As contas de Mário Centeno têm dominado a atualidade, ou não fosse o Orçamento do Estado um exercício de fiscalidade que mexe com os bolsos de todos os portugueses. O documento será discutido e votado na generalidade a 29 e 30 de outubro. A votação final global está agendada para 29 de novembro. No SAPO24 desafiámos dois economistas, professor e ex-aluna, direita e esquerda, duas visões para o país, a juntarem-se ao debate.
Do corporativismo, aos impostos que se dizem cegos, mas têm a ambição de ser corretivos, passando pelos incentivos ao setor empresarial e pelo impacto do valor das propinas no acesso ao Ensino Superior. Mais do que uma conversa, um debate moderado por Isabel Tavares e estimulado pelas perguntas dos espetadores.
Das taxas e taxinhas ao corporativismo endémico
Cerca de 3,5 mil milhões em “taxas e taxinhas” ou, mais especificamente, em juros, coimas, penalidades e impostos indiretos, que acabaram por ser o mote para o arranque deste debate, transmitido em direto no passado dia 19 de outubro, na semana em que o país ficou a conhecer a proposta do governo de António Costa para o próximo ano.
Os impostos indiretos, como não são progressivos, recaem sobre todas as famílias da mesma forma. No entanto, "os impostos de que estamos a falar — como o imposto sobre o açúcar — tem um caráter corretivo”, diz Susana Peralta quando confrontada com o facto de estes impostos indiretos serem “cegos” porque não têm em consideração os rendimentos dos contribuintes.
“Até podemos dizer que [estes impostos indiretos] tem um lado de esquerda quando vemos que o consumo de substâncias que fazem mal à saúde tem um enviesamento social: não são as pessoas mais educadas e com maiores rendimentos que têm consumos menos conscientes”, justifica. “As pessoas, ao fazerem esses consumos nocivos, não estão apenas a impor um custo à saúde delas, mas também à sociedade”, conclui.
César das Neves mostra-se menos confiante de que o ministro das Finanças esteja muito preocupado com a saúde dos portugueses e salienta que “é verdade que os impostos diretos são os únicos que tomam em conta a justiça social”, mas escusa alongar-se no tema para colocar, desde logo, o dedo naquela que considera ser a ferida deste orçamento:
“Penso que o principal problema deste orçamento é que estamos a espremer a economia portuguesa até ao limite, e para quê? Para repor pensões e salários. São esses os propósitos e, isso sim, é injusto, porque está uma grande quantidade de portugueses a pagar para que meia dúzia de grupos tenha estes benefícios. Além de um aspeto muito pior, que é o facto de os problemas reais da economia portuguesa não passarem por este orçamento”, diz o economista. “Este orçamento é ótimo, tendo em conta aquilo que politicamente se podia fazer, mas se olharmos para o que o país precisa este orçamento é muito mau. O orçamento tem duas faces”, sentencia.
Susana Peralta contrapõem: “Não me parece que este governo das esquerdas seja corporativista, mas antes democrático. Não houve apenas um aumento de rendimento dos funcionários públicos e pensionistas. Por exemplo, temos a eliminação da sobretaxa para todos os trabalhadores, aumentos em várias outras prestações, como o rendimento social de inserção e, acima de tudo, criaram-se 40 mil empregos. Este não foi um governo que deu só dinheiro a funcionários públicos e pensionistas”.
Mas para João César das Neves “há grupos na sociedade que têm uma representatividade muito superior e grupos silenciosos” que o governo não ouve, provocando um enviesamento. “Os nossos sindicatos neste momento estão enquistados em certos setores e falam em nome de apenas alguns trabalhadores. Nesse sentido, e só nesse sentido, os sindicatos são uma força contra a democracia”, defende.
“Não compro a ideia de que os sindicatos tenham mais influência do que as corporações dos patrões”, responde Susana Peralta, para quem “os sindicatos são absolutamente fundamentais para a qualidade da democracia”.
