Passados sete meses e meio sobre o desencadear da guerra com a invasão da Ucrânia, estão à vista, de modo surpreendente, os erros e a debilidade do sistema de poder político-militar do Kremlin.
Putin é um homem formado com o ardil dos serviços secretos KGB. Não é preciso ouvir peritos militares para concluir que o presidente russo fez uma avaliação totalmente fora da realidade sobre o que seria a “operação militar especial” da Rússia na Ucrânia. Foi enganado pela gente dos serviços secretos? Pelos generais? Terá sido a soberba dele a traí-lo?
O Kremlin não esconde mas não explica a purga de generais em lugares de comando da guerra. Talvez não justifique por ser óbvio: a condução da guerra de agressão está a ser desastrosa, com baixas colossais e a humilhação de as tropas russas se verem obrigadas a recuar no terreno e a abandonarem o que com cruel brutalidade guerreira tinham conquistado.
Muitos chefes militares estão seguramente revoltados com as perdas em material e, sobretudo, em vidas humanas que a tropa russa está a sofrer. Alguns já terão ponderado a necessidade de desobedecerem ao poder político do Kremlin que os está a atirar para o desastre.
Putin deve lembrar-se que foi através de manobras de bastidores que ele, obscuro oficial dos serviços secretos, foi mandatado para ocupar a presidência da Federação Russa e assim ocupar o lugar deixado vago por Boris Ieltsin, obrigado a renunciar em 31 de dezembro de 1999.
Os fidelíssimos de Putin e ele próprio têm experiência bastante para terem a noção de que o que até há poucas semanas era uma impensável heresia deixou de ser tabu: há quem esteja a manobrar para a sucessão de Putin.
Até ao sexto mês de guerra na Ucrânia, Putin era o chefe infalível, dado como inquestionável nos comandos do Kremlin por mais uma dúzia de anos e, quando tivesse de ser, haveria de ser ele a designar o sucessor, tal como aconteceu quando Putin teve de alternar com Medvedev nos postos de chefe de Estado e chefe do governo.
Desde o final de agosto, o exército russo está em marcha atrás. Duas contra-ofensivas militares da Ucrânia, uma no nordeste, outra no sul, estão a permitir a reconquista de territórios antes tomados pelos russos. As forças da Ucrânia estão a recuperar e as russas a recuar.
Assim estão a ficar públicas críticas à condução da guerra pelo comando russo. Ninguém ousa questionar abertamente o chefe supremo do Kremlin, os ataques concentram-se por agora no ministro da Defesa, Sergei Shoigu.
Mas é de imaginar que não faltará entre os falcões russos quem em privado questione a liderança e defenda que a presidência de Putin não deve passar do final, em 2024, do atual quarto mandato. Quem sabe se não haverá quem defenda que a substituição seja antecipada.
O nacionalista Kadyrov, líder carismático checheno e dado como fidelíssimo de Putin já apareceu nestes dias a criticar os comandos militares e a recomendar a Putin o recurso a uma “bomba nuclear com carga reduzida”.
O ataque à ponte de Kerch, a tal que liga a Federação Russa à Crimeia, pelo menos no plano simbólico é uma afronta que enfurece Putin.
O que é que passará pela cabeça do homem que já se pôs a desafiar o mundo em fevereiro passado ao dar a ordem para invasão militar da Ucrânia? A confirmar-se que o ataque ao gasoduto no Báltico foi uma operação executada por russos, obviamente aconteceu com luz verde de Putin – que assim pré-avisa sobre a possibilidade de atacar as infinitas redes submarinas que fazem funcionar o mundo atual.
E se o revés para Putin na ponte de Kerch é o pretexto para ele retaliar com armas nucleares táticas? Na análise que nos é fornecida pelos peritos internacionais nas estratégias da guerra continua a prevalecer a opinião de que o risco de recurso à arma nuclear não sendo de excluir, é no entanto muito baixo.
Mas também não era baixa a possibilidade de Putin ordenar a invasão de um país soberano?
O enquadramento de hoje é muito mais perigoso do que no dia 24 de fevereiro em que os tanques russos começaram a assaltar a Ucrânia. Agora, Putin passou a saber que a sucessão dele, bruscamente, pode deixar de ser um tabu. É por isso que ele nunca terá sido tão perigoso.
O ataque à ponte de Kerch foi celebrado na Europa por ser um golpe no agressor. O receio é o de que seja o detonador de uma aterradora escalada. Nestas últimas horas, a retaliação está a passar pelo regresso de bombardeamentos sobre Kiev, com outras cidades no centro e no oeste da Ucrânia também a serem atacadas.
Putin já mostrou que é perigoso. Há que ter em conta que ele pode ser tentado a ousar a loucura da máxima brutalidade.
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