O artigo que se segue toca nas franjas da fábula da formiga e a sua especial relação com o verão.
O SAPO24 conversou com três desportistas portugueses que escolheram a prática de desportos de inverno. José Cabeça, esqui de fundo, Jéssica Rodrigues, patinagem em velocidade no gelo e João Farromba, hóquei no gelo.
Nasceram todos em Portugal. Os dois últimos vivem em território nacional, mas o primeiro optou por passar temporadas fora das fronteiras lusas (alternadas com a passagens por Portugal), algo que não é novo no seu caso. Já tinha saído por compromissos profissionais, mudou de continente e dedica-se agora, de alma e coração, a tempo inteiro aos esquis nos pés.
Falaram sobre o que fizeram no verão para preparar as competições que decorrem na neve e no gelo. Todos necessitam dessa circunstância da natureza para treinar. Mas a forma sólida da água não existe em abundância em Portugal de forma a que consigam e possam fazê-lo. A pedra na engrenagem, no entanto, nunca os impediu de cumprirem treinos, em especial no verão, quando começam a preparar as provas de inverno.
José Cabeça, o alentejano na neve norueguesa
Em 2020, José Cabeça, nascido e criado na planície de Évora, no Alentejo, decidiu calçar uns esquis. O atleta de triatlo (chegou a integrar a seleção nacional no ano passado) atirou-se para o cross country de esqui e, de seguida, para o esqui de fundo, modalidade que o levou à estreia nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022.
A conversa estava programada para versar sobre a preparação de verão, mas José Cabeça virou o ano ao contrário. “Depois dos Jogos Olímpicos 2022, tenho passado os invernos em Oslo, com o meu treinador Ragnar Bragvin Andresen”, indicou.
“Resolvi a questão da falta de neve”, confessou ao SAPO24 o personal trainner (PT), cuja vida profissional o levou, num passado recente, até ao Dubai, país onde até muito recentemente treinava numa pista indoor de gelo em pleno deserto arábico.
Assinalado o detalhe, recua até ao verão. Para essa altura do ano encontrou uma solução para o problema que enfrentava, quer em Portugal, quer no Dubai. “Treino com Roller Skis”, aponta.
“Esta época de verão foi a primeira em que me foquei a 100% nos Roller Skis. Estive dois meses na Noruega e um mês em Itália, e nesse mês em Itália estive duas semanas a treinar com a Seleção Nacional da República Checa, país cujo técnico da equipa A é o meu treinador”, detalhou. “Tive o prazer de me juntar ao training camp e foi uma mais-valia treinar com atletas profissionais”, reconhece, José Cabeça, também ele “100% profissional”, realça de olhos postos nos Jogos Olímpicos de 2026.
Explica o que é. “É uma versão de verão do esqui, uma espécie de patins adaptados em que se usa as mesmas botas que se usa nos esquis e os mesmos bastões”, descreve.
A preparar as taças do mundo que se avizinham, 14 ao todo, competição onde será o “primeiro português a fazê-lo”, o alentejano, de 26 anos, diz ser “praticamente impossível treinar em Portugal”.
No entanto, quando passa pela cidade que o viu nascer, Évora, elege uma estrada municipal como campo de jogos preferido para manter a forma. “Treino na zona industrial ao pé da antiga Embraer e na estrada da Valeira que liga a Arraiolos e a Montemor, uma estrada mais calma”, assinalou. “Mas mesmo aí, às vezes torna-se perigoso porque as pessoas não têm respeito e, por isso, tento ao máximo ir para sítios onde estes desportos são respeitados como Noruega, Suécia e Itália”, disse.
Da Madeira, saber mudar os patins do cimento para o gelo
A madeirense Jéssica Rodrigues, além de vários títulos nacionais, é vice-campeã da Europa de patinagem de velocidade em patins em rodas. A patinadora do CDR Prazeres, da Calheta, na Madeira, acumula uma modalidade que se divide em dois modos (em rodas e no gelo), e calça e descalça diferentes patins conforme a temporada em que compete, de verão ou de inverno.
O nacional de clubes de patins de rodas terminou em outubro. No mês seguinte passou do piso de cimento para o de gelo. E começou a preparar outra competição, a patinagem de velocidade no gelo, modalidade onde obteve a sexta posição na prova nos Jogos Olímpicos de Inverno da Juventude Gangwon 2024.