Mas ser corporativista, do ponto de vista político, não é inteligente? A pergunta é de Isabel Tavares. “Não é inteligente porque estão a matar a galinha dos ovos de ouro. Só é possível manter este nível de pensões e salários se a economia continuar a crescer. Se estamos a destroçar a economia só conseguimos fazer um brilharete durante uns tempos, mas na primeira curva do caminho rebenta tudo”, responde João César das Neves. “Isto consegue aguentar-se enquanto tivermos o vento pelas costas, mas face a uma qualquer recessão Portugal continua a ser dos países mais frágeis da Europa”, acrescenta.
E este será, ao longo do debate, o ponto central do discurso do professor e economista na Universidade Católica Portuguesa, para quem os últimos três anos foram uma oportunidade perdida para fazer mudanças estruturais na economia portuguesa, de forma a torná-la mais robusta.
“Este governo conseguiu evitar um colapso em 2016 e foi uma sorte extraordinária porque a economia virou exatamente no momento em que era preciso. Mas isso não dura. (…) A máquina do Estado é a mesma. Centeno está a conseguir reduzir o défice sem nenhuma reforma estrutural: ele está a apertar drasticamente em certos aspetos, cortando despesas sobretudo nas áreas das tais famosas cativações. Isto é pôr uma cinta, não é fazer dieta. E assim que houver um tropeço isto rebenta tudo outra vez”, diz.
Para o economista “devia ter-se investido nas empresas, porque quando as empresas produzem mais, as pessoas recebem mais. Se promovermos o crescimento das empresas temos crescimento na economia, para as famílias e para o Estado. Mas nada [nos orçamentos deste governo] está virado para isso. Olhando para Portugal não faz sentido dizer que o importante é dar rendimentos às famílias em vez de resolver os problemas das empresas”, defende.
Menos crítica, Susana Peralta considera que o exercício orçamental para o próximo ano não falha com as empresas. “Há várias medidas a favor das empresas, desde o apoio ao reinvestimento dos lucros, passando pelo regime fiscal de apoio ao investimento, pelo reforço do programa capitalizar, até microprogramas de apoio ao empreendedorismo. Este orçamento tem várias medidas dirigidas ao tecido produtivo, o João Luís [César das Neves] é que tem uma visão da economia de que dar rendimentos às famílias não é contribuir para o crescimento da economia. (…) Por outro lado, continuamos a ter um tecido empresarial em que muitas empresas não têm capacidade de investir. Por muitas linhas de crédito que sejam colocadas ao dispor, se as empresas não estiverem a aderir…”
“Tem de ser a prioridade, não pode haver outra”, contrapõe o economista.
Aumento do salário mínimo: um incentivo ao emprego ou um crime?
Ainda no domínio das empresas, mas com o foco nas suas obrigações para com os trabalhadores, o debate recentra-se em torno do salário mínimo.
César das Neves começa por clarificar que não defende salários baixos, mas é contra uma subida artificial de salários. “Não se pode subir o salário mínimo sem estudar [as suas consequências]. Não se pode brincar com com os pobres. E quem trata das questões relativas ao salário mínimo nunca foi ver a situação dos pobres. O nosso salário mínimo é dos mais altos em percentagem do salário médio e quando aumentamos esse salário mínimo é criminoso: o problema não é se aumenta o desemprego, mas antes que tipo de desemprego gera, que é o das pessoas mais frágeis, com mais dificuldade em encontrar emprego”.
Susana Peralta ressalva, porém, que “o aumento do salário mínimo leva ao aumento do emprego”. “O salário não é a forma de combater a pobreza, mas temos de ter os salários mais saltos possível e depois devemos ter políticas de apoio aos pobres”, defende, dando com exemplo medidas promovidas por este executivo como o reforço do abono de família, a política de acesso a manuais escolares gratuitos para alunos que frequentem a escola pública nos anos de ensino obrigatório, além dos projetos no âmbito da habitação. “O que melhora a situação dos pobres é a política”, defende, salientando que “há algumas evidencias de que em Portugal há excesso de poder por parte de algumas empresas, o que contribui para manter os salários baixos”.
