Primeiro os factos, sem muitos pormenores, uma vez que toda a gente tem seguido em tempo real. E todos sabemos mesmo os factos futuros, que já se está mesmo a ver: os israelitas vão matar centenas, milhares de habitantes de Gaza, à procura de erradicar os membros do Hamas entre eles.
Mas então, no dia 7 de Outubro, uma data festiva em Israel, comandos do Hamas atravessaram com buldozers as barreiras que separam Gaza de Israel e centenas entraram de carro, a pé, pelo ar (com paragliders) e por mar, ao mesmo tempo que milhares de rockets eram lançados contra várias cidades israelitas.
Há anos que o Hamas lançava rockets de vez em quando e que pequenos grupos provocavam incidentes - nada que se compare com o volume e organização deste ataque. Em poucas horas já se contavam mais de 900 mortos israelitas e calcula-se que 150 tenham sido raptados. Nos dias seguintes começou a saber-se de atrocidades horríveis; crianças decapitadas, famílias inteiras executadas e queimadas vivas, violações e torturas. E começou imediatamente um contra-ataque das IFD, as forças armadas israelitas, com bombardeamentos e movimento de tropas em direcção a Gaza.
Há décadas que Israel não sofria um ataque tão maciço nem tinha tantas baixas, sobretudo civis.
Em dois pontos toda a gente concorda: foi um ataque completamente inesperado e as consequências podem ter um nível muito mais amplo do que aconteceu naquele pequeno espaço.
Quanto ao inesperado, é sabido que o Mossad é o melhor serviço de informações do mundo e monitoriza electrónica e pessoalmente cada milímetro de Gaza - telemóveis, deslocações, tudo o que mexe. Como foi surpreendido, não se percebe. Ao ponto de se pensar que sabia e não quis agir - mais sobre isso, adiante.
Quanto às consequências, envolvem evidentemente a situação geo-política na região, mas também noutros teatros de guerra e pontos de atrito no mundo. Mais sobre isto, adiante também.
100 anos de disputa da Terra Santa
Talvez valha a pena lembrar os movimentos da História que levaram à situação permanentemente explosiva no Médio Oriente. Este massacre não é original; já houve outros, cometidos tanto por israelitas como muçulmanos.
A península da Arábia foi dividida em vários reinos árabes pelo tratado Sykes-Picot de 1916. Perante a inevitabilidade do fim do Império Otomano, os vencedores, Grã-Bretanha e França, com a concordância de russos e americanos, dividiram a península e o norte de África em zonas de influência inglesas e francesas e escolheram chefes tribais - sheiks - para serem os seus capatazes. Assim nasceram a Síria, o Iraque, o Líbano, a Arábia Saudita, Emirados e Jordânia - mais a oeste o Egipto e o Irão, e mais a norte a Arménia, que ficou para os russos, mas isso agora não vem para o caso.
Nesta determinação arrogante e francamente mal informada sobre os povos da região, ficaram sem país os curdos e os drusos e, como é costume nestas divisões feitas a régua e esquadro num salão diplomático europeu, certas tribos foram divididas por vários países, dando origem a minorias instáveis. A região da Palestina, que não tinha uma tribo dominante - era basicamente uma região semi-deserta habitada por pastores e agricultores de subsistência - ficou sob mandato da Grã-Bretanha. Também ficaram de fora os judeus, embora já existisse o Movimento Sionista. Contudo, em 1917, o primeiro-ministro britânico, Balfour, declarou ao líder da comunidade judaica inglesa, Barão Rothschild, que a Palestina estava destinada a ser um estado judeu, sem um compromisso formal de data ou fronteiras.
Na altura, os ingleses podiam prometer o que quisessem; a terra era deles e esperavam uma veneração agradecida dos sheiks que os tinham ajudado a expulsar os turcos otomanos e agora eram agraciados com países independentes.
Os países recém-criados evoluíram de formas diferentes. O Iraque, a Síria e o Egipto tornaram-se repúblicas laicas, por exemplo. Aos poucos, todos foram sacudindo a tutela dos seus criadores, às vezes de forma violenta. Em geral considera-se que a revolta egípcia do coronel Gamal Abdel Nasser, em 1952, marca o fim do neo-colonialismo paternalista dos europeus.
