Esta semana, a operação internacional Cumberland, liderada pelas autoridades dinamarquesas, permitiu a identificação de 273 suspeitos e a detenção de 25 indivíduos. Os detidos faziam parte de um grupo criminoso envolvido na distribuição de Material de Exploração e Abuso Sexual de Crianças (MEASC, proveniente do inglês CSAM), totalmente gerado por Inteligência Artificial (IA). O principal suspeito, um cidadão dinamarquês, geria uma plataforma online onde distribuía MEASC gerado por IA. Mediante pagamento, utilizadores de várias partes do mundo obtinham acesso aos conteúdos.
Se a violência sexual contra crianças online e nos ambientes digitais já constituía um problema colossal, as imagens geradas por IA vieram torná-lo incomensurável. Atualmente, qualquer indivíduo, mesmo sem grandes conhecimentos tecnológicos, pode produzir MEASC. Este acesso facilitado contribui para o aumento significativo de vídeos e imagens de crianças a serem abusadas sexualmente, e constitui um obstáculo à investigação criminal. Em primeiro lugar, porque dificulta a identificação das crianças nas imagens, tornando incerto se são reais ou completamente digitais – pode haver crime sem haver uma vítima real. Em segundo lugar, porque qualquer abusador pode gerar centenas ou milhares de imagens, aumentando o volume de trabalho para as autoridades.
Importa lembrar que, em 2021, o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC) recebeu mais de 78 mil denúncias de MEASC por dia. No total, registaram-se mais de 29 milhões de casos, dos quais 59% envolviam crianças pré-púberes, ou seja, entre os três anos de idade e a puberdade.
Papel de Portugal e da União Europeia
Até ao momento, ainda não há uma conclusão satisfatória acerca da Proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras para prevenir e combater o abuso sexual de crianças. Ou seja, até que esta proposta seja aprovada – o que espero que aconteça em breve –, no espaço europeu as crianças continuam desprotegidas e os prestadores de serviços de comunicações e internet continuam a beneficiar da ausência de regras e leis que garantam a segurança das crianças e jovens.
É verdade que alguns prestadores de serviços desenvolveram ou recorrem voluntariamente a tecnologias para detetar, denunciar e eliminar MEASC. No entanto, sem uma regulação obrigatória, as medidas adotadas por estas empresas variam, e a grande maioria das denúncias provém de um pequeno número de prestadores, sendo muitos os que não tomam quaisquer medidas. Em setembro de 2023, a OCDE publicou que apenas 20% das 50 principais empresas possuem políticas detalhadas sobre prevenção de MEASC.
Até ao momento, o Estado Português continua sem tomar uma posição sobre esta proposta, e esta demora compromete a proteção das crianças e jovens. Quando falamos de violência sexual contra crianças, hesitações e adiamentos beneficiam apenas uma parte: os abusadores. Enquanto se discute o problema, mais imagens e vídeos são gerados e disseminados. A cada segundo, duas novas imagens de MEASC são partilhadas online. Fica a questão: por que continua Portugal a adiar uma resposta firme e urgente?
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
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