesões que teve, conseguiu sempre regressar aos campos e voltar a ficar em forma. O que é que foi necessário, mentalmente, para ultrapassar os períodos de recuperação?
Basicamente, tens de ser muito dedicado ao teu trabalho. Eu só quis atingir o nível mais alto quanto possível, fossem quais fossem os desafios à minha frente. Não é só uma questão de seguir em frente, porque quando olhas, por exemplo, e vamos voltar de novo ao caso do Cristiano Ronaldo, ele tem uma visão, ele quer ser o melhor jogador do mundo. À sua frente tem o Messi ou o facto de Portugal nunca ter ganhado um título e coisas assim. Ele vai ter períodos em que vai estar em baixo — se é o Messi que ganha a Bola de Ouro e não ele, por exemplo —, mas é a forma como recupera que interessa. Basicamente, na minha carreira aconteceu o mesmo. Tenho mais orgulho na forma como me reergui do que quando estava a marcar golos por diversão porque era natural ou fácil. Eu aprendi muito assim, e a forma como o fiz foi ao ser muito honesto comigo mesmo.
De todos os títulos que venceu - das Premier League à Liga dos Campeões — há um que para mim que se destaca que é o que Wayne Rooney lhe deu, considerando-o um dos melhores parceiros de ataque que já teve. Que qualidades é que o avançado deve ter para ser bem sucedido?
Essa declaração é incrível, vinda de um jogador como o Rooney. Quando se olha para uma parceria, basicamente é preciso ter empatia. Quando se a tem em abundância, o teu parceiro olha para ti e pensa "eu sei como te estás a sentir". Se estiveres cansado, ele corre por ti. Se ele subir no terreno, tu desces. Se ele controlar mal a bola, tu recuperas e fazes um passe melhor da próxima vez. Essas eram as qualidades do "Wazza" e, basicamente, durante o período que jogámos juntos, éramos iguais. Se ele não estivesse a ser forte pelo ar, eu tentava ganhar todas as bolas, mesmo não sendo assim tão alto, para tentar dar-lhe uma oportunidade para marcar golos. Numa jogada, eu guardava a bola até ele estar disponível. Eram coisas assim. Tem a ver com olhares para o teu parceiro e perceberes quais as suas forças e fraquezas e compreenderes a sua forma de jogar.
Falámos de jogadores com quem partilhou o campo, mas no que toca a treinadores, há um que vem consistentemente à baila e que é Sir Alex Ferguson. Como foi trabalhar com ele?
Tudo isto que disse ao longo desta entrevista foi influenciado por ele. Ele tem uma forma inteligente de te ensinar coisas sem te aperceberes, tem uma forma de te desafiar sem tu te aperceberes, ele consegue conferir-te a confiança de que precisas para fazeres o que for que te seja pedido no clube. Se lá estás, é porque tens qualidades e tens de acreditar em ti. Mas ele também me falou do desafio de ser consistente. Não é sobre apenas mostrar as tuas qualidades quando as coisas estão a correr bem, é quando ficam difíceis. Ele passava-nos estas ideias com os seus discursos, dizia-me para acreditar quando as coisas estavam difíceis, para voltar ao ginásio ou para trabalhar para melhorar todos os dias. Nenhum título é suficiente, não, é preciso estar sempre a fazer o melhor.
E falando no trabalho do treinador, há muitos jogadores que se dedicam a essa área ou ao comentário quando se reformam. Já considerou estas duas opções?
Sim, é uma possibilidade quanto eu terminar a minha jornada com a AxisStars. Bem, eu nunca vou terminá-la, mas quando tiver mais tempo para fazê-lo, vou considerar, porque eu importo-me muito com o ato de dar de volta.
Está a falar quanto a ser treinador?
Treinador, diretor desportivo... algo do género.
Como um veterano do jogo, que conselhos daria aos jogadores a despontar?
Aquilo que eu daria como conselho aos mais novos é serem autênticos com eles mesmos, não serem levados por ninguém senão pela sua própria paixão. Eu era apaixonado e queria ser melhor, por isso sabia que tinha de trabalhar mais. Obviamente, quando estava lesionado, a ver os meus colegas a jogar, eu tive de trabalhar mais arduamente no ginásio, para me certificar que, quando voltasse, estaria melhor do que antes. O que eu fiz de todas as vezes que me lesionei até me reformar foi isso. Quando olho para as minhas estatísticas e quantos jogos joguei, alguns com dores porque não estava completamente recuperado, vejo que ainda assim marquei golos e tenho orgulho nisso.
No dia em que se reformou, no seu 35.º aniversário a 8 de agosto de 2013, agradeceu a todos aqueles que o apoiaram ao longo dos anos e escreveu: "Sou um homem orgulhoso, mas sem todos vós não serei mais eu". Desde então, até agora, como é se sente quanto ao que atingiu na vida pós-futebol?
Tenho mais orgulho no que estou a fazer agora do que naquilo que fiz na minha carreira. Porquê? Porque está para lá daquilo que imaginava, está a exigir mais sacrifícios do que aqueles que alguma vez fiz e, ao mesmo tempo, ensinou-me bem mais do que aquilo que estava a fazer. A reforma, como mencionaste quanto estávamos a falar acerca da saúde mental, tem sido dura porque me apercebi do quanto me faltava aprender. Ao desafiar-me, descobri mais coisas em mim do que alguma vez o fiz.
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