Entretanto, acabada a II Guerra Mundial, em 1945, os judeus que tinham escapado ao genocídio nazi (mas que também já eram exterminados na Polónia e na Rússia antes da guerra, é bom que se diga), resolveram que estava na altura de voltar para casa e construir um estado seu na região de onde tinham emigrado séculos antes - a Palestina.
Começaram a chegar em barcos atulhados de gente, para grande incómodo dos ingleses, que não esperavam um problema daqueles numa região semi-desértica sem matérias-primas estratégicas.
Este momento é importante, porque marca a decisão dos judeus de não serem mais vítimas e reagir com violência à perseguição. Como os primeiros imigrantes eram maioritariamente socialistas, constituíram comunidades cooperativas igualitárias, os kibutzes. Os árabes que por ali andavam foram empurrados, despossuídos das suas terras e, em várias ocasiões, abatidos sumariamente. Quanto aos ingleses, que tentavam manter um simulacro de soberania, viram-se alvo de sangrentos atentados terroristas, até que se fartaram e, em 1948, abandonaram a região.
A solução dos dois Estados
A 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas, aprova uma resolução que endossa a implementação do plano de partilha da Palestina entre um estado árabe e um estado judeu que substituiria o mandato britânico na região em 1948. Em 14 de maio de 1948, Israel declarou-se um país independente, com Ben Gurion, líder da Organização Sionista Mundial e presidente da Agência Judaica para a Palestina, como primeiro-ministro. Começou bem: no dia seguinte à proclamação do estado de Israel, as nações árabes vizinhas invadiram o novo país.
A Jordânia manteve o controlo da região de Jerusalém - no West Bank (margem ocidental) do rio Jordão - e o Egipto conservou a faixa de Gaza e a península do Sinai. Os países mais a sul da península arábica, como o Iraque e a Arábia Saudita, estando longe da região, não se interessaram pela situação. Não gostavam nada dos judeus, mas não os tinham à porta. E quanto a ajudar os palestinianos, não viam qualquer utilidade.
Quem apoiou imediatamente Israel foram os Estados Unidos. Uma razão foi o facto de não terem nenhum aliado na região; a outra terá sido que os milhares de judeus que tinham emigrado para a América, e que entretanto se tinham tornado um lobby poderoso, queriam a sobrevivência da sua pátria bíblica. Até hoje, não houve um único presidente ou político proeminente norte-americano, republicano ou democrata, que não tenha proclamado alto e bom som o seu total apoio à causa israelita. Forneceram os primeiros armamentos aos israelitas, subsidiaram-nos com milhões a fundo perdido, e até lhes perdoaram quando roubaram os planos da bomba atómica, em 1966.
A Europa também não queria hostilizar Israel (afinal, são mais “ocidentais” do que os árabes...) e até hoje gasta milhões de euros a manter os palestinianos vivos, com alimentos e remédios. Aliás, a ajuda ao povo palestiniano tornou-se uma “cause célebre” entre a esquerda europeia. Poderá ser por um certo sentimento de culpa, mas será mais provavelmente porque entretanto os israelitas têm tratado os palestinianos como os nazis os trataram a eles. Até houve um intelectual europeu que disse: "É incrível como, numa geração, os judeus passaram de vítimas a algozes!” Foi imediatamente atacado por anti-semitismo. Os judeus, o “Povo Escolhido” mais racista do planeta não admite críticas à maneira como trata os palestinianos, embora a extrema-direita israelita, que actualmente está no poder, os considere sub-humanos. Até os confinou num enorme campo de concentração: a faixa de Gaza, com 30 quilómetros de comprimento e dez de largura, tem dois milhões de habitantes sem acesso de qualquer tipo ao exterior. Nem sequer podem pescar no seu mar. Uma espécie de Gueto de Varsóvia em escala industrial.
Como é que sobrevivem? Tudo o que consomem passa através de túneis escavados entra a península do Sinai e a faixa de Gaza. Os egípcios fazem um bom negócio e fingem que não vêem.
Os países muçulmanos nunca desistiram de destruir Israel; alguns, como o Irão (que não é árabe), nem reconhecem a sua existência como estado. Desde a fundação, em 1947, contam-se 15 guerras ou incidentes militares sérios, sendo as mais famosas a Guerra dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (data anual mais sagrada no judaísmo) (1973). Israel ganhou-as todas, acrescentando progressivamente mais território.
