Não sei quantos portugueses pronunciam a primeira vogal de «vizinho» como «i» e quantos pronunciam como um «e» sumido, um som que os linguistas representam com o símbolo /ɨ/: um «i» riscado.
No entanto, sei que, pelos territórios do Sul por onde ando, oiço muito mais a versão com o «i» riscado — e sei também que já na Idade Média nos aparecem textos em que a palavra é escrita com «e»: «vezinno», mostrando como o escriba pronunciava a palavra, numa época em que a escolha das letras andava ao sabor do vento que saía da boca de quem escrevia.
A pronúncia sem o primeiro «i» é antiquíssima — e muitos juram que é a pronúncia tradicional, embora nisto da língua as tradições sejam tantas como as famílias. Amigos do Norte juram-me que as suas tradições familiares implicam pronunciar aquele «i» como «i». Acredito neles. Aliás, quando procuro transcrições fonéticas da palavra, aparecem-me as duas variantes: a versão com «i» e a versão sem «i».
São duas variantes antigas e usadas em todas as situações: concluo assim que as duas pronúncias estão correctas. Uma conclusão destas, por motivos que nem sempre compreendo bem, incomoda muita gente… Mas a culpa não é minha: é da língua!
Não é o único caso em que a letra «i» se lê como «e» (e o contrário também acontece muito; basta olhar para a primeira palavra dentro destes parênteses). Acontece o mesmo com «ministro», «feminino» e com «príncipe» (nesta segunda palavra, o «i» que foi dar uma volta foio segundo) — e podia ter escolhido outros exemplos.
Sempre que temos duas sílabas com «i» uma a seguir à outra, a sílaba átona tende a ser lida como se lá estivesse um «e» (o tal «i» riscado). É um fenómeno conhecido como dissimilação e foi muito importante na evolução da língua. Ora, nalguns casos, alguns falantes parecem recusar a tal dissimilação e, assim, ficamos com duas pronúncias diferentes.
A escrita e a fala têm uma relação complicada… Habituados como estamos a escrever muito, julgamos ouvir na fala aquilo que os olhos encontram na escrita. É fácil encontrar quem nunca tenha reparado que um «s», no fim duma sílaba, se pronuncia como um «j» ou um «ch». Também é fácil encontrar quem nunca tenha reparado que pronuncia o segundo «i» de «príncipe» como «e». Também não será difícil encontrar quem pronuncie «vizinho» com «e» e jure que não o faz. O certo é que a relação entre as letras e os sons não é unívoca. Há muitas destas complicações na nossa língua e o facto de não repararmos nelas não implica que sejam erros, mesmo quando há variação entre diferentes regiões do país.
Haverá quem goste de ter tudo muito arrumado e fique incomodado com estas variações. Ora, desarrumações destas há em todas as línguas. E, se virmos bem, a língua está mais uniforme, por acção da escola, da comunicação social, da urbanização, dos contactos entre pessoas de diferentes regiões… Por isso, quem tem medo de que a variação impeça a comunicação está a lutar com o moinho errado. Há muitas barreiras ao entendimento, mas nenhuma delas é uma vogal ligeiramente diferente aqui ou acolá.
Afinal, num país como Portugal, somos todos vizinhos e, mais do que andar a impor vogais ao prédio inteiro, convém aprender a viver com estas diferenças. Tudo correrá bem — até à próxima reunião de condomínio, em que alguém tentará impor uma pronúncia uniforme e ficará registado em acta que a proposta foi rejeitada por maioria, depois de longa discussão.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras e publica um episódio diário no canal Pilha de Livros. A crónica acima já foi publicada anteriormente.
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