Os motivos desta diferença persistente entre as duas metades da Alemanha são complexos e merecem uma reflexão. Contudo, como sabemos a propósito de qualquer fenómeno social, as explicações para um comportamento podem explicá-lo, mas não o justificam apenas contrariam um bom senso sempre desejado e nunca alcançado.

Depois da derrota nazi, oficialmente em Maio de 1945, a potencias vencedoras dividiram o território em quatro zonas administradas pela Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e União Soviética, com o entendimento de que se tratava de uma situação provisória. Todos reconheciam que a Alemanha voltaria a ser um país “normal” e que o “castigo” a pagar pela sua beligerância não podia ser tão esmagador como em 1918, que ultimamente levara ao ressentimento que incubou o Nacional Socialismo de Hitler.

Com a derrota, milhões de alemães ficaram prisioneiros e campos onde se fazia a triagem entre os criminosos de guerra e os que simplesmente tinham cumprido as suas obrigações patrióticas, militares e militantes. Os principais responsáveis foram julgados e executados, os outros condenados a penas de prisão correspondentes à sua participação individual.

Contudo, imediatamente, isto é, logo em 1945, a atitude das potências ocupantes divergiu bastante. Do lado dos ocidentais desenvolveram-se várias políticas tendentes a incluir alemães na nova ordem política (calcula-se que, na década de 1950, mais de 30% dos funcionários federais tinham sido membros do partido Nacional Socialista) e em criar organismos estatais que começassem imediatamente a reconstrução.

Na zona ocupada pelos soviéticos criou-se uma definição muito mais ampla do que era ser nazi e procedeu-se à prisão de milhares e exclusão da vida pública de centenas de milhares. Execuções, muitas.

(O evoluir da situação nas duas alemanhas é demasiado complexo para detalhar neste texto. Quem quiser saber em pormenor basta ir aqui e aqui)

Em 1949 as três potências ocidentais retiraram-se do país e formou-se a República Federal, uma democracia parlamentar multi-pardidária do tipo ocidental, dirigida por alemães, e dividida em 16 estados federais com órgãos próprios, à semelhança dos sistemas norte-americano, brasileiro e indiano, entre outros. Nos tratados de Postdam e Paris (1947) estabeleceu-se uma dívida quase simbólica a ser paga aos vencedores - que só foi liquidada em parte - e, em geral, procurou-se que a nova República Federal se integrasse económica e politicamente naquilo a que chamamos o “modelo ocidental” de democracia independente e auto-suficiente.

Na República Democrática o processo seguido pelos soviéticos foi completamente diferente. Muitas fábricas foram desmontadas e enviadas para a União Soviética e não se reconstruiram as estruturas básicas, mantendo o país numa espécie de limbo pré-industrial. O Partido Comunista alemão formou uma ditadura e o exército soviético continuou estacionado no país. Os alemães orientais passaram a ser vigiados e perseguidos por um aparato policial político ainda mais brutal do que o nazi, apoiado pela presença do KGB russo - foi precisamente nesse KGB que Putin começou a sua carreira política.

Entretanto, em 1950, começou o período que conhecemos como Guerra Fria (termo inventado pelo financeiro norte-americano Bernard Baruch e estabeleceu-se a divisão entre os países sob influência - isto é, dominados politica e militarmente - da União Soviética e os países ditos “livres”, dentro da esfera das democracias ocidentais.

(Talvez seja a altura de recordar que essa divisão, feita sem consulta das respetivas populações, foi decidida na reunião de Yalta, em Fevereiro de 1945, quando Estaline, que não teria ganho a guerra sem a ajuda dos aliados, sobretudo dos norte-americanos, teve a esperteza de comer as papas na cabeça a Winston Churchil e Roosevelt. Mas isso é outra história.)

Os primeiros tempos da Guerra Fria foram apimentados pela disputa em torno de Berlim. A antiga capital do Reich ficou mesmo no meio da zona soviética, depois Alemanha Democrática e, ambas as alemanhas disputaram durante anos o direito de a considerarem sua capital, ao mesmo tempo que os comunistas isolaram a cidade, que teve de ser abastecida por uma ponte aérea. (Berlim continuou a capital da FDA e a RFA escolheu Bona)

Estaline chegou mesmo a propor a unificação da Alemanha em 1952 - a famosa “nota de Estaline” mas nessa altura os aliados já tinham aberto a pestana e perceberam que se tratava de uma manobra para impedir que a Alemanha Federal se integrasse na ordem ocidental e abria caminho a que se tornasse uma Alemanha “Democrática” alargada. Além disso, nessa altura a reunificação da Alemanha, ainda em construção, não era uma prioridade de Londres ou Washington.

Não vamos aqui entrar nos rocambolescos e trágicos acontecimentos que marcaram a vida da Alemanha Democrática durante as décadas que precederam a implosão da União Soviética, em 1989. Nas escolas ensinava-se russo e marxismo-leninismo. A polícia política, Stazi, era ainda mais intrusiva e brutal do que o aparato repressivo nazi.

