Crickhowell é uma pequena cidade do País de Gales, com cerca de 2.800 habitantes. No ano passado, ficou conhecida por anunciar que ia ser a primeira localidade a usar as mesmas tácticas de fuga aos impostos utilizadas pelas empresas multinacionais, no programa televisivo "The Town That Went Offshore", emitido pela BBC2 a 20 de Janeiro passado. O movimento iniciou-se após Crughywel, do nome em galês, ter evitado a compra de um "pub" local por uma cadeia de supermercados. Segundo o Wales Online, a estratégia juntou 180 pessoas na aquisição do "pub" por 500 mil libras em Novembro passado.
O documentário televisivo demonstrou como era possível a empresas locais de uma pequena cidade usarem os mesmos subterfúgios fiscais das multinacionais, com algumas empresas de Crickhowell a criarem uma "offshore" na ilha de Man - um paraíso fiscal inglês situado entre a Irlanda e a Inglaterra, com taxação praticamente nula -, com ligações a uma outra entidade criada na Holanda.
A ilha de Man foi escolhida por a rede Caffé Nero ter ali a sua sede para efeitos fiscais - e um dos principais dinamizadores da iniciativa Fair Tax Town Scheme em Crickhowell ser o dono do café local. Mas outras multinacionais foram visadas.
O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, foi convidado para participar num debate público no festival Hay, que decorre de 26 de Maio a 5 de Junho na região. O objectivo é questionar como o Facebook pagou menos impostos relativamente a um trabalhador inglês. "Nenhum homem inteligente poderia defender-me por pagar oito vezes mais do que os impostos do Facebook", disse Steve Lewis, proprietário do Number 18 Café, em Janeiro passado ao jornal The Independent, quando um político lhe pediu para moderar a campanha antes dela atingir níveis nacionais.
Em Novembro de 2015, o jornal francês L'Humanité explicava como as cadeias de cafés praticavam esta "injustiça fiscal". Elas apresentam "resultados negativos em todos os países da Europa há anos, mas um resultado global muito benéfico. Cada estabelecimento Starbucks ou Caffé Nero paga a uma primeira filial, baseada na Irlanda, pelo menos 20% dos seus resultados em termos de propriedade intelectual (pela utilização da marca e do conceito). Nesta ilha, os benefícios ligados aos 'royalties' não são impostos. Cada café deve em seguida comprar obrigatoriamente as suas matérias-primas a um levado preço numa outra filial muito rentável. É assim que a Suíça, país muito generoso em termos de impostos sobre os resultados, se tornou líder europeu na venda de grãos de café..."
Em resultado disso, "a Starbucks é deficitária em França como no Reino Unido, pelo que ali paga muitos poucos impostos, mas tem um benefício líquido global de mais de dois mil milhões de euros".
Copiar estratégias para embaraçar governos
A campanha Fair Tax Town também teve percalços. Steve Lewis avançou para um cargo na administração da HM Revenue & Customs (HMRC), a entidade tributária do Reino Unido, explicando no site da campanha que ia desistir de membro fundador para se focar nos abusos das multinacionais, pressionando-as a "pagarem impostos justos, expor as suas práticas e deixar o público julgar as suas verdadeiras intenções como cidadãos corporativos".
Lewis considera que "replicar" o modelo das multinacionais "não é uma opção", optando pela luta por um lugar na administração da HMRC, que deve vagar este mês, com a anunciada saída de Lin Homer, que obteve uma grande indemnização com a promessa de não ocupar cargos que possam "embaraçar ministros". Uma petição online para Lewis ocupar o cargo conseguiu mais de 140 mil assinaturas. "Enquanto eu pago 20% dos lucros do meu café em impostos, muitas grandes cadeias de cafés usam falhas legais para evitarem impostos ou negociarem com a HMRC para reduzirem a sua taxa de impostos para 0%", clarificou Lewis.
Ele considera que a HMRC deve "parar de ajudar as multinacionais a reduzirem as suas facturas fiscais e começar a trabalhar para o público britânico e as pequenas empresas britânicas a terem impostos justos para todos - grandes e pequenos", disse ao This Is Money. Lewis quer alguém na HMRC que entenda os "cidadãos normais ou os pequenos negócios". Além disso, quer promover a revelação e a negociação públicas dos acordos entre multinacionais e governos para uma menor taxação fiscal.
Jo Carthew, da empresa local de alimentos fumados Black Mountains Smokery, também explicou ao Financial Times que "o conceito que criámos pode demonstrar como, em princípio, as pequenas empresas, trabalhando em coligação, se podem tornar mais eficientes em termos fiscais ao copiarem estratégias usadas pelas multinacionais".
O dono da padaria, Steve Askew, considerou que o objectivo da campanha era embaraçar as grandes empresas e o governo, considerando que qualquer pessoa deve pagar impostos, mas "o que as pessoas não aceitam é a injustiça". Disse ainda, ao The Independent em Novembro passado, que "queremos pagar os nossos impostos porque todos usamos escolas e hospitais locais mas desejamos uma mudança da lei para que todos paguem a sua justa parte".
Também Irena Kolaleva, proprietária da empresa de serviços ópticos, explicou à BBC Radio Wales que pretendiam "chamar a atenção para o problema. É muito simples. Se uma empresa está baseada neste país e emprega pessoas neste país, que pagam os impostos neste país - pessoas normais que são taxadas -, porque usa subterfúgios legais pagando os seus imposto fora?"
