Augusto Terceira Silva, o homem que leva no nome a ilha, está pensativo. “É o tempo”, responde. A verdade é que no centro das suas preocupações está o vento. A largada é às 13h00 e as previsões não abonam a favor dos marinheiros. “Era bom era que chovesse, limpava isto”, opina ao seu lado Rodrigo Moreira Rato. Nada. O tempo está nublado, não chove e sol só mesmo de esguelha. Resta-lhes a arte de quem segura o leme, porque nisto da vela há que saber dar um passo atrás para avançar.
Duas boias marcam a linha de partida, atrás delas os barcos andam às voltas e, de quando a quando, ensaiam a largada. Faltam poucos minutos para o tiro de saída da Regata 8 aos Ilhéus que parte da baía de Angra do Heroísmo. Para lá da linha de imaginária, há barcos a motor, miúdos e graúdos, porque a melhor o melhor ângulo para ver a regata não se encontra em terra firme.
Augusto, no entanto, não abandonou a margem. O presidente do Angra Iate Clube é quem comanda as operações. Horas antes celebrava as 52 inscrições na regata, um recorde em 23 anos de clube. Horas mais tarde, sabemos que 42 se lançaram ao mar. Na primeira edição, eram apenas 15 as embarcações.
O Angra Iate Clube nasceu em outubro de 1995, no Porto das Pipas, quando os sócios do clube náutico “se chatearam” porque este era mais virado para a pesca desportiva e não trabalhava com a vela cruzeiro, conta-nos Augusto, que chegou à presidência deste clube por convite. O homem que fez durante nove anos ralis continua a preferir carros a barcos — “tem mais adrenalina” —, mas é ele o garante da prova, telefonema atrás de telefonema, indicação atrás de indicação, até à hora da partida. Já lá vão dez anos ao comando do clube.
A regata 8 aos Ilhéus nasce no ano do arranque, hoje conhecida como Angra Bay Cup. O desafio é, literalmente, fazer um oito contornando os ilhéus das Cabras e o dos Fradinhos, e regressando a casa para um jantar de convívio. 23 anos passados, mantém-se a prova e cumpre-se a tradição. E uma vez que a regata está inserida nos festejos das Sanjoaninas, os convivas têm a oportunidade de seguir celebrando madrugada dentro, entre marchas e tascas, até onde o corpo moído pelo mar o permitir.
Para quem se aventura numa regata, Augusto aconselha “espírito de competição”, mas também “espírito de vela”, porque “às vezes não há vento e o barco tem de estar parado, e tem de se gostar muito, e saber trabalhar, dando sempre ouvidos ao skipper [o capitão da embarcação]”.
12h51. Já seguimos a bordo do semirrigido em que vamos acompanhar a prova, devidamente posicionados para lá da linha de partida, num alinhamento que permite a melhor fotografia, mas com o compromisso de rapidamente sair do meio da passagem. Ao comando da nossa embarcação está Nuno Oliveira, mergulhador profissional e sócio da Deep Blue, concentrado agora nos pedidos de quem segue a bordo com o dedo no obturador.
13h00. É a largada. Há barcos que seguem junto à linha da costa, outros fazem-se ao Atlântico seguindo pelo meio da baía, cada com um sua estratégia, em busca do melhor sopro, porque os motores são só para quem não compete.
A primeira parte da prova consiste em passar pela direita os ilhéus das Cabras, duas “pequenas” ilhas (que em tempos foram uma só) e que se avolumam no horizonte à medida que chegamos mais perto.
Ícones do concelho de Angra do Heroísmo, estes são os maiores ilhéus dos Açores e gozam de estatuto de Zona de Proteção Especial. A rocha maior (ilhéu Grande), a nascente, tem 147 metros de altura e, além de várias furnas, tem uma grande câmara vulcânica; já a menor, batizada de ilhéu Pequeno, tem 84 metros de altura.
Com uma área equivalente à de 29 campos de futebol e uma linha de costa que se prolonga por 3.239 metros, os ilhéus são separados por um canal com cerca de 200 metros de largura. Diz-se que um submarino alemão encontrou aqui refúgio, durante a II Guerra Mundial, contra os ataques de submarinos americanos.
Já a lenda em volta dos ilhéus é outra, uma história de desamor que acabou em desterro. Reza a lenda que Fernão de Hutra, um jovem do Faial, se enamorou por uma freira e tencionava raptá-la. Sem sucesso, acabou por ser forçado a sair da Horta e foi encaminhado para Angra. Mas também lá o mancebo se enamorou de uma das filhas do alcaide-mor. Resultado? Fernão de Hutra acabou por ser levado para os ilhéus, tendo ficado desterrado por sete anos. Olhos que não veem…
Meia hora de regata e o vento faz-se rogado, as velas perdem o balão e a velocidade abranda, é chegada a hora da paciência para os velejadores, já para nós é uma boa desculpa para dar a volta aos ilhéus, esses gigantes de pedra à escala de quem os aborda a bordo de um semirrigido. Nuno Oliveira, agora menos preocupado com o comando do barco, dá-nos a conhecer alguns dos melhores locais para mergulhar na Terceira.
Para os menos experientes, na baía de Angra é possível fazer um mergulho com cerca de oito metros de profundidade e, ali mesmo, encontrar um barco de 1878 que naufragou quando fazia a travessia entre Portugal e o Brasil. “O barco já está muito destruído, mas ainda se consegue ver a parte da proa e a popa. Era um barco de transição entre a vela e o vapor, e ainda tem as características de ambos: vê-se a parte da caldeira e dois mastros que estão partidos”, conta-nos Nuno, ele que já leva mais de três mil mergulhos e que se lembra de estar ligado ao mar desde os seus doze anos.
