“Daqui para o futuro…” Era uma expressão que se ouvia muito lá em casa.

Até que um dia, a minha irmã, que tem menos três anos que eu e teria uns 4 anos na altura, pergunta ao meu pai, autor habitual da dita frase:

“Ó pai estás sempre a dizer daqui para o futuro … daqui para o futuro, então mas afinal quando é que é esse futuro?“

Lembrei-me deste episódio de infância ao reflectir sobre o cancro pediátrico, o presente e o futuro.

A comunidade que trabalha, reflecte e vive esta doença está exausta de ouvir dizer: daqui para o futuro haverá mais investigação e novos medicamentos, novas terapias. Daqui para o futuro conseguiremos reduzir as sequelas provocadas pela doença e pelos tratamentos. Daqui para o futuro haverá maior investimento no conhecimento da doença. Daqui … daqui ainda se vislumbra o futuro?

E agora? Agora com este novo dado, de gigantesca relevância, que é a pandemia do COVID-19, será que ainda conseguimos ter ânimo para perguntar: afinal o que será e quando é que será o futuro?

O impacto da pandemia no presente é já enorme.

Os serviços dos hospitais de referência fecharam-se, ao limite do possível, para a melhor protecção dos seus doentes. Os tratamentos que podem ser adiados, sem prejuízo para a progressão da doença, são-no. Vive-se não com o medo de toda a população portuguesa perante um vírus com consequências ainda muito desconhecidas, mas com um pânico sobre a possibilidade desta nova doença poder “infectar a doença que já existia” ameaçando, ainda mais, as vidas que já tão ameaçadas estavam.

Ainda e com origem no presente, desconhecemos quantos serão os casos em que, face a situações anómalas de saúde, se adia a ida ao médico por medo de contactar com um vírus desconhecido e o quanto isso atrasará os diagnósticos de cancro pediátrico. Esse atraso acarretará consequências no processo de tratamento, na eventual necessidade de recorrer a terapias mais agressivas, do que seria o caso se os diagnósticos fossem mais precoces, e até na probabilidade de sobrevivência. É uma incógnita de hoje relativamente à qual teremos a resposta inevitável num futuro.

Outra das situações do presente, com impactos já visíveis, mas que terão enormes repercussões futuras, é o confinamento destes doentes, dos acompanhantes e da família em geral. Antes da população estar confinada estes doentes já o estavam. No entanto, isolaram-se mais ainda e sabem que esse isolamento só poderá terminar no dia que a população tiver imunidade. Quanto mais tempo durar este isolamento maiores e menos reversíveis serão as sequelas sociais, económicas e psicológicas de pessoas que já se encontravam tão fragilizadas.

Falando com médicos e com os hospitais fico (ou quero ficar) com a convicção de que não existe um impacto na qualidade dos tratamentos que estão a ser feitos neste momento. Isso é um factor de enorme tranquilidade para os actuais doentes e familiares.

No entanto, acredito que já se iniciou o desvio de recursos normalmente direccionados para o cancro e mormente para o cancro pediátrico, o qual era já o “parente pobre" dentro da realidade do cancro.

Numa sociedade de recursos muito escassos, como é a nossa, a necessidade de combater algo que se apresenta com potencial de destruição generalizada de vidas e recursos, atrai e atrairá a parte mais relevante de gastos correntes e dos investimentos na área da saúde. Este desvio é uma das situações mais preocupantes, pois apenas se iniciou agora e não sabemos durante quanto tempo se arrastará.

A sensação de que o futuro de um investimento real na investigação, na procura de tratamentos menos invasivos, no desenvolvimento de novos medicamentos, na melhoria das condições sócio económicas das famílias afectadas pela doença (que se arrasta por anos), o apoio psicológico determinante para o equilíbrio futuro desta população, tudo isto me parece hoje atirado para um futuro que não consigo determinar quando poderá ocorrer, apetecendo-me perguntar (mas a quem!?): Afinal … quando é que será o futuro?

Sem certezas… entendo que só a nós próprios poderemos perguntar: o que será e quando acontecerá o futuro?

A resposta estará na comunidade da oncologia pediátrica e não fora dela. A nós comunidade compete agora, no presente, determinar o que será o futuro e assim moldá-lo (na medida das nossas capacidades e com todas as nossas forças) em vez de sofrê-lo.

A nós compete HOJE:

  • Planear o reforço sócio económico das famílias;
  • Lidar com o isolamento de formas criativas e procurando a sua eficácia;
  • Lutar pelo menor desvio de recursos possível;
  • Lutar por financiamentos a alcançar de formas criativas e inovadoras que permitam que estes sejam exclusivos e dedicados ao cancro pediátrico e que não possam ser desviados.

E gritar, gritar bem alto que esta doença mata.

Que mata 20% dos que são diagnosticados em Portugal e que esses 20% são uma vitória do presente, que não pode ter recuo e que só pode melhorar.


Margarida Cruz é Directora-geral da Acreditar. A Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.