Dos manuais gratuitos à redução das propinas
Se em muitos dos aspetos que dizem respeito à política do governo de António Costa os dois economistas não chegam a consenso, o mesmo não se pode dizer quanto à anunciada redução de 212 euros anuais nas propinas do Ensino Superior. O problema é outro: continua a faltar financiamento ao Ensino Superior.
“Estudos no Reino Unido mostraram que o aumento das propinas não prejudicaram o acesso de alunos com menos rendimentos ao Ensino Superior porque esse movimento foi acompanhado de um aumento das bolsas e do acesso ao financiamento”, exemplifica Susana Peralta.
“Quando o Estado baixa as propinas não está a dar a universidade de borla, está a tirar-nos o dinheiro de outra maneira”, alerta César das Neves, acrescentando que “esta medida prejudica o sistema porque as universidades têm menos dinheiro e isto reflete-se no serviço prestado. É uma medida que enche o olho e é de facto prejudicial”, sustenta. “As pessoas que podem pagar a universidade, que paguem. E quem não pode pagar que tenha acesso a bolsas”, defende.
Novamente menos crítica, Susana Peralta não vê a redução da propina necessariamente como algo prejudicial, mas salienta que “o que conta para o acesso ao Ensino Superior é o financiamento, seja através de bolsas, seja através de empréstimos que devem ser indexados a rendimentos futuros. As propinas não são a verdadeira questão e o governo ainda não conseguiu negociar condições de financiamento ao Ensino Superior, e isso sim é catastrófico”.
O número “mágico” da despesa
Não existe. Mais uma vez de acordo — pelo menos em parte — Susana Peralta e João César das Neves lembram que não se pode olhar para a despesa (92 mil milhões de euros, 50% da riqueza produzida em Portugal) isoladamente.
“Não há um número mágico, um nível ideal de despesa, o que interessa é ver se a receita compensa a despesa. Neste momento andamos à volta dos 45/47% do que é produzido no país”, diz.
Ainda assim, para César das Neves, os portugueses pagam demais face àquilo que o Estado providencia. “A despesa do Estado somos nós que pagamos e nós pagamos muito face ao que recebemos do Estado. Isso é que é um desequilíbrio”.
Mas Susana Peralta contrapõe: “Não concordo. Temos um Serviço Nacional de Saúde que tem várias limitações mas vai funcionando, temos uma escola pública que é hoje motor de ascensão social, temos um país seguro, temos um setor público que nos dá os serviços absolutamente fundamentais. Claro que não nos podemos contentar, mas em 40 anos de democracia conseguimos colocar isto em prática”. Porém, defende que o setor público “precisa de uma cultura de avaliação de políticas. Nós temos é de avaliar o que funciona. O que quero é que com esta mesma despesa possamos fazer muito melhor”.
O veredicto
Contas feitas, Susana Peralta preferia fazer menos com mais. “Eu penso que este Orçamento do Estado tem coisas a mais. Apesar de ser de continuidade — e eu ter dificuldade de dizer que é eleitoralista — parece-me que, ainda assim, continuamos a pecar por ter um orçamento árvore de natal. É um orçamento que peca por excesso de medidas. Eu tornaria este orçamento mais assertivo, mais simples, talvez reduzisse para metade as medidas, mas não reduzia a despesa”.
Já César das Neves vê neste exercício orçamental para 2019 mais uma oportunidade perdida. “Perdemos o período de crescimento da economia para não fazer nada. Perdemos a oportunidade de fazer mudanças significativas para estarmos menos frágeis no futuro. Estes anos tivemos o vento pelas costas, com a economia mundial a crescer. Foram condições excelentes para se poder fazer alguma coisa e não se fez. Vamos fazê-lo outra vez quando já não for fácil”.
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