As finais e grandes clássicos sempre chamam a atenção, mas poucos jogos param um país e atraem torcedores de todas as equipas no meio do campeonato. Somente a expectativa de bom futebol é capaz disso. Este sábado, quando o Flamengo recebeu o Santos no Maracanã, foi um desses dias.

É engraçado porque o último jogo muitos se lembram de ter tido o mesmo impacto foi, também, um Santos-Flamengo, quando o duelo colocou Neymar e Ronaldinho Gaúcho frente a frente. A expectativa era altíssima (e acabou por se confirmar num jogão), mas muito diferente do jogo de ontem. O destaque era a qualidade individual de dois jogadores de nível mundial que destoavam da qualidade de todos os outros, dentro e fora das suas equipas. Desta vez, assistimos a um confronto de duas grandes equipas, que praticam um futebol de nível muito superior ao normalmente praticado, na altura, nos campos do Brasil.

Talentos individuais em 2011, futebol coletivo em 2019. E essa diferença é fundamental. Apesar de ambas as equipas (principalmente o Flamengo) disporem de talentos individuais de alto nível, os seus treinadores, ambos estrangeiros e ambos Jorge, fazem-nos ver que dá para jogar mais e melhor do que normalmente se pratica em terras tupiniquins. Treinadores que estão atualizadíssimos nos conceitos mais modernos das ligas de alto nível. O primeiro Jorge, o Sampaoli, pegou numa equipa (Santos) com plantel mediano e rapidamente o fez jogar à sua maneira. O segundo Jorge, o Jesus, herdou um Flamengo com fartura de talento individual e o fez jogar, em pouco tempo, um futebol que enche os olhos de todos no Brasil.

Em campo, sem surpresas. Um jogo bem jogado para 68 mil presentes, muito veloz e intenso. Com Sampaoli tentando mudanças táticas para surpreender e desfazer o domínio do jogo da equipa de Jesus quando joga no Maracanã. Não funcionou. O Flamengo foi superior apesar do alto número de erros de passe (muito em função da marcação forte do Santos), abriu um placar com um golaço fruto do talento de Gabigol e, a partir daí, teve o domínio do jogo e mais chances para marcar. No fim, foi um confronto ao nível a que estamos acostumados a ver na Europa, vencido pela melhor equipa. Porquê? Porque o Super-Flamengo com Jorge Jesus é um fenómeno que pode influenciar a reconstrução do futebol brasileiro, assente em quatro elementos-chave:

1 – Futebol ofensivo sem parar

Jesus não é sempre um treinador super ofensivo. Já o vimos “fechar a casinha” em diversos clássicos ao serviço de Benfica e Sporting. Mas parece que se soltou no Brasil.

Encontrou um plantel recheado de talento ofensivo: Gabriel e Bruno Henrique, atacantes de primeira linha do Brasil, Arrascaeta, maior contratação da história do futebol brasileiro, Everton Ribeiro e Diego, meias de qualidade técnica indiscutível. E ainda vieram Gerson, Rafinha e Filipe Luís. O seu antecessor, Abel Braga, convivia com a dúvida de como encaixar todos juntos e manter o equilíbrio tático e a imprensa discutia com afinco quem deveria ficar no banco. Jorge Jesus destruiu as convicções de todos com a sua resposta. Quem colocar em campo? Todos!

No seu 4-1-3-2, muito parecido com o que sempre usou em Portugal, jogam todos. Diego, lesionado até o fim da época é o único de fora. No meio, o trinco Cuellar foi deixado de lado e William Arão e Gerson armam e desarmam. Everton Ribeiro, Arrascaeta, Gabigol e Bruno Henrique rodam de posição no ataque e criam com fartura. E o melhor, que conquistou a torcida, não para nunca de atacar, fazendo jogos com muitos golos e sempre agradáveis de ser vistos.

E o bom futebol começa pela linha defensiva, sempre alta, e que conta com jogadores acima da média em qualidade técnica, para a sua posição, como o experiente Rafinha, o promissor Rodrigo Caio, o espanhol desconhecido Marí e o vencedor Filipe Luís.