Com águas muito ricas, a fauna e a flora semelhante em toda a ilha, variando porém o tamanho e a variedade das espécies que se podem encontrar. “Nas baías mais abrigadas vamos ter os peixes mais juvenis e em maior quantidade, nas zonas mais profundas vamos os ter peixes maiores, mas em menos quantidade”, explica.
Meros, cavacos, lagostas, abróteas, peixe-cão, salemas, bicudas, barracudas, e a lista segue. Uns ficam curiosos quando se fazem bolhas, outros são mais assustadiços e “assim que percebem que não é peixe, metem-se a andar”.
Além da baía, é possível fazer mergulhos noturnos ou visitar os túneis criados pela lava que escorreu e solidificou nas Cinco Ribeiras. Há ainda um caneiro de corais moles, mas isso é já para mergulhadores mais experientes, uma vez que o mergulho ronda os 40 metros de profundidade.
Os meses fortes são de junho a outubro e no resto do ano a Deep Blue ocupa-se a dar formação e a desenvolver atividades complementares mais direcionadas aos locais. Para a indústria crescer, diz Nuno, era preciso ter mais gente no setor: “Temos três empresas a operar, sendo que uma ainda não tem barco. Neste momento damo-nos todos bem, o que é bom, mas também era bom existirem mais centros de mergulho”, diz.
Interrompe-se a conversa pelo que no horizonte se avista. Dois golfinhos fazem as delícias de quem segue a bordo do semirrigido e chegamos mais perto, para ver, filmar e fotografar. Para estreantes, como é o nosso caso, por momentos se volta a ser criança: ali, tão perto, sem vidros a impor a separação. A visita foi rápida, mas o obturador também.
Regressamos a terra pelas 15h52, a maioria das embarcações já enlaçou o ilhéu dos Fradinhos e dirige-se à meta, mas o vento continua a embalar o passeio sem dar gás à regata. Não há mal, há comes e bebes a bordo, famílias inteiras e grupos de amigos que tiraram a tarde para fazer da competição um exercício de partilha e convívio. Contas feitas, é esse o verdadeiro primeiro prémio da Angra Bay Cup.
Mas já no clube espera-nos Miguel Simões, de 32 anos, que trocou a regata pelo sonho de conduzir navios barra adentro. A conversa, porém, não podia começar se não com o sopro que escassa lá fora.
“Não se inventa vento, pode-se é trabalhar o barco de muitas maneiras, mas inventar vento não vai ser fácil, pode-se até rogar aos santos todos…”
Mas, cuidado, porque há preces e preces, e os santos às vezes podem exagerar na bênção. “Numa regata Angra (Terceira) - Velas (São Jorge) -Angra, quando o clube ainda fazia esta prova, no regresso o meu pai pediu à Nossa Senhora da Boa Viagem um euro de vento, e o vento começou a crescer. E depois um outro sujeito que estava no barco connosco disse: ‘Nossa Senhora, eu dou cinco euros de vento’. Acontece que o vento cresceu tanto que a embarcação, que se chama O Refrega, partiu o mastro aqui na entrada da baía de Angra.”
Porque o vento quer-se como tudo na vida, ou seja, o quanto baste. “O vento é amigo quando vem com aquele q.b, e é mau quando é tanto que começa a partir material. E na minha profissão, o material é caro. Depois é aquela velha história: é ferro contra e cimento e ver quem aguenta mais… normalmente é o cimento”.
“O que nós fazemos [os pilotos de barra] é auxiliar os comandantes a entrar e sair dos portos. Em alguns países são os pilotos de barra que fazem a operação, em Portugal não, somos auxiliares. O piloto embarca no navio, fala com o comandante e explica o porto. Já ele explica-nos o navio — porque cada navio é um navio, e é por isso que os ingleses tratam os navios por ‘ela’ e não por ‘ele’. E a gente percebe, as mulheres têm um feitio mais especial”.
E quando lhe perguntamos se se recorda de alguma situação mais espinhosa, é rápido no gatilho: “lembro-me, sim. Ainda estava em estágio. Era um petroleiro e estava um dia magnífico, e havia um bocadinho de excesso de confiança. O meu colega estava em conversa com o comandante e vice-versa, e eu dei uma ordem que não foi a mais correta. Por isso é que temos seis meses de estágio, apesar de eu ter andado sete anos ao mar isso não significa que saiba tudo, muito menos em navios de 100 metros. E nesse dia o navio não tocou no cais porque não quis, passou talvez a um metro.”
Miguel sempre soube o que queria: “as manobras é aquilo que mexe comigo. Quando é um navio novo quase que não durmo no dia anterior a pensar no que vou fazer, em como vai estar o vento. Fico nervoso, mas não posso mostrar", diz.
"Eu comecei a entrar nesta coisa do mar aos cinco anos porque o meu pai era treinador de vela. Depois entrei nas regatas com ele em barcos de amigos, e o que me dava gozo era quando chegávamos ao Porto de Pipas para atracar: o vai não vai, dá à ré, não vai dar, pum! Bateu, azar [risos]. Então, o desejo de ser piloto de barra nasceu aqui no Porto de Pipas, a ver os navios manobrar”.
E foi assim, de manobra em manobra — entre conversas sobre quem vive de e para o mar — que a Angra Bay Cup chegou ao fim, com o Soraya a cruzar a meta em primeiro lugar, seguido do Aphorodite e do Yermad. Tudo nomes no feminino. Sim, até podem ser eles a segurar o leme, mas o pódio é "delas".
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