“Não temos gelo em Portugal, e muito menos na Madeira”, sorriu. Estende o calendário anual e preenche os meses. “A época de inverno, de gelo, arranca em outubro (venceu a Taça de Portugal em All Around, prova que se realizou em Heerenveen, nos Países Baixos) e termina em março.
A época de rodas começa em janeiro e acaba em dezembro, "é o ano normal”, explica.
Exalta a sorte de ter na Região Autónoma da Madeira uma pista (CDR Prazeres) para treinar o ano todo. A infraestrutura serve de berço de treinos a Jéssica Rodrigues e a outros madeirenses que agradecem poderem partilhar os dois amores dos pés, rodas e gelo.
Sair da preparação do cimento para a pista branca obriga a mudar os planos de treino. “Muda quase tudo, literalmente. No gelo, fazemos mais ginásio, mais tempo de bicicleta, mais acelerações. Aqui nas rodas, fazemos também ginásio, bicicleta, mas não é tanto com a mesma intensidade”, detalha.
Continua a falar de mudanças de piso e patins. “Ora estou a competir, e pode estar sol e chuva, ora mudo de superfície e uso uns patins diferentes. É preciso tempo para habituar nesta mudança de chip”, explica, embora possa ser acelerada porque “já sabemos patinar nas rodas, é, vamos dizer, fácil adaptar-se logo ao gelo”, ressalva.
No entanto, “a única semelhança é que usamos patins”. O resto, “a técnica, a posição, tudo é diferente das rodas”, assinala. Avança mais a fundo com uma explicação que pode, à primeira vista parecer contraproducente, mas não é. “A parte física, a impulsão, a velocidade, como é que se atinge numa e noutra disciplina, são iguais, mas diferentes porque os patins não são iguais”, regista o pormenor.
“Ao contrário das rodas, o gelo é uma modalidade que se pratica sozinho, ou seja, nós e o tempo. Enquanto nas rodas temos as outras pessoas, atletas em contacto”, compara a madeirense Jéssica Rodrigues, que deixa para o fim o plano. “Quem participa na seleção nacional faz estágio de duas semanas nos Países Baixos”, onde está atualmente a preparar uma das taças do Mundo, refere.
Na Serra da Estrela falta um companheiro ao João
Não há uma pista de gelo em Portugal, mas tal não impediu João Farromba de vestir a camisola do Hóquei Clube do Porto. O emblema nortenho de hóquei no gelo integra, este ano, a Liga Ibérica de Hockey no gelo.
A equipa portuguesa ocupa a 3.ª posição da prova. Farromba tem a companhia de outro português numa formação a que se juntam atletas vindos de várias latitudes.
Modalidade coletiva, grande parte do treino é, todavia, feito de forma individual na pista 3x3 da Covilhã, cidade natal de João Farromba. A falta de parceiro(s) não afeta, contudo, a vontade do jovem, de 20 anos, da Serra da Estrela, que descobriu há três anos a arte do rasgar o gelo com um stick na mão.
“Tenho uma experiência diferente da maior parte dos jogadores da minha equipa, porque eles moram em países onde o hóquei no gelo é muito mais desenvolvido, há muitas pistas de gelo, muitos ringues”, confronta.
“Quando a pista de gelo da Serra da Estrela abrir, começo a treinar, três, quatro vezes por semana, e treino por mim mesmo, sozinho”, conta. “Faz-se treino, específico, individual. Às vezes, há treinos orientados pelo Jim (Jim Aldred, selecionador nacional) que também é o nosso treinador (HC Porto), mas não é o treino com a equipa toda, não é parte tática, e é só possível trabalhar as mecânicas”, relata.
Quando treina sozinho “acaba por ser só remates e tento aprender a patinar melhor ao fazer alguns exercícios”, ilustra. Nos treinos alargados a jogadores entram os “remates, situação de jogo, e tentamos trabalhar a parte física, fazemos o que podemos mesmo”, suspirou. Falta-lhe a companhia e falta-lhe a situação de jogo real. “Sim, falta sempre”, confirmou, algo só ultrapassado nos estágios.
“É desporto em desenvolvimento em Portugal, temos de dar tempo ao tempo, para tentar haver mais gente, mais infraestruturas e recursos”, reclama, aguardando a construção “na Trofa” da pista com as medidas oficiais.
A competição ibérica já arrancou e o HC Porto disputou todos os jogos fora. “Foi um bocadinho com a casa às costas, digamos assim. Depois jogamos em casa”, rematou.
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