Dezenas de milhares de alemães de Leste fugiram para o “paraíso capitalista” que entretanto se tinha tornado a Alemanha Federal, ao ponto do partido comunista, então dirigido por Honnecker, ter mandado construir o famoso “muro de Berlim”, em 1961, que na realidade se estendia por toda a fronteira, de norte a sul, isolando os quatro estados que tinham tido a infelicidade de ficar “do lado de lá”: Mecklenburgo, Brandenburgo, Saxónia, e Turíngia. Milhares de pessoas foram mortas ao tentar atravessar a salto para o lado ocidental e muito mais milhares foram presas. A população diminuiu de 19 para 16 milhões, entra a baixa taxa de natalidade e as deportações forçadas para a União Soviética e a Polónia.

As cidades não foram reconstruidas nem as indústrias renovadas. Segundo muitas opiniões, a Alemanha Democrática tornou-se o país mais comunista de todo o bloco delimitado pela “cortina de ferro” - termo inventado por Winston Churchill em 1946 .

E assim, saltando por muitos pormenores interessantes, chegamos aos tempos presentes. Em 2013 foi fundado em Berlim o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), com base no descontentamento com o fraco desenvolvimento da antiga Alemanha Oriental - culpa do capitalismo predador da Ocidental - a imigração e com a defesa de valores muito próximos do nazismo. Xenófobo, anti-eslamista e anti-semita, o partido foi imediatamente considerado neo-nazi, denominação que nega, embora exiba símbolos e ideias muito próximos da iconografia e ideologia nazis. Criou-se, por consenso, um cordão sanitário à volta da AfD; todos os partidos alemães, dos conservadores aos ecológicos e esquerdistas, recusam-se a fazer qualquer tipo de acordo com aquilo que consideram uma aberração política ultrapassada.

Mas os factos são indesmentíveis: a AfD tem ganho cada vez mais votos e, de uma formação marginal em 2013, passou a ganhar eleições municipais e a aumentar a sua força nas eleições estaduais - ao ponto de neste domingo ter ganho as eleições da Turíngia (com 32,8%) e ficado em segundo na Saxónia (com 30,7%). A próxima eleição é em Brandenburgo, onde também é dado como certo uma vitória ou segundo lugar.

Vejamos em particular a Turíngia. A AfD ganhou 32 dos 88 lugares no parlamento, deixando para os partidos tradicionais da democracia alemã (democratas-cristãos/CDU, sociais-democratas/PSD, socialistas e verdes) com um míseros 56 parlamentares. Vão ter de se unir de qualquer maneira para conseguir a maioria funcional de 45 lugares. Mas a CDU recusa-se a trabalhar com a esquerda. E aconteceu outro inesperado, um novo partido chamado Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), fundado em Janeiro por uma ex-comunista, suficientemente narcisista para dar o seu nome a um programa original: de direita em imigração e cultura, de esquerda em gastos sociais, anti-americano e pró-russo.

Wagenknecht, tendo opiniões definidas, é difícil de definir. Nasceu em Jena (antiga Alemanha Oriental) de mãe alemã e pai persa. (Não posso de deixar de me espantar com a constante mundial de os filhos de imigrantes serem anti-imigração, mas isso é outra história.) Continuou comunista depois da queda da RDA, não antipatiza com Estaline e acha que a RDA não pode ser considerada uma ditadura. Considera-se uma alternativa para a “esquerda caviar” que vive numa “bolha cosmopolita longe da classe trabalhadora.”

Pessoalmente é atraente, mesmo chique, admira a personalidade original de Frida Khalo (marxista, lembre-se) e não se importa de ser chamada de “Madonna do neo-comunismo” e “Rosa Luxemburgo da República Alemã”. É pró-Putin e considera que a Guerra da Ucrânia é culpa da NATO. Aspira a ir para Berlim, mas por ora contenta-se com o protagonismo rápido obtido na Turíngia.

A questão é que, num futuro já à vista, os partidos tradicionais podem ter que colocar uma mola no nariz a aliar-se com ela para travar a AfD. Ou pode ela aliar-se com a AfD e varrer os tradicionais. Resumindo, é mais uma carta no baralho tarot da política alemã, e uma carta bastante difícil de interpretar.

Se olharmos para o mapa, os estados com forte presença da AfD e da nascente BSW constituem exatamente os estados da antiga Alemanha Oriental. Ou seja, há aqui um fenómeno sócio-geográfico impossível de ignorar. Podem alegar-se as razões a que já referi: sub-desenvolvimento industrial, emigração dos melhores para a Alemanha Federeral, sentimento de abandono por Berlim, nacionalismo mórbido motivado pela imigração. Mas não pode de se deixar de considerar estranho que estas regiões, que sofreram estados brutalmente autoritários desde 1933 até 1989 - quase 60 anos, duas gerações - não se sintam confortáveis num contexto democrático. Será que o autoritarismo fascista (fascista ou comunista, vai tudo dar no mesmo) é viciante? Será que o que as pessoas querem mesmo é que alguém decida por elas a sua “procura da felicidade”?

Temos outros casos semelhantes, como a Rússia, que desde a Catarina só foi um democracia durante dois anos (1989-2000), ou a China, que passou dos imperadores omnipotentes e do ditador Chang Kai-Check para Mao Tse-tung. Para esses o argumento (discutível) é que a extensão do território e a variedade de etnias não permite governos humanistas. Mas não será o caso da Alemanha Oriental, um país relativamente pequeno e homogéneo.

Como disse acima, a explicação da origem de um facto não o elimina nem o justifica.

Podemos apenas acrescentar que a natureza humana é um enigma que não a tem favorecido muito...