A vitória de 1967, contra uma coligação dos exércitos do Egipto, Síria e Jordânia, deu-lhes o restante da Palestina histórica (o lado oeste do rio Jordão), a faixa de Gaza, Jerusalém, os montes Golan na Síria e a península do Sinai.
Posteriormente ajustaram estes territórios segundo os seus interesses estratégicos. Abandonaram a península do Sinai para o Egipto - em parte porque é militarmente difícil de manter, em parte porque não faz parte da Israel bíblica que é, obviamente, o seu objectivo final. Nos montes Golan estabeleceram mais de trinta colonatos (“settlements”). Na Transjordânia (o tal West Bank) têm vindo a seguir uma política de expansão de colonatos, criando um emaranhado de áreas suas e áreas ainda na posse de camponeses árabes. Sobretudo depois da vitória da coligação de direita, em 2022, o governo tem incentivado a criação e colonatos e sancionado a violência dos colonos contra os árabes.
À parte as guerras propriamente ditas, Israel tem praticado, ou sancionado, a violência contra os palestinos. Ficou famoso o massacre de milhares no Líbano, em 1982.
Houve um período em que parecia que este problema interminável teria uma solução. Foi em 1978, quando o presidente Carter organizou um encontro em Camp David com Yitzhak Begin e o presidente egípcio Anwar Sadat. Embora os líderes palestinianos se tivessem recusado a participar, o acordo foi considerado um passo muito positivo para a solução do problema. Em 1982, o líder da organização dos palestinianos (OLP), Yasser Arafat, fundador da Al Fatah em 1959, mudou de opinião, o que deu origem ao Acordo de Oslo em 1993, organizados pelo presidente Clinton e assinados por Yitzhak Rabin (então primeiro-ministro israelita e que seria assassinado anos depois), Shimon Peres (então ministro dos Negócios Estrangeiros e que seria presidente de Israel anos depois) e Yasser Arafat, líder da OLP. Os três receberiam o Prémio Nobel da Paz, em 1994, pelos esforços em construir a paz no Médio Oriente.
As negociações de Oslo não fizeram mais do estabelecer um percurso possível para a solução do problema que tinha sido aprovada logo em 1947 pela ONU e que é conhecida até hoje como a “Solução dos Dois Estados” (“Two State Solution”). Parece a única solução lógica, justa e possível de estabelecer a paz na região - desde que os muçulmanos reconheçam o facto consumado da existência de um Estado de Israel. Como o nome indica, implica formar dois países, um judaico, outro muçulmano, ambos com soberania sobre os seus territórios e com uma convivência normal.
Uma história impiedosa a que não sobreviveram Yitzhak Rabin, Anwar Sadat e Yasser Arafat
Então, porque é que esta solução não é realizada? Essa é a pergunta de mil milhões de dólares, ou, mais acertadamente, de mil milhões de interesses conflitantes.
A disputa tem a ver, objectivamente, com os territórios que seriam governados pelos dois estados; e subjectivamente pela intolerância das facções radicais dos envolvidos e dos países muçulmanos da região.
Israel, pelo seu lado, nunca abdicou, embora sem o dizer declaradamente, do seu sonho de reconstruir o estado bíblico dos tempos do Antigo Testamento. Quanto aos muçulmanos, não estão dispostos a ceder um centímetro de território da Península Arábica, que acham que lhes pertence desde que os judeus abandonaram a região, a chamada diáspora, entre os séculos VIII e XI.
Não será coincidência que os principais defensores activos da Solução dos Dois Estados tenham morrido prematuramente; Yitzhak Rabin, assassinado em 1995 por um radical sionista, Anwar Sadat, vítima de um atentado em 1981, e Yasser Arafat, envenenado em 2004.
Para impedir esta solução, em 2005 o então primeiro ministro Ariel Sharon retirou todos os colonatos judaicos da faixa de Gaza, uma operação muito contestada em Israel, uma vez que parecia um recuo, mas que na realidade permitiu isolar a faixa do mundo em volta, criando um gueto sem recursos - um cadinho de germes revolucionários. Assim, foi fácil para os serviços de informação israelita ajudarem na formação de um movimento radical no território, o Hamas, e promover eleições para esse movimento liderar o território, em 2007, separando-o efectivamente da Cisjordânia, que era governada pelo mais moderado OLP, hoje dirigido por Mahmoud Abbas.
