A recente retirada das forças da NATO – especialmente as dos Estados Unidos da América – aceleraram um processo de tomada de poder por imposição bélica de uma das frentes, de muitas, rivais no Afeganistão.
Os talibãs autoproclamaram-se conquistadores e irão impor-se, à revelia da vontade de outros grupos no país.
Antecipam-se tempos de escuridão para os direitos humanos no Afeganistão, onde será imposta uma interpretação da lei islâmica que restringe os direitos das mulheres. Estas não poderão sair à rua sem estarem tapadas pela burka – se o fizessem por sua própria e individual vontade não havia problema, mas tal não acontecerá na esmagadora maioria dos casos. Além da burka, terão de estar acompanhadas por um familiar, homem, maior de 14 anos de idade.
Mulheres com estudos superiores deixarão de poder exercer a sua profissão ou de ter vida fora de casa: médicas, enfermeiras, juízas, políticas, tantas outras profissionais. As raparigas podem ter de deixar de estudar ou então, se puderem ir à escola, básica, fá-lo-ão separadas dos rapazes.
As afegãs viverão um confinamento indefinido pautado pelo medo, pois muito do que eram e viveram nos últimos 20 anos passará a ser causa de castigo e humilhação pública. Capacitar raparigas e mulheres é investir no desenvolvimento e na economia de um país, pelo que esta violação de direitos humanos prejudicará as mulheres e consequentemente a economia afegã, já débil.
As artes, a música, o teatro, a cultura sofrerão, remeter-se-á a muito pouco ou nada.
Os talibãs moderaram-se – disseram eles vezes sem conta, sobre si mesmos, nas última semanas –, mas para logo a seguir sublinharem que tudo será feito no âmbito da sharia. Para bom entendedor: nada mudará face aos tempos de assalto ao poder no final da década de 1990.
As autoridades internacionais e os governos mostraram-se cautelosos, à espera do que irá acontecer. Mas acrescentaria outro adjetivo: mostram-se ingenuamente (ou mesmo, hipocritamente) expectantes para falar de direitos humanos e outras linhas vermelhas que não podiam ser ultrapassadas. Mas que, entretanto, já foram ultrapassadas e nada aconteceu.
Os holofotes e a pressão da imprensa estão a acabar e o Afeganistão ficará esquecido. É este um dos meus receios.
O ministro da Defesa português referiu recentemente que alguns afegãos que vinham para Portugal já podiam estar na Europa, mas que não sabia onde estavam. Viriam para Portugal por terem trabalhado com o nosso país no Afeganistão. O ministro dos Negócios Estrangeiros foi notícia por ter telefonado a um jovem afegão em Portugal – depois de este ter feito greve de fome para pedir ajuda ao governo – garantindo que tudo faria, dentro das suas possibilidades, claro, para trazer a sua família para o país. Isto é, a parte administrativa: os vistos de reunificação familiar. Faltou-nos ouvir garantias do resto: Estas familiares têm passaporte? Têm possibilidade de o entregar onde se carimbam ou colam os vistos? A que consulado irão e como para tratar disso? Como farão a viagem? Recorrerão a rotas arriscadas por mar e por terra, sujeitas à morte, ao tráfico de seres humanos, ao afogamento no mediterrâneo, à violação por traficantes, ou terão uma ponte aérea, segura, legal?
Esta admissão de não saber das pessoas e de apenas fazer a parte administrativa, sem ter em conta outras partes essenciais do processo, diz muito do cuidado do governo e da qualidade dos seus serviços. Entre fazer e acontecer, a mera intenção raras vezes sobrevive à luz dos holofotes da imprensa, depressa esfumando-se assim que desaparece a pressão mediática e caindo no esquecimento.
É por isso que hoje é mais importante do que nunca que a sociedade civil se mantenha atenta e ativa, exigindo com petições e prestação de contas que os governos façam o que se tem de fazer à luz dos compromissos humanitários internacionais e dos direitos humanos.
Reavaliar as políticas de ajuda pública ao desenvolvimento é uma urgência da comunidade internacional a que a República Portuguesa não pode ser alheia. Perceber que não se impõem democracias à maneira ocidental em todas as realidades do mundo, mas que se podem estudar e formular modelos de governação que sejam respeitadores dos direitos humanos para todas as pessoas em qualquer realidade. Esta formulação nunca pode não contar com as pessoas que a viverão e implementarão. Receitas de fora não funcionam. O investimento militar e em segurança é importante, mas de pouco valerá se não for acompanhado por educação, cultura, capacitação e reforço da sociedade civil numa dinâmica de criação de soluções formuladas em conjunto e não em receitas com uma lógica de copiar e colar.
É esta falha que obriga agora a um trabalho humanitário urgente, em primeiro lugar aos países que fazem fronteira com o Afeganistão e que mais refugiados acolherão. É preciso ainda solidariedade para acolher e integrar, sabendo que discursos alarmistas e populistas e alegações de “ondas” ou “magotes” de refugiados e migrantes que “aí vêm alterar a nossa cultura e modo de vida” são um perfeito dislate de ignorância longe da realidade. Nós, portugueses, migrámos aos milhões no século XX e não consta que alterássemos a cultura dos países para onde fomos.
Não serão muitos os que virão para Portugal. Estas pessoas sabem muito pouco sobre Portugal, poucas saberão que podemos ser destino seguro para que recomecem a sua vida. No entanto, aos poucos que vierem, saiba o governo garantir-lhes rotas legais e seguras para que não passem tormentos para cá chegarem e, uma vez cá, que sejam acolhidos e integrados para que rapidamente possam contribuir para a nossa economia, para a nossa sociedade, para a nossa diversidade e nos recordem enfim que vieram fugidos de conflitos e da miséria. E que para estes conflitos e miséria não aconteçam, podemos e devemos trabalhar a montante das situações.
Que o Afeganistão não seja esquecido. Que as pessoas não sejam esquecidas.
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