2 – Intensidade, intensidade, intensidade

O último campeão brasileiro, o Palmeiras, sobressaiu na última temporada praticamente revezando dois 11 iniciais. Um para as Copas (do Brasil e Libertadores) e um para o Campeonato Nacional. Foi a forma que encontrou de vencer o desafio do calendário brasileiro, que faz com que as suas melhores equipas joguem mais de 70 partidas por temporada. Parecia ser essa a melhor solução para manter uma equipa intensa durante os 90 minutos e só o Palmeiras tinha plantel para fazer isso sem perder qualidade.

Este Flamengo de Jesus usa outro subterfúgio para refrescar seus jogadores durante as sequências de jogos de quarta e domingo. Fazem uma gestão do plantel inteligente rodando três ou quatro atletas a cada jornada, sem perder qualidade em demasia. E essa gestão trouxe resultados. O clube rapidamente ascendeu à liderança do campeonato e, apesar de ser eliminado da Copa do Brasil, chegou às meias-finais da Libertadores 35 anos depois.

Esse jogo em alta velocidade, com pressão constante em linhas altas, resultou numa vitória significativa por 3-0 precisamente contra o Palmeiras (no início deste mês), num jogo de claro domínio tático, técnico e, principalmente, físico por parte do Mengão.

3 – Boa gestão que recompensa

Isto não é mérito de Jorge Jesus, mas foi, provavelmente, o principal fator que possibilitou a sua contratação. Nos últimos anos, o Flamengo tem feito um trabalho brilhante fora de campo. Arrumou as finanças, diminuiu as suas dívidas e com as maiores receitas do futebol brasileiro conseguiu, finalmente, ter dinheiro em caixa para investir no futebol. Investiu muitos, quase 200 milhões de reais em transferências (cerca de 44 milhões de euros) para uma folha salarial de 15 milhões de reais mensais (cerca de 3,3 milhões de euros).

Com uma faturação projetada de 750 milhões de reais em 2019 (cerca de 165 milhões de euros), o Flamengo está ainda assim muito distante dos 750 milhões de euros do Real Madrid, maior receita do futebol em 2018, mas supera, por exemplo, o Benfica (150 milhões de euros em 2018).

Com mercado reduzido em Portugal e sem oportunidades em grandes equipas europeias, talvez pela questão do idioma, Jorge Jesus encontrou a oportunidade perfeita para liderar um projeto ambicioso e qualificado, num mercado emergente.

4 – A Nação Rubro-Negra

Mais de 30 milhões de torcedores espalhados pelo Brasil. O gigantesco apelo comercial para patrocinadores e a grande cobertura dos media fazem todo o sucesso do Flamengo ecoar ainda mais alto. E Jesus surfa essa onda como poucos. Mediático, irreverente e provocador, continua a entreter com as suas conferências de imprensa.

Uma semana antes do jogo deste sábado, deu uma entrevista para o principal programa desportivo da Rede Globo e ditou as conversas da semana com o seguinte comentário:

– “Em Portugal, seguramente (seria protagonista). Não digo a brincar, mas disputava o título à frente de todos, disparado. Nos outros países, como Inglaterra, não seria da mesma maneira. Mas disputaria entre os seis primeiros lugares. Com os 11 que o Flamengo joga, é muito forte.”

Ótimo para a autoestima do torcedor, mas um claro exagero bem programado da sua parte.

O torcedor do Flamengo está carente de títulos e bom futebol. O brasileiro andava frustrado com as perspetivas do futebol nacional. O bom trabalho no Flamengo tem tornado Jesus numa estrela em rápida ascensão no Brasil. Basta ouvir os gritos da torcida no Maracanã lotado ao apagar das luzes de sábado:

-“Olê, Olê, Olê... Mister... Mister...

Para continuar em lua de mel com a torcida do Mengão, Jesus vai precisar de ganhar títulos. Tem duas boas chances na mão. Mas é com bom futebol que pode ajudar a acelerar o crescimento do futebol do Brasil e se eternizar por lá. Vai ficar tempo suficiente para isso? Vai vencer campeonatos com seis meses de Brasil? Veremos em breve, mas pelo bem do Campeonato Brasileiro, esperemos que sim.

Para alegrar o domingo, fiquem com o golaço de Gabigol que deixou os comandados de Jorge Jesus ainda mais isolados no topo do Brasileirão:

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