Com o movimento palestiniano dividido por cinco organizações que competem entre si, a solução dos dois estados ficava completamente inoperante.
E assim chegamos ao momento actual.
Quanto à violência das execuções do Hamas, que lembram a selvajaria do Isis/Daesh, evidentemente que não são aceitáveis, mas têm um contexto. Há décadas que há violência inaudita de parte a parte. Além dos massacres sabidos e dos não noticiados, centenas de crianças morrem e milhares são subnutridas na faixa de Gaza. O desemprego atinge os 85%. Ou seja, os militantes do Hamas são criados na brutalidade e respondem sendo brutais contra os abastados, bem nutridos, cultos e civilizados vizinhos do outro lado da barricada, que os tratam pior do que aos seus animais de estimação.
Quanto às razões que levaram a esta incursão suicida, também há considerações a fazer.
Uma pergunta se impõe logo à partida: quais são os objectivos do Hamas? Não será destruir Israel, que sabem ser impossível. E não será proteger os seus, que não duvidam que serão objectivo de uma retaliação formidável.
"Para a vítima, o terror é o que está a acontecer. Para o terrorista, é o que vai acontecer a seguir"
Vale a pena ler as considerações do historiador Timothy Snyder:
“Para a vítima, o terror é o que está a acontecer. Para o terrorista, é o que vai acontecer a seguir. O terror pode ser uma arma dos fracos, concebida para levar os fortes a usar a sua força contra eles. Pretendem criar uma situação emocional em que as acções auto-destrutivas são a única escolha urgente. Os terroristas podem parecer bestas enlouquecidas; no entanto por mais espontâneo que seja o crime, foi planeado com antecedência. Parte do plano é causar raiva e excesso na reacção do agredido.
Os norte-americanos caíram nesta armadilha no ataque às Torres Gémeas. Foi bem sucedido, porque eles próprios o transformaram num sucesso. O objectivo principal era enfraquecer os Estados Unidos. Se não tivesse havido o ataque, os americanos não teriam invadido o Iraque, uma decisão que causou a morte de dezenas de milhares de pessoas, ajudou a financiar o crescimento geopolítico da China, enfraqueceu as leis internacionais e desfez a credibilidade dos Estados Unidos. O 9/11 foi a causa de decisões norte-americanas que provocaram mais mortes do que o próprio 9/11 e causaram mais estragos ao país do que o acontecimento em si. (…) É um caso clássico: o terrorista faz algo que provoca muito mais sofrimento entre os seus, o que resulta numa simpatia por eles.”
Outra questão que se presta a especulações é quem beneficia de facto com o ataque do Hamas.
O Irão, que aliás ajudou o grupo de várias maneiras (planeamento, apoio logístico, armamento) torna assim quase impossível a aproximação Israel/Arábia Saudita que estava em andamento. Reforça a sua posição junto dos diversos grupos radicais que dirige, nomeadamente o Hezbolah, no Líbano, que poderá lançar um ataque a norte de Israel nos próximos dias. A resposta violenta de Israel reforçará todas as alianças do Irão na região e afastará ainda mais os muçulmanos do estado judaico.
Benjamin Netanyahu também beneficia; suspendem-se as acusações judiciais contra ele, reforça o seu governo radical e une os israelitas à sua volta. Recebe a simpatia internacional e o apoio incondicional dos Estados Unidos (exagerado, até; para que serve um porta-aviões contra o Hamas?) Por causa das vantagens enormes que tira da situação é que se criou a teoria (não comprovada) de que os serviços secretos israelitas sabiam do ataque e não o impediram.
Os russos também beneficiam, indirectamente, ao desviar as atenções do mundo da sua “operação militar especial” na Ucrânia.
Nas inúmeras peças do (des)equilíbrio mundial, alguma coisa mudou.
Há que levar tudo isto em consideração. As dúvidas são muitas e prestam-se a todo o tipo de teorias. Uma coisa é certa: todos perdem, incluindo - ou principalmente - os dois milhões de palestinianos encurralados na faixa de Gaza.
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