Na madrugada de quinta para sexta feira, os telespectadores foram surpreendidos com uma nova peripécia que, apesar de ter estado sempre no horizonte, não se esperava que ocorresse imediatamente. Isto é o melhor que se consegue em matéria de ficção: mostrar o inevitável, sugerir que pode ser evitável e, quando já se pensa que foi evitado, acontecer de repente, tornando o futuro (im)provável no presente inexorável! Mas não é ficção: Eduardo Cunha, considerado o pior bandido (numa competição de bandidos de nível olímpico) e o mais inexpugnável dos protagonistas, de repente é atropelado por um rolo compressor e esfrangalhado para a berma da estrada – onde, apesar de desfeito, ainda se pensa que poderá manter o protagonismo.

Para compreender tudo isto, o que não é fácil, torna-se necessário esquematizar os antecedentes. Eduardo Cunha, do PMDB, é (era, até quinta, dia 5) o Presidente da Câmara dos Deputados, a câmara baixa do Congresso bicameral brasileiro. Assumidamente evangélico, Cunha é considerado um dos parlamentares mais conservadores do país. No Congresso Nacional desde 2003, tem se notabilizado como defensor de valores tradicionais, por exemplo, posicionando-se contra a união de pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto e a liberalização do consumo de canabis.

Em 2010, apresentou um projecto para criminalizar o "preconceito contra os heterossexuais" e é o autor do projecto para a instituição do "Dia do Orgulho Heterossexual" e de outro para punir com prisão de até 10 anos os médicos que auxiliarem mulheres a fazer aborto. Mas os valores morais de Cunha não chegam à sua prática cívica: em Agosto do ano passado foi denunciado no processo Lavajato por corrupção e lavagem de dinheiro. São do domínio público provas de que ele, a mulher e a filha têm cinco milhões de dólares em contas na Suíça. Há fotocópias dos depósitos e saldos, assinaturas, tudo o que é necessário para indiciação. Mas os congressistas brasileiros estão a coberto daquilo a que se chama "foro previlegiado"; só podem ser indiciados e julgados pelo Supremo Tribunal (STF). Estranhamente, ou não tão estranhamente assim, o STF não tomou qualquer acção em relação a Cunha.

Entretanto, em Janeiro deste ano, Cunha entrou em rotura com o Governo de Dilma Rousseff (o PMDB fazia parte da coligação que apoiava o PT no poder) e iniciou o processo de impeachment da Presidenta, baseando-se em acusações de gastos excessivos e escondidos. É a discussão sobre se estes gastos são motivo para impedimento de Dilma que gerou a interminável disputa sobre se há ou não há um golpe para derrubar a Presidenta.

Eduardo Cunha é o rosto do impeachment: foi ele que levou a questão para o Congresso e foi ele que conseguiu que a Câmara dos Deputados votasse a favor – naquela sessão picaresca que ficou famosa pelas declarações ridículas dos deputados, a que Cunha presidiu impávido. Certamente Cunha é o político mais odiado pela opinião pública brasileira, ainda mais do que Lula ou Dilma; o PT e os que são contra o impeachment, porque sabem do seu papel preponderante no processo; os que são a favor, porque o reconhecem como ultra-reaccionário em questões morais e um corrupto que tudo tem feito para se manter no poder, inclusive articular os trabalhos da Câmara, desviando a atenção dos processos em que está envolvido.

Estes são os antecedentes. O que aconteceu na quinta-feira foi que o partido de Marina Silva (REDE) apresentou ao STF um pedido de impedimento de Cunha, baseando-se nos processos contra ele. A intenção de Marina era impedir o impeachment da Presidenta através de um truque processual; se Cunha fosse impedido, todos os actos ocorridos durante a sua permanência como Presidente da Câmara seriam nulos, inclusive o impeachment de Dilma. Marina, que foi aliada de Dilma mas já não é, quer que a Presidenta continue no cargo até ao final, em 2018, porque acha que assim ela, Marina, tem mais hipóteses de ganhar a eleição presidencial.

Perante este quadro, dois dos conselheiros do STF decidiram por conta própria (isto é, sem consultar os restantes) andar com o processo contra Cunha que estava parado, suspendendo-o imediatamente do cargo. É que com a suspensão os actos anteriores da Câmara, inclusive o impeachment da Presidenta, continuam válidos. Claro que não falta quem critique o STF pela decisão, uma vez que mantém o processo de impeachment de Dilma; como não falta quem festeje a queda de Cunha, carinhosamente chamado de "o meu bandido preferido" por todos aqueles que querem que Dilma desapareça de cena.

Para já, Cunha perde a imunidade de ser julgado, mas continua a só poder sê-lo pelo mesmo STF que o suspendeu, o que quer dizer que ainda tem como recorrer aos seus expedientes e chantagens para que o processo não avance.

É uma perda de prestígio importante, mas não é o seu fim.

Também para já, o processo de Dilma continua os trâmites legais. É opinião geral que ela está perdida. Corre no Planalto que está muito deprimida e a tomar anti-depressivos em excesso. Os seus discursos são cada vez mais desconexos. Quem está muito preocupado é o ex-Presidente Lula, uma vez que Dilma já não tem a possibilidade de blindá-lo com o foro privilegiado dum ministério e sabe-se que o Procurador Moro tem o mandato de prisão pronto.

Por seu lado, Michel Temer, o inevitável próximo Presidente (que também tem processos a correr contra ele) tenta discretamente formar o futuro Governo. Já se sabe que não reduzirá o número ridículo de 39 ministros para poder trocar apoios em quantidade. Na quarta-feira indicou que escolherá para ministro da Ciência e Tecnologia um evangélico que "não acredita mas respeita" a Teoria da Evolução de Darwin.

Uma novela tem muitos personagens. E situações caricatas mais do que a conta. Em breve, cenas dos novos capítulos. Acontecerão previsivelmente reviravoltas imprevisíveis.