Já aqui falámos muitas vezes de Johnson, tanto a propósito do Brexit e do estado da política inglesa, como caracterizando-o em pormenor. Vale a pena reler, para recordar como é que chegou lá. A questão sempre foi como é que um bufão de tal nível chega a um Governo que, historicamente, foi sempre preenchido por pessoas de idoneidade confirmada, algumas maldosas, sem dúvida, outras pouco eficientes, certamente, mas todas dentro do padrão definido por um deles, Lorde Palmestron (1859-65): “A Grã-Bretanha não tem amigos eternos nem inimigos eternos, tem interesses eternos.”
A lista de disparates de Boris – Bojo, para os desafectos – vai desde políticas nacionais perniciosas para o país até infantilidades que não se esperam nem dum vogal de Junta de Freguesia.
Quanto às políticas, são discutíveis, com certeza. É isso a Democracia; uns concordam, outros discordam, mas aceitam-se institucionalmente. Mas convém não esquecer que Johnson chegou a Primeiro-Ministro a cavalo do Brexit, passando uma rasteira à sua antecessora, Theresa May. A senhora andava às voltas a tentar resolver os pormenores irresolúveis do acordo entre a UE e as ilhas, fazendo-o com pouco talento, mas muito boa vontade. Boris encabeçou a revolta contra ela dentro do partido e propôs-se substituí-la como o slogan “Let’s get the Brexit done!” (“Vamos lá acabar com isto”, numa tradução livre.) Uma vez instalado no poder, realmente acabou com o impasse, mas da maneira mais manhosa; negociou um acordo impossível, sabendo que não poderia cumpri-lo. (Estamos a falar da questão ainda pendente do Protocolo da Irlanda do Norte).
O Brexit, já por si um desastre para os tais interesses eternos de Palmestron, ficou ainda mais complicado com a pandemia e, ultimamente, com a Guerra na Ucrânia, duas situações de que Johnson não tem culpa; mas tem culpa das políticas que agravaram, e muito, a situação económica do país. Os ingleses têm falta de mão de obra e de matérias-primas; os produtos importados desapareceram ou escasseiam; o Serviço Nacional de Saúde está a romper pelas costuras e o nível de vida baixou visivelmente.
A lista das decisões estrambólicas é longa. Basta lembrar a última, despachar para o Ruanda os candidatos a imigrantes, onde ficarão num país sem condições eternamente à espera. Quanto aos imigrantes legalizados, mais de seis milhões, sentem que não têm futuro nas ilhas e muitos consideram voltar para os países de origem. Ora acontece que esses imigrantes são fundamentais em vários sectores básicos, como a saúde, e não há ingleses para os substituir.
Contudo, o mais estrambólico é que não foram as más decisões políticas que tramaram o Bojo. Foram atitudes de mau carácter e descaso pelos súbditos de Sua Majestade e pela dignidade da função.
A primeira que chamou a atenção do público ficou conhecida como Partygate. Durante o auge da pandemia, quando o Governo pedia às pessoas a maior contenção e os familiares nem sequer podiam visitar os parentes idosos e doentes, o pessoal dos gabinetes governamentais organizou várias festas nos jardins de Downing Street, onde se divertiam e embebedavam em grande galhofa. Há vídeos e fotos. Entre Maio de 2020 e Abril de 2022 houve 16 festas, segundo o Washington Post.
Uma dessas festarolas foi no dia 17 de Abril de 2021, o dia das exéquias do Duque de Edimburgo. Os jornais não deixaram de mostra a rainha, sozinha na catedral de Westminster, os olhos perdidos e amordaçada com uma máscara, ao lado das imagens do pessoal em amena cavaqueira bem regada a whisky, em Downing Street.
Johnson primeiro disse que não sabia das festas, depois que sabia, mas não esteve presente, e finalmente que esteve lá, mas só de passagem. Um inquérito oficial demonstrou o contrário e, pela primeira vez na História do Reino Unido, um primeiro-ministro foi considerado culpado de quebrar as regras que ele próprio tinha instituído — e devidamente multado.
