O nosso alfabeto serve muito bem para representar o português, mas tem umas peculiaridades bem conhecidas. Uma delas é o C, que não só se lê de maneira diferente conforme a letra que se lhe segue, como tem uma outra letra a morder os calcanhares, que não seria, estritamente falando, necessária. Falo, claro, do Q — e nem precisamos de chamar ao palco o K, que raramente se usa. Além disso, e como se não bastasse, o C ainda se desdobra no famoso C de cedilha, só para confundir — C de cedilha esse que também se lê como outra letra: o S (claro que este também tem as suas complicações).
Para perceber de onde vêm estas atrapalhações alfabéticas, temos de recuar até ao tempo dos Fenícios — e temos ainda de saber que as nossas letras surgiram de uma viagem longa entre as letras fenícias, as letras gregas, as letras etruscas (já na Península Itálica), até terminarem no alfabeto latino que usamos hoje.
Comecemos na antiga Fenícia.
Para representar um som semelhante a /k/, os Fenícios usavam duas letras que são os antepassados de K e Q: o kap e o qop.
Por que razão tinham duas letras para o mesmo som? Na verdade, não era o mesmo som – havia uma subtil diferença na posição da língua e estes dois sons parecidos eram representados por duas letras diferentes. Hoje, se ouvíssemos um fenício a falar, dificilmente detetaríamos a diferença. É um pouco como acontece com as vogais de «cheap» e «chip» em inglês: um português julga ouvir o mesmo som; para um inglês, são dois sons diferentes. Um linguista dirá que estas duas vogais, para um português, são duas realizações do mesmo fonema; para um inglês, são dois fonemas diferentes.
Além do kap e do qop, os Fenícios tinham ainda o antepassado da nossa letra C, o giml, que usavam para representar o som /g/.
Avancemos até à Grécia Antiga.
Quando transformaram as letras fenícias no seu famoso alfabeto, os gregos importaram as três letras: C, K e Q. No entanto, como não faziam distinção entre K e Q, acabaram por deixar cair esta última — embora tenha perdurado durante algum tempo.
Na altura em que o Q desapareceu do alfabeto grego, já os Etruscos tinham começado a imitar o alfabeto grego para representar a sua língua. Os Etruscos não tinham o som /g/, mas sim três variações do som /k/. Pois bem: aproveitaram as três letras para representar essas três variações: C, K e Q passaram a representar sons muito semelhantes a /k/, mas suficientemente diferentes para merecerem letras diferentes no alfabeto etrusco (note-se que não temos a certeza de que sons seriam esses; a língua etrusca continua a ser um mistério).
Chegamos, por fim, ao nosso alfabeto.
Quando os romanos copiaram os Etruscos, tiveram outro problema: não distinguiam três versões de /k/, mas precisavam de uma letra para representar /g/. Se tivessem copiado os gregos diretamente, teriam a solução: poderiam usar o C para o /g/ e o K ou Q para o /k/. Como o alfabeto latino nasceu do alfabeto etrusco e não diretamente do grego, os romanos acabaram por inventar uma pequena variação da letra C para representar o som /g/. Assim nasceu o nosso G.
Os Romanos tinham, ainda assim, três letras para o som /k/. Acabaram por abandonar o K, que ficou apenas para importações gregas, e reservaram o Q para uso antes do U (que, na verdade, se escrevia V) e de outra vogal. Esta solução talvez tenha sido influenciada pela variação do som /k/ antes de /u/ entre os Etruscos. Não temos a certeza — o que sabemos é que o alfabeto latino acabou por incluir um C e um Q a representar o mesmo som (e ainda um K em certas situações) e um G para representar outro som (diga-se que /k/ e /g/ são sons muito parecidos; a única diferença é a vibração das cordas vocais).
Assim compreendemos porque temos um excesso de letras para representar o som /k/. Ainda falta explicar, no entanto, por que razão a letra C se comporta de forma tão estranha antes de I e E.
No latim clássico, o C tinha sempre o valor de /k/. O nome de Cícero seria lido como /ki.ke.ro/. Foi no final do Império que os falantes começaram a alterar o som antes de um /e/ ou de um /i/ – estas vogais obrigam a puxar a língua para a frente, pressionando o som consonântico anterior no sentido de uma consoante em que a posição da língua seja semelhante. O mesmo aconteceu, ao longo da Idade Média, com o som /g/.
Este fenómeno de mudança da consoante para facilitar a produção da vogal que se lhe segue criou uma diferença na leitura das letras C e G antes do E e do I em contraste com as outras vogais, uma peculiaridade partilhada por todas as línguas latinas, com a curiosa exceção do sardo e da antiga língua latina do Norte de África, hoje desaparecida, que mantiveram a leitura do C sempre como /k/. Estas mudanças são modas que se espalham por largos territórios, por imitação, mas têm mais dificuldade em invadir ilhas ou outros continentes...
Por razões que terão de ficar para outra altura, o desenvolvimento da escrita nas várias línguas ibéricas levou à criação de uma variação da letra C que permitisse usá-la antes de A, O ou U com o som /s/. Surgiu assim o C de cedilha, que, na verdade, se baseia numa forma do Z típica da escrita visigótica, uma variação do alfabeto latino que se usou na Península Ibérica. Esta forma do C veio a ser imitada por franceses e abandonada por castelhanos. Mas essa é uma história para outro dia...
Este texto baseia-se num capítulo do Atlas Histórico da Escrita.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.
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