Respostas são complexas
Um crítico da evasão fiscal através destes esquemas, Richard Murphy (conselheiro do trabalhista Jeremy Corbyn), compara a situação como se se fosse "protestar sobre o crime urbano indo cometer crime urbano" - é "irresponsável", considerou. No entanto, neste país, "tanto nas campanhas eleitorais de 2010 e 2015, cada partido prometeu reprimir a evasão fiscal, e ainda assim ela continua", com perdas nas receitas de impostos, explicava a Vice em Janeiro passado. "Parece muitas vezes que o contribuinte comum é totalmente impotente para fazer alguma coisa sobre as empresas que evitam os impostos, o tempo todo a serem forçados a pagar cada cêntimo da sua própria factura fiscal ou a enfrentar sérias consequências".
No início de Abril, Paul Heywood, professor de políticas europeias na universidade de Nottingham, colocava uma questão semelhante na The Conversation: se os Panama Papers não revelam quase nada de novo e sabendo-se que isto ocorre há várias décadas, porque se foi tão ineficiente a prevenir o problema? As respostas são "inevitavelmente complexas", mas ele aborda três factores para explicar "um dos maiores falhanços políticos nas recentes décadas".
Primeiro, se a corrupção existiu desde o pós-Guerra Fria, só no início dos anos 90 do século passado se constatou ser "endémica nos antigos estados comunistas e no mundo em desenvolvimento", contribuindo para a sua conceptualização e posterior erradicação ou controlo pelos estados ocidentais. Heywood considera que estudos da Transparency International ou do World Bank mostram uma "clara correlação entre os elevados níveis de desenvolvimentos sócio-político e económico e os baixos níveis de corrupção". Mas esses trabalhos focam-se num modelo desactualizado de corrupção (no pagamento de luvas, por exemplo), quando a mesma engloba diferentes níveis, desde sofisticadas redes transnacionais a um nível mais local envolvendo poucas pessoas.
Em segundo, e relacionado com a anterior falha, considera que o combate à corrupção ocorreu mais ao nível de estratégias nacionais mas não transnacionais - isto quando os Panama Papers demonstram serem "precisamente as operações transnacionais que são quase impossíveis para os estados de gerirem individualmente".
Por fim, questiona a generalização do termo, comparando o uso de "combate à corrupção" a um genérico "combate à doença". Não faz sentido, diz, devendo-se especificar que tipo de corrupção é, onde, quem está envolvido e as suas motivações ou que sectores estão implicados, entre outras considerações.
Super-ricos acima da lei
O próprio World Bank foi acusado em Abril passado pela ONG inglesa Oxfam de emprestar dinheiro para projectos na África subsariana a empresas que usam "offshores", diminuindo o nível de transparência na gestão dos subsídios. A acusação foi negada pelos responsáveis da International Finance Corporation (IFC), a entidade privada de financiamento do banco.
A IFC acusou a Oxfam de "trabalhar na ideia errada de que as jurisdições 'offshore' são inevitavelmente usadas para evasão fiscal". Frederick Jones, porta-voz da IFC, declarou: "há usos legítimos para estruturas 'offshore'". O problema é que a protecção destes paraísos fiscais e a fraca revelação dos seus segredos é enorme. E muito passa pelos chamados gestores de fortunas, que dão a cara para esconderem a dos seus clientes.
Em Outubro de 2015, na revista The Atlantic, a socióloga Brooke Harrington explicou como foi ameaçada ao confrontar um desses gestores de fortunas nas Ilhas Virgens britânicas, lembrando a sua sorte perante o trabalho da jornalista Leah Goodman. Esta preparava um trabalho para a revista Newsweek em 2013 sobre a ilha de Jersey, acusando-a de crimes fiscais, entre outros, e acabou impedida de re-entrar na ilha ou mesmo no Reino Unido durante alguns anos.
Para Harrington, na sua análise aos gestores de fortunas que facilitam a existência de negócios em "offshores", o que descobriu no decorrer do estudo "não foi apenas uma visão sobre a realização da grande desigualdade crescente da riqueza em todo o mundo. Havia também algo maior, e ainda mais preocupante: um domínio da fantasia libertária tornada real, em que a intervenção profissional tornou possível às pessoas mais ricas do mundo ficarem livres não só das obrigações fiscais mas de quaisquer leis que considerem inconvenientes".
Estes super-ricos "estão acima da lei" e isto é "potencialmente muito perigoso", considera. Harrington clarifica que não é a posse do dinheiro que permite este estado das coisas "mas a aplicação do conhecimento financeiro-legal", pelo que é necessária a contratação dos tais gestores de fortunas para os elucidarem sobre a melhor forma de sigilo e desconhecimento geral para a aplicação dos seus bens - legais ou não - e para garantir que essa riqueza "se mantém na família, geração após geração".
Este conhecimento não beneficia a população local do Panamá. Um recente artigo da Al Jazeera demonstrava como os benefícios de uma sociedade baseada em ricos "offshores" não chegavam aos pobres do país. Dos quase quatro milhões de habitantes (com quase metade na capital Panama City), 12,7% de pessoas vivem em zonas rurais e a pobreza nesse segmento chega aos 70%, com a probreza extrema a atingir os 40%, com enormes falhas no acesso a água, cuidados de saúde e de sanidade.
Apesar de ter registadas 214 mil empresas, segundo os Panama Papers, e de ser um dos países com maior crescimento económico (6,2% no PIB em 2014, apontam dados do World Bank), a população local não beneficia das "offshores".
A muitos milhares de quilómetros, Crickhowell descobriu que pode tentar mudar esse mundo.
Foto: © Crown copyright (2011) Visit Wales
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