Temos a triste condição de saber que morremos. Pior, sabemos que o corpo irá definhar, porventura criar dentro de nós doenças que não controlamos. Na verdade, se a questão é o controlo, então estamos mesmo à mercê do acaso, porque não se controla nada, é apenas uma ilusão à qual nos agarramos, para sentir que temos algum poder. A doença tira-nos tudo isso.
A imobilidade, a dependência de terceiros, a incapacidade de se ser inteiro, como diria o poeta, é um mergulho na fragilidade e, tantas vezes, no medo. O medo de morrer é transversal a todos nós, não acredito muito quando oiço dizer: Ah, não tenho qualquer problema com a morte. Ninguém é indiferente ao fim. E, acima de tudo, ninguém quer ter de lidar com a traição do corpo.
O medo de morrer é transversal a todos nós
Existem palavras que se tornaram tabus: cancro, tumor e outras deste género ou da família. Os portugueses são apologistas da juventude, não somos como outros povos, na sua maioria orientais, que têm uma veneração quanto à experiência de vida dos mais velhos, respeitando a sabedoria e o caminho.
Em Portugal, a idade pesa. Para as mulheres mais do que para os homens, porque, já se sabe, uma mulher “envelhece pior”, dizem por aí. Mas as mulheres duram mais. E são elas, maioritariamente, as cuidadoras das famílias. Sim, há excepções. Escrevo esta frase para calar já meia dúzia de almas, dirão que o não sei quantos tomou conta da mulher com cancro e da mãe com leucemia. Sim, existem homens cuidadores, não são a maioria, mas existem.
Em Portugal, a idade pesa
Ser cuidador de alguém, que está incapaz de fazer a sua vida de forma autónoma, é um emprego a tempo inteiro. Representa um enormíssimo desgaste emocional. É viver em tensão permanente devido a coisas que podem, até, parecer insignificantes: serão as fraldas do tamanho certo? Será que o/a consigo levar à casa de banho? E agora, se escorrega no banho? Estas e outras perguntas preenchem os dias de quem cuida.
A solidariedade existe
Quando se chega a um hospital público e um enfermeiro despe a bata profissional, e diz que compreende, que vê a exaustão, que é óbvio que assim não é possível, há uma certa comoção. Assisti a um episódio destes há dias. A solidariedade existe. O que não existe é uma cultura e uma educação que nos preparem para o que envelhecer pode significar, e para o facto de os cuidadores serem voluntários – ironicamente, demasiadas vezes com sentido de obrigação incutido até à medula – que acabam por viver presos na mesma redoma. Não estão doentes, mas estão doentes. Fragilizados.
A pessoa cuidadora precisa, também ela, de cuidados. E de saber que não está sozinha. O enfermeiro que parou a sua vida, para dois dedos de conversa, não restaurou a minha fé na humanidade, mas esteve lá perto.
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