Os próprios deputados conservadores votaram para a sua substituição em comité fechado (o chamado “Comité 1922”), mas Boris conseguiu ganhar essa eleição interna, se bem que por uma margem que indicava uma quebra de confiança grave. Teve o apoio de 211 deputados e o desapoio de 41%. Claro que veio publicamente proclamar vitória. Todavia, foi uma votação semelhante à que derrubou Theresa May em Dezembro de 2018 e Margareth Tatcher em Novembro de 1990. Outros tempos...
Depois de várias outras bandalheiras, surgiu finalmente a que havia de o liquidar, tão ridícula que nem parece real. O deputado Chris Pincher demitiu-se de funções no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 2017, por ter um comportamento homossexual inapropriado com dois assistentes. Mesmo assim, Johnson nomeou-o para líder assistente da bancada conservadora (“Comptroller of the Household”). A 30 de Junho deste ano, Pincher teve de se demitir uma segunda vez, ao saber-se que tinha apalpado dois cavalheiros nas instalações do vetusto Carlton Club – situação comentada com humor por toda a gente, uma vez que “pincher” quer dizer “beliscador”.
Mais uma vez Johnson afirmou que não conhecia o passado do faltoso, o que se provou ser impossível, pois da primeira vez que prevaricou o Partido a polícia registou a ocorrência. Aliás, também havia uma queixa de mau comportamento sexual da parte do remador olímpico e candidato conservador Alex Story.
Mesmo os ministros mais próximos de Johnson, como Priti Patel (Interior) e Grant Shapps (Transportes) começaram a pedir que resignasse. Esta quarta-feira, o próprio Johnson demitiu outro fiel, Michael Gove. Vendo que não conseguiam demovê-lo, os seus próximos começaram a demitir-se. Rishi Sunak, o Ministro das Finanças (Chancellor of the Exchequer), Sajid Savit (Ministro da Saúde). Primeiro vinte, depois trinta e muitos – quarenta, na última contagem. Nadhim Zahawi, nomeado para substituir Sunak na terça-feira, também já está pelos cabelos. (A despropósito, não é estranho que um Governo conservador xenófobo tenha tantos descendentes de imigrantes? Adiante...)
Quarenta demissões num Governo é muita fruta a cair da árvore. Não só desacredita completamente o executivo, como torna muito difícil arranjar quarenta substitutos assim de um dia para o outro, como Johnson disse que faria, prometendo que continuaria a exercer o cargo “para o qual fui eleito pelo povo inglês”.
Mas os executivos não só se demitiram como também emitiram as suas opiniões em alto e bom som.
Andrew Murrison, secretário do Comércio, tweetou: “A situação está fora de controle. Os ministros têm o dever absoluto de se demitir. Quem se mantiver no lugar será apontado na próxima disputa pela liderança.”
O Secretário para o País de Gales, Simon Hart, escreveu na carta de demissão: “Os colegas têm feito o possível, em privado e em público, para mudar a direcção do barco, mas tristemente considero que passamos o ponto em que isso seja possível.”
A Procuradora-Geral da Justiça, Suella Braverman (apelido goês de solteira: Fernandes) afirmou na quarta-feira que estava na altura de o primeiro-ministro resignar, acrescentando que não se demitia porque será candidata à sucessão.
No seu discurso de demissão, Johnson não fez as gracinhas do costume, mas também não admitiu culpa. Preferiu falar dos grandes feitos do seu Governo e prometeu que ajudaria o próximo.
A grande pergunta agora é, evidentemente, quem lhe sucederá. O Partido Conservador tem maioria no Parlamento, pode mudar de líder quando quiser – como já fez com May e Tatcher, e outros que não vale a pena citar. Portanto não vai haver uma eleição geral, porque a minoria trabalhista não tem votos para consegui-lo. Haverá, sim, uma disputa feroz, à porta fechada, entre os candidatos conservadores. A única limitação da lei britânica é que todos os ministros têm de ser parlamentares.
Ainda é cedo para fazer projecções, mas fala-se de Liz Truss e Nadhim Zahawi. Quando houver uma lista mais completa, não deixaremos de falar nisso.
Afinal de contas, ainda é significante para todos nós, europeus e ocidentais, quem é que comanda a decadência da